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4 de junho de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 08: ZONA MORTAL (parte 1)


(Narrado por Sávio)

Já se passaram algumas semanas e a ressaca pós-Maitê, a ruiva, ainda persiste como um zumbi na minha vida. Não é todo dia que se leva um fora de alguém cuja mente planejou um grand finale para uma história em que pessoas foram usadas como peões num tabuleiro de interesses. Por “pessoas” eu quero dizer “eu”. Mas tudo bem, melhor a dor da flecha logo sentida do que a ilusão aos poucos alimentada. Além disso, zumbis não vivem para sempre, então tudo que eu tenho a fazer é aprender a mirar bem na cabeça deste que me persegue.
Levanto-me muito cedo e encontro minha mãe, Lola, e meu irmão caçula, Dominique, à mesa do café.
“Bom dia, mãe. Bom dia, maninha!”, eu não consigo deixar de ser um provocador mesmo nas primeiras horas da manhã. Dominique me devolve um olhar furioso enquanto bebe seu café com leite.
“Como é que você consegue acordar com o cabelo pronto pra fazer comercial de xampu? Qual é o teu segredo?”, eu continuo provocando, no fundo com uma invejinha porque ele realmente está com os cabelos maravilhosos e mal são sete da manhã. E eu ainda vou sair hoje de casa insatisfeito com os meus, com certeza.
“Do mesmo jeito que você consegue acordar com a mesma cara de universitário fracassado e ainda assim acha que a vida faz sentido”, ele devolve. Acordou afiado hoje.
“Universitário fracassado, é? Ora, Rapunzel, você quer que eu faça faculdade pra quê? Eu já tenho uma empresa e um bom salário todo mês. Um dia você aprende que estudar nem sempre vale a pena.”
“Já chega, meninos. Sávio, que mau exemplo de se dar pro seu irmão mais novo!! E pare de implicar com ele. E você, Dominique, já passou da hora de cortar esse cabelo. Hoje à tarde você não me escapa.”
Eu quase me engasgo com a determinação da minha mãe. Dominique fica boquiaberto diante da declaração dela, protesta, ameaça fazer greve de fome, tudo para não ter que entregar suas lindas madeixas às tesouras.
“Sávio, dê uma carona pro Dominique. E não discuta, não foi um pedido, foi uma ordem”, essas são as últimas palavras dela, antes de se levantar da mesa e recolher a louça do café. E agora sou eu quem tem vontade de protestar e ameaçar fazer greve de fome, mas aí realizo que tenho quase 30 anos de idade e não pega bem um homem da minha maturidade ficar dando piti.

O trajeto de carro leva 20 minutos até a faculdade onde Dominique cursa... bem, eu não sei qual é o curso porque não sou o irmão mais curioso do mundo, mas deve ser algo entre Filosofia e Moda, o que pra mim, de alguma forma, tem algum tipo de ligação (por isso acabo confundindo). Trocamos algumas palavras, ele emburrado no banco de passageiro e apenas grunhindo quando eu o provoco. Ele sabe que não pode reclamar muito porque está no meu carro. Ah, a delícia de estar com aquele poderzinho nas mãos, que indiretamente faz alguém reter ofensas que adoraria dizer mas não pode, porque está dependendo de você naquele momento. Na real, não me importaria nadinha se ele começasse a me xingar agora, porque eu não o abandonaria no acostamento, por exemplo. Eu amo esse moleque, só que o meu jeito de amá-lo é apenas um tanto peculiar. Eu amo a minha família, na verdade. Até meu pai, que é separado da minha mãe e mora em outra cidade, está incluído nessa projeção que faço agora.
“E aí, Dominique, como vai a namorada? Qual é o nome dela mesmo?”
“Bianca. Vai bem.”
“Legal, legal...”, eu poderia esticar o papo se ele tivesse sido menos seco e desinteressado na resposta.
“Sávio?”
“Sim?”
“Você pode falar com a mamãe por mim?”
“Falar com a mamãe? Sobre o quê?”
“Sobre essa história de cortar o cabelo. Cara, é sério, ela não precisa fazer isso.”
“Relaxa, ela não vai fazer isso. Certamente é um cabeleireiro quem vai fazer.”
“Eu não tô brincando. Dá pra você conversar com ela?”
“Tá bom, Rapunzel. Vou ver o que posso fazer.”
Nesse momento, Dominique abre a boca e posso ter certeza que ele ia disparar alguma ofensa mais cabeluda que ele mesmo, mas o meu celular toca e eu o atendo no viva-voz, para não tirar muito a atenção da direção. É Milena.
“Sávio, sabe o quarto mandamento da ANNA?”
“Bom dia pra você também, dona Milena Kerber!!”
“Aham, tá, bom dia. Mas é que eu tô falando sério, estamos com um problema de ‘zona mortal’ pra resolver.”
“Eita!”, meu semblante deve ter ficado visivelmente transformado. “Você já tá na agência?”
“Já. Vem logo, por favor!”
“Ok, sócia. Chego aí daqui a pouco.”
Raramente existe um “tchau” ou algo do tipo em minhas ligações com a Milena. Uma velha amizade pode dispensar certas formalidades e trocá-las por pequenas grosserias.
“O que significa isso de zona mortal?”, meu irmão indaga bem intrigado.
“Significa que esse é um caso que só pode ser resolvido por Milena e eu juntos.”

Entro com extrema pressa na agência, Madonna me avisa que Milena está com cliente na sala dela e que eu posso entrar mesmo assim.
“Dona Melinda, esse é o meu sócio Sávio Miranda, ele também é um agente do desapaixonamento.”
Sou apresentado à nova cliente, uma mulher de uns 40 anos de cabelo castanho bem curtinho, porte elegante, jeito de quem não tem qualquer pudor financeiro quando se trata de bancar um serviço especial que conta com a atuação de dois agentes ao mesmo tempo. Milena me explica que dona Melinda está pagando mas não é para si mesma, e sim para sua filha adolescente de 14 anos.
“Dona Melinda, explique ao Sávio a história, por favor.”
“É que a minha princesinha Tamires está completamente desvairada de paixão por esse rapaz!”, a mulher começa a narrar e aí eu percebo que seu rosto estava úmido antes de eu chegar porque ela estava provavelmente chorando, e agora ela volta a chorar. Sacanagem fazer a mulher contar a história de novo, Milena!
“Quem é o rapaz, dona Melinda?”, eu pergunto, já ciente que terei diante de mim mais um caso típico de novela: mãe rica que não quer que a filha se envolva com garoto de classe baixa mas a menina confia que ele é o seu amor verdadeiro. Clichê.
“É este o rapaz que está arruinando a vida da minha princesinha Tamires”, a mulher saca de uma pasta uma espécie de pôster, abre-o e então a minha previsão clichê vai por água abaixo.
“Julinho Cowboy?!”
Dirijo para Milena um olhar de “que porcaria é essa?”, e a dona Melinda emenda:
“Ela é fã desse cantor desde o ano passado. Meu marido e eu pensávamos que ia passar, porque você sabe como são os adolescentes, eles aderem a todo tipo de modinha e trocam de tempos em tempos. Mas aí descobrimos que a nossa amada filhinha realmente se apaixonou por esse sujeito.”
“Ele canta sertanejo universitário, Sávio, e tem um monte de fãs ao redor do Brasil”, Milena adiciona mais informações, e eu confesso que jamais ouvi falar deste cidadão.
Dou uma boa olhada para o pôster, e tento fazer os cálculos do porquê esse caso tem que ser resolvido por dois agentes em vez de um só. É melhor perguntar.
“Mas por que esse é um caso de zona mortal, Milena?”
“É porque eu já estava cuidando do caso sozinha, Sávio. Investiguei algumas informações sobre o Julinho Cowboy e nenhum dos podres que eu apresentei pra Tamires sequer pareceram problema pra ela. Tudo que ela fez foi ficar com raiva da mãe e de mim e o defendeu até o fim. Eu ia entregar o caso, mas a dona Melinda resolveu insistir, então eu expliquei a ela que, nesse tipo de situação, a filha dela estava adentrando aquilo que chamamos na ANNA de ‘zona mortal’, que é quando nada está convencendo a pessoa a se desapaixonar. Logo, estamos aqui.”
“Só por curiosidade, que tipos de podres você descobriu sobre este tal de Cowboy?”
“Bom, ele regravou algumas músicas sem pagar direitos autorais, por exemplo. Eu tentei apelar pro lado do politicamente correto e perguntei a Tamires se ela queria ter como ídolo um cara que infringe as leis. Ela me devolveu perguntando se eu nunca havia baixado algum filme da Internet, e aí eu tratei logo de mudar de assunto e apresentar outro podre. Mostrei a ela algumas fotos do Julinho numa festa onde ele sai agarrado com três mulheres, então resolvi apelar pra um possível senso feminista na garota, perguntando o que ela achava de ter um ídolo que trata mulheres como objetos tanto nas letras de suas músicas quanto na vida social. Ela me respondeu prontamente dizendo ‘quem me dera ser uma dessas mulheres’. Enfim, são alguns exemplos que eu posso citar.”
“E agora ela está insistindo pra nós contratarmos ele pra festa de quinze anos”, contou a mãe, com o olhar aflito por nossa ajuda. Eu tento algo:
“Pra ser sincero, eu não estou vendo tanto problema assim. É óbvio que essa garota nunca vai ter nada com esse cara, então um dia a paixão por ele vai acabar naturalmente, e ela nem vai precisar ter o coração partido por causa disso. O único problema é paciência pra esperar esse dia chegar.”
“Não é bem assim, agente Sávio”, dona Melinda é a primeira pessoa na minha vida que me chama de ‘Agente Sávio’. Curti muito. “Ela não está se alimentando, tira péssimas notas na escola, não fala mais com as amigas... O meu bebê lindo está se perdendo por causa dessa paixão. Eu preciso de ajuda. Me ajudem, por favor!!”
“A senhora nunca considerou dar uma surra nessa menina, dona Melinda? Sabe, uma surra boa, inesquecível. Ás vezes é só falta de uns bons tapas.”, esta é Milena sendo Milena, surpreendentemente cortante como uma navalha numa noite escura. Orgulho de chamá-la de amiga.
A madame fica chocada com a sinceridade da minha sócia, parece reprimir uma réplica,  prefere não dizer nada, pois no fundo sabe que é uma mãe tão permissiva que agora está colhendo os frutos por mimar tanto uma criança.
“Qual é o seu plano, Milena?”, pergunto.
“Vamos ter de refazer as investigações, Sávio.”
“Mas você acha que ainda há mais a se descobrir sobre esse cara?”
“Ele é uma celebridade, Sávio. Sempre tem mais a se descobrir. E é aí que a gente vai entrar.”
“Mas esse maluco nem é daqui, Milena. Ele mora em outra cidade, certo?”
“Aí é que tá, amigo. Você tá pronto pra fazer uma bela viagem a trabalho?”
Milena acabou de dizer “viagem”? Esse meu emprego é definitivamente um prato cheio de surpresas bem agradáveis. Com essa pergunta que minha sócia me fez, só posso responder abrindo um sorriso satisfeito de quem estava precisando muito mudar de ares. Fazer o quê? Ossos do ofício, né?

Não dá pra fugir muito dos clichês. Por exemplo, estamos desembarcando num aeroporto em Goiânia, pois (alerta de clichê) o tal do Julinho Cowboy mora aqui, no celeiro mais fértil da música sertaneja do país. Nunca vim a Goiânia, e mesmo sendo uma viagem a trabalho, sou apaixonado por esse trabalho. A complicação que tive em meu último caso, isto é, aquele sequestro-relâmpago, curiosamente acendeu ainda mais essa chama da insanidade que é adorar esse trampo. Será divertido, eu tenho certeza.
Após nos acomodarmos em nosso quarto no hotel (a grana tava curta para alugar quartos separados), nos arrumamos para uma visita à gravadora da qual Julinho Cowboy é contratado. Antes, posso ouvir Milena falando ao telefone com Enzo. Ela jura a ele que alugou um quarto individual. Ciuminho normal de namorado, né? Apesar de que eu acho que já passou da hora do Enzo parar de ter ciúmes de mim. Por outro lado, me sinto um pouco mal por vê-la mentindo pra ele.
Enquanto isso, no meu celular, há uma mensagem de agradecimento do Dominique. Consegui convencer mamãe de não levar o garoto ao cabeleireiro (pelo menos por um tempo, pois a qualquer momento dona Lola vai implicar de novo com aquele cabelo dele e só Deus sabe se o irmão herói estará lá pra salvá-lo). Mas não vou jogar isso na cara dele, porque em mulher não se bate. Ok, foi uma piada ridícula.

Finalmente chegamos à tal da gravadora. Um ambiente requintado, todo decorado com cartazes de seus artistas (na verdade eu queria dizer “galinhas dos ovos de ouro”, mas vamos manter uma certa decência aqui). Todos eles são iguais, para mim. Todos eles cantam igual, para mim. Do ponto de vista artístico, ou melhor, do ponto de vista do pouquíssimo que eu entendo de arte, esses caras não tem a mínima preocupação em inovar, em ser originais, em sair do lugar-comum. Tipo, mesmo sabendo que eles são representantes de um determinado gênero musical, será que nenhum deles pensa em inserir alguma coisinha que se diferencie dos outros? Pelo visto, para que vão gastar tempo pensando nisso? O seu comércio musical já é bem rentável e seus produtos amplamente consumidos. E, de quebra, ainda deixam garotinhas que mal chegaram à puberdade de coração esbaforido de paixão. Aí entra outra ironia: se não fosse por isso, nem eu e nem Milena estaríamos aqui, ganhando para isso. O capitalismo é, definitivamente, a teia mais mesquinha e perigosa em que alguém pode se envolver.
“Olha isso aqui, Sávio”, Milena me passa o seu smartphone, aberto no perfil do Instagram da “princesinha Tamires”. Na foto, que é uma selfie, ela está de óculos escuros, com a língua entortada para o canto da boca, usando um boné de aba reta. Achei estranho, mas aceitável para uma adolescente. Afinal, todo mundo já fez alguma tolice na adolescência. E o advento da Internet só fez crescer em toneladas a quantidade de burradas que a garotada pode fazer.
“Por que me mostrou isso?”
“Porque tem alguma coisa estranha nessa foto.”
“Ah, sério?Além do óbvio?”
“É sério, Sávio. Eu tô falando isso baseada nas outras fotos que eu olhei da Tamires durante a investigação anterior. Tem alguma coisa estranha.”
Chegamos à recepção depois de atravessar o corredor repleto de quadros e cartazes dos artistas. Avisamos à recepcionista que queremos falar com o gerente do lugar, a respeito do cantor Julinho Cowboy. Somos surpreendidos pela aparição repentina do tal gerente, que sem qualquer cerimônia já chega anunciando:
“Julinho Cowboy?! Sinto informar, senhores, mas essa pessoa que vocês procuram nunca trabalhou para nós. Ouso afirmar, inclusive, que essa pessoa não existe.”

E o espanto só faz crescer em mim e Milena. Como é que o cara aparece assim, com uma afirmação dessas, depois de todo o esforço que fizemos para chegar até lá? Que brincadeira doida é essa de que Julinho Cowboy não existe?


CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO...

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