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25 de abril de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 03: ALERTA MORAL


(Narrado por Sávio)

“Que tal AnnApp?”
“Odiei”.
“Por quê?”
“Porque, além de feio e parecer nome de um órgão público ou uma associação, parece uma cópia idiota da sacada do nome WhatsApp.”
Tenho que concordar com Milena. AnnApp. Onde eu estou com a cabeça? É um nome que não tem uma pegada legal, é sem força. Estamos na casa dela, bebendo chá gelado e conversando sobre o aplicativo que eu venho desenvolvendo. Exatamente, um aplicativo da ANNA, com dicas e outras coisinhas legais para estarem acessíveis na palma de qualquer mão que tenha um celular. Parecemos dois velhos por adorarmos passar um tempo juntos bebendo chá gelado, mas é que apesar de estarmos na casa dos vinte e tantos, somos meio cafonas mesmo.
“Ainda não sei se essa ideia de aplicativo é legal”, Milena parece recuar outra vez na ideia que ela própria teve algumas semanas atrás. Eu já a conheço bem para não deixar que essa gangorra me influencie, pois daqui a alguns minutos ela tornará a adorar a ideia, para então voltar a odiá-la e assim manter o ciclo.
“Seria como uma amostra grátis dos nossos serviços. A gente não perderia dinheiro, pois o que faz diferença financeiramente é o processo de desapaixonamento na prática, coisa que não teria como rolar apenas usando o aplicativo”, eu replico, parecendo um desses nerds de filme cujas funções são entender de computadores e morrer antes dos protagonistas.
A ideia do aplicativo nasceu de uma latente vontade de ajudar o mundo. Quero dizer, a própria ANNA nasceu, de certa forma, da mesma vontade, mas nem todo mundo pode pagar por um serviço personalizado. Pensando nisso, Milena-coração-de-manteiga resolveu que seria interessante compartilhar algumas dicas para que, na medida do possível, as pessoas pudessem dar conta sozinhas de não ir tão fundo numa paixão duvidosa ou evitar problemas com paixões complicadas ou proibidas. O “cardápio” do aplicativo e o seu nome são a pauta da reunião na casa da minha sócia.
“É, acho que você tem razão, Sávio. Esse aplicativo vai bombar”, ela volta a crer na ideia e eu volto a ter certeza de que realmente sei com quem estou lidando.

Volto para casa de uma reunião não concluída. Decidimos que não precisamos nos apressar e eu dirijo impressionado com o fato de que gastamos muito mais tempo falando bobagens do que discutindo sobre o aplicativo. É duro ser amigo de alguém há séculos como eu sou de Milena e tentar manter mais de trinta minutos um papo sério, compromissado. Quando eu vi, já estávamos falando sobre como estamos loucos para ver este ou aquele lançamento no cinema, emendando num piscar de olhos para outro assunto completamente diferente. E não importa sobre o que a gente fale, é inevitável que a gente ria disso em algum momento. Milena é espirituosa, sincera, direta e quase nunca deixa passar nada, o que a torna incrivelmente divertida também. É, eu sei o que todo mundo pensa disso. Que deveríamos namorar ou algo do tipo, que somos almas gêmeas e sei lá mais o quê. Para ser sincero, Milena e eu também rimos muito quando o assunto vem à tona. Não vou negar: existe uma tensãozinha sexual no ar de vez em quando ao estarmos juntos, mas ela e eu já tivemos essa conversa. E sabe o que é ridiculamente curioso? É justamente por nos conhecermos há tanto tempo que a gente não se apaixona um pelo outro. Existe algo que anula a possibilidade de um encanto romântico entre nós. O dia-a-dia de fazer as pessoas se desapaixonarem meio que nos garantiu essa imunidade contra a paixão que, Deus nos livre, poderia destruir nossa amizade para sempre. A gente se ama do nosso jeito e estamos muito felizes assim. Ah, sim, tem o fato de ela namorar o Enzo, é claro. Fim da história.

A secretária anuncia que o cliente daquela manhã já está aguardando. Eu o chamo de Sr. Moreira. Sujeito alto, com um andar um tanto encurvado e um rosto com marcas de cravos (pelo menos eu acho que são de cravos). É até elegante, eu diria. Parece estar na casa dos trinca e poucos.
“Bom-dia, Sr. Moreira. Eu sou o Sávio, pode se sentar. Em que posso ajudá-lo?”
“Bom-dia. Eu vi o anúncio de vocês no Facebook e decidi vir conferir”.
“Ah, que bacana. O senhor tem um caso pra nós?”
Sr. Moreira entorta um pouco a boca e já sinto que alguma coisa bem tensa está para sair dos seus lábios. Ele me diz que está casado há 6 anos, ama a esposa e tal, mas... O nome de seu problema é Margot. Confesso que eu quis rir e perguntar em que zona ele havia encontrado tal mulher com esse que parece um nome de guerra. Mas a educação que meus pais me deram me fez reprimir o riso com uma discreta tossida, um recurso bastante utilizado por todo mundo.
“A culpa de estar traindo minha mulher com a Margot está me consumindo aos poucos, Sávio. Definitivamente existe algo muito errado comigo, porque eu não tenho um motivo real para estar fazendo isso. Eu sei que amo a minha mulher.”
Se a Milena estivesse atendendo este senhor, ela não pensaria duas vezes antes de interrompê-lo dizendo que aquilo era na verdade uma grande cachorrada e que se ele chamava de amor aquilo que sente pela mulher, ele estava precisando nascer de novo para que seu sistema de moralidade fosse redefinido. Eu não falaria esse tipo de coisa pelo simples motivo de eu não saber com absoluta certeza o que é o amor.
“Desde que eu comecei a me relacionar com a Margot, não tenho pensado em outra coisa a não ser nesse lance proibido que a gente tem”, nesse momento o olhar do Sr. Moreira brilha tanto. Odeio quando o olhar do cliente brilha. Faz eu me sentir arrasado por ser o carrasco que vai decapitar aquela paixão tão vívida. Então me lembro que essa paixão pode deixá-lo em apuros. É estranho lidar com essa dualidade: o homem diante de mim parece radiante, o que deveria ser bom, mas a razão pela qual ele está assim, do ponto de vista moral, é digno de um canalha.
O pior é que eu entendo o Sr. Moreira. Não sei o que é me apaixonar há tanto tempo que acho que sou blindado contra isso, então eu diria que meu coração é muito leviano. Eu entendo o Sr. Moreira por duas boas razões: com o coração leviano que eu tenho, me interesso e desinteresso por alguém numa velocidade absurda; e, por ser um homem que não compreende as “regras” do amor, não consigo julgá-lo por gostar de duas mulheres. Tipo, existem tantas pessoas legais no mundo que eu desconfio que seja meio insano estar atraído apenas por uma. Mas na real, eu queria ter esse dom, eu queria partilhar dessa insanidade. Não, não é sarcasmo. Deve ser esse meu senso desequilibrado de fidelidade que afasta qualquer chance de Milena se apaixonar por mim.
“Não vou mentir, Sávio. Eu só vim aqui porque vocês falaram na ligação que iam me dar um desconto, mas eu estava com medo de sair muito caro. Odeio gastar demais”.
Devo dizer que o espírito de bondade que habita em Milena foi o responsável por esse tal desconto, mas ela acredita que é válido porque assim captamos clientes que vão divulgar nossos serviços para outros possíveis clientes. Faz sentido, mas dói um pouquinho.
“Aqui, Sr. Moreira. Preencha este formulário.”
Ele pega o formulário um tanto hesitante. Lá tem umas perguntas direcionadas sobre o caso, e são as respostas do cliente que vão me ajudar a trabalhar.
“Espere aí, Sr. Moreira”, algo me chama atenção ao ler o que ele colocou no formulário. “É da sua mulher que o senhor quer se desapaixonar?”
Envergonhado, ele baixa a cabeça e eu entendo que aquilo é um sim. É aí que, na minha mente, soa um apito agudo, parece um alerta. E eu acho que é a moralidade que ressoa na minha cabeça, me despertando para o tremendo pepino que foi colocado em minhas mãos. Sr. Moreira, o senhor é um grande filho da mãe, viu? Pelo menos serve para eu descobrir que há em mim um radar moral. E que ele funciona.

Em cinco dias levantei alguns dados muito interessantes sobre dona Adriana, a esposa do Sr. Moreira. Eu a segui até o shopping, por exemplo. Ela estava desacompanhada. Notei que ela ri muito sozinha e parece conversar muito consigo mesma. Filmado e anotado. Vai que é algum tipo de distúrbio mental que ela tem e que o Sr. Moreira nunca percebeu. Já tivemos clientes que se desapaixonaram ao saber que o objeto de paixão tinha umas manias bizarras. Ninguém é alguém de verdade até que seu verdadeiro alguém venha à tona quando ninguém está olhando. Em suma, foi um saco “acompanhá-la” naquele shopping por intermináveis três horas e meia. A mulher é uma máquina de comprar. Eu deveria cobrar um bônus do Sr. Moreira por ter sofrido tanto nesse dia. Se eu quisesse ser torturado dessa forma, eu arranjaria uma namorada.
Numa outra ocasião, dona Adriana foi ao cabeleireiro. Fingi ser marido de uma mulher que precisava de informações sobre aquele salão em particular e, no meio do papo furado, descobri que dona Adriana havia ido lá para “dar uma repaginada completa”. Estou a milhas de distância do significado exato de uma repaginada completa, mas entendi que ia custar uma boa grana.
Falei ao Sr. Moreira que teria que dar uma olhadinha na vida da Margot também, pois se ele planejava trocar dona Adriana por ela, eu deveria estar apto a pesar as duas na balança e tentar favorecer uma em detrimento da outra. Investiguei aqui e ali e descobri que, em termos financeiros, Margot representava uma economia significativa na vida do Sr. Moreira. A começar pelo fato de ela ter um bom emprego e a dona Adriana ser apenas uma dona-de-casa.
Sim, estou me sentindo um lixo abominável e cheguei até mesmo a considerar acrescentar mais um mandamento na lista dos cinco que temos na ANNA: não aceitar casos que fazem soar o alarme moral dos investigadores. Cara, trabalhar em prol do fim de um casamento me faz ouvir as trombetas do inferno. Mas é meu trabalho e tem alguém pagando por isso, mesmo que eu me sinta o cocô do verme do zumbi que comeu o cérebro de um estuprador.
Fiz um apanhado da investigação e resolvi que ia focar naquilo que poderia ameaçar o bolso do Sr. Moreira, uma vez que ele parece se importar muito com dinheiro. Já que eu entrei nessa de fazer uma esposa se tornar desapaixonante para seu marido, então melhor entrar logo de corpo inteiro. Meu Deus, nunca mais eu pego um caso desses na vida!
Tomei a liberdade de fazer uma soma dos gastos que presenciei de dona Adriana. Em menos de uma semana, ela gastou quase dois mil reais. Isso é um pouco menos do que eu ganho trabalhando na ANNA o mês inteiro.

Finalmente encontro-me com o Sr. Moreira, já com as fotos e vídeos e o meu comentário para arrematar. Ele está todo serelepe, até me conta que já reservou na Internet umas passagens para viajar com Margot. Não sei se eu fico feliz, pois geralmente é a amante quem fica conhecida como “destruidora de lares”, mas eu é que estou me sentindo assim.
Ele começa a analisar as fotos, enquanto eu descrevo o que acontecia durante o momento em que cada uma foi tirada.
“E aqui é ela na loja de lingerie. Como o senhor pode ver, ela escolheu umas peças muito caras.”
O Sr. Moreira tem um olhar compenetrado em cada foto, e não deixa margem para interpretações. Portanto, não tenho como dizer o que ele pode estar pensando neste momento.
“Neste vídeo, como o senhor pode ver, sua esposa está enchendo o carrinho com vários itens supérfluos. Por exemplo, por que tantos chocolates? E esse queijo importado? O senhor está vendo? Infelizmente o tempo que o senhor continuar com essa mulher, será um tempo de muito dinheiro gasto.”
Eu até me impressiono com o meu profissionalismo, mas em algum lugar o alarme moral ainda retumba com tamanho vigor que eu só consigo me achar um cara desprezível e nojento.
Após vídeos, fotos e o meu comentário sobre os prós e contras entre dona Adriana e Margot (mais prós para Margot e muuuuito mais contras para dona Adriana), o Sr. Moreira vem às lágrimas. Ok. Agora me sinto infinitamente pior. Ele vai me dar o cheque (com a droga do desconto dado pela Madre Milena de Calcutá), agradecer pela minha eficiência, chorar pelo fim do casamento e me fazer sentir um mercenário emocional.
“O que é que estou fazendo, Sávio?”, ele se pergunta e me pergunta, aos prantos.
“É a vida, Sr. Moreira, acalme-se”, eu falo uma abobrinha qualquer, pois nem sei o que dizer na hora mas preciso prestar algum tipo de assistência ao cliente.
“Você não tá entendendo”, diz ele. E com toda razão, pois eu não estou entendendo mesmo. Ué, o serviço já tinha sido feito. Muito bem, aliás. O que poderia estar errado?
“Sr. Moreira, o que está acontecendo?”
“Sabe por que ela gastou tanto?”
“Sim, porque ela é uma compradora compulsiva. Aliás, Sr. Moreira, queria até falar com o senhor. O senhor sabia que ela fala sozinha e ri do nada também? Sua mulher pode estar apresentando sinais de algum transtorno e...”, eu estou prestes a concluir minha fala quando ele se levanta da poltrona e me interrompe, dizendo:
“Eu não sei onde estava com a cabeça, Sávio. Isso que eu estava fazendo era uma cachorrada e, se eu pensava que o que sinto pela minha mulher é amor, então eu deveria nascer de novo para assim poder redefinir meu sistema de moralidade.”
“Oi?”, eu fico mais confuso e até sinto um arrepio quando pareço sentir o espírito de Milena adentrando o escritório e dizendo aquelas palavras.
“Em alguns dias será meu aniversário de casamento com Adriana. E nas vésperas ela sempre faz isso: exagera no salão, no shopping, no supermercado... Ela sempre faz um jantar maravilhoso, veste roupas lindas e deixa o cabelo fantástico. Mas eu nunca tinha visto os ‘bastidores’ dessa preparação. Tudo isso que eu vi agora me fez entender que... não existe mulher mais perfeita do que a minha. Obrigado, Sávio”.
Cara, confesso que me deu vontade de chorar junto com ele. De repente senti um alívio tão gigantesco, como se mil sacos de cimento tivessem saído das minhas costas. O Sr. Moreira ali, na minha frente, confrontando sua própria burrada. E eu, por incrível que pareça, orgulhoso da minha.
“Vou ligar pra Margot e terminar tudo. Já paguei as passagens da viagem, mas não tem problema. É a Adriana quem vai comigo.”


Milena e eu rimos um bocado desse serviço de desapaixonamento, que deu errado ao mesmo tempo que deu certo (o Sr. Moreira me garantiu que ia esquecer Margot rapidinho). Minha amiga/sócia também gostou muito de saber que, apesar de eu parecer um cara liberal e descompromissado, há um tanto de humanidade em mim que grita de vez em quando, e que eu não sou um psicopata que poderia muito bem ajudar a acabar com um casamento sem um pingo de remorso. Isso é bem reconfortante, na verdade. E esse meu emprego? Bem, cada caso é adrenalina pura. Mal posso esperar pelo que ainda vem por aí.

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