Olá, meu povo!! Saudades de Sávio e Milena? Bom, eu prometi que a série retornaria para sua 2a temporada apenas em Setembro, e isso de certa forma continua sendo minha intenção. Maaaas, como hoje é meu aniversário, quis fazer esse agrado e antecipar o episódio de estreia da temporada. Eu estava tão ansioso pela continuidade, então espero que vocês curtam. Para quem realmente gosta da história, este episódio está gigante e foi preparado com muito carinho. É uma pré-estreia, então o trato que fiz de voltar em Setembro ainda está de pé, mas agora só se aplicará do episódio 02 em diante, ok? Agora chega de papo e... Divirta-se!!
(Narrado por Milena)
Eu poderia estar amargando o fim
de meu namoro, choramingando para as minhas amigas, me empanturrando de
chocolate, ouvindo as mais tristes da Adele
e vendo o fantasma do Enzo em qualquer elemento da natureza. Mas eu nem
posso dizer que tenho amigas, por exemplo. Chocolate eu como em qualquer
ocasião, comigo não tem dessa (desde quando uma mulher gordinha e, ahn,
desencanada com isso, precisa de motivo pra comer chocolate?). As músicas da Adele, por alguma razão curiosa, não me
afetam emocionalmente, o que já me fez desconfiar se essa indiferença não é, na
verdade, psicopatia. Estou vivendo a vida normalmente, numa boa mesmo. Eu
estava atrás de uma forma de terminar o namoro com Enzo há um tempão. E do nada
o cara me vem com uma história de que estava perdidamente fisgado por uma outra
mulher, e pá! Terminou tudo comigo. Tipo, como isso não poderia ser uma bênção?
Eu fiquei protelando por tanto tempo, que a coisa toda aconteceu sem eu
precisar me esforçar. Ora, é óbvio que, se aconteceu, é porque tinha que
acontecer.
Mas eu sou humana, e mais do que
isso, mulher. Claro que ainda estou curiosa pra saber quem foi a cretina que
fez a cabeça do Enzo, um ser que aparentemente fazia o tipo perfeito de homem,
que jamais poderia se balançar por uma qualquer. Se isso for verdade, logo ela
não é uma qualquer. No entanto, enquanto isso não pode ser desvendado, eu não
vou ficar em casa estagnada, apenas vivendo para trabalhar. Milena Kerber? Não
mesmo.
Nos últimos dois meses, tive alguns encontros, nenhuma grande coisa.
Como eu disse, sou humana. Sinto o peso da solidão, preciso de companhia. Não
posso ter isso com Sávio, pois todo mundo sabe que ele é quase um irmão pra mim
e, em termos de companhia masculina, não estava a fim de sair com um irmão. Então
lá fui eu, com a cara e a coragem, aceitar uns convites pra jantar ou ir ao
cinema de alguns pretendentes que vinham me azilando há um tempo (ainda há quem
fale “azilando”? Parece tão 2010, e hoje até mesmo as expressões e gírias estão
ficando rapidamente obsoletas, na mesma velocidade que os telefones celulares).
Meu primeiro encontro foi com um
moço chamado Arthur, fomos ao cinema assistir ao Exterminador do futuro: gênesis e até hoje eu estou sem saber se
era um reboot, uma continuação ou uma
trama paralela, visto que o rapaz ou ficava me contando detalhes dos bastidores
da produção do filme e outras informações desinteressantes no momento ou
tentava criar um climinha romântico, chegando a tentar tocar na minha mão “sem
querer” umas dezesseis vezes ao longo do filme. Arthur fora da lista? Com toda
a certeza.
Depois saí pra comer num
restaurante japonês com o Frota. Ele é policial, então geralmente atende pelo
sobrenome. Ainda bem, porque eu passei a noite toda temendo por não recordar do
seu primeiro nome, mas ainda acredito que seja Abmael ou Flávio. Frota era
divertido, não era do tipo nerd pavão
como o Arthur, a fim de ficar exibindo todos os seus conhecimentos da cultura
pop. O problema é que vez ou outra ele deixava escapar que ainda nutria
sentimentos pela ex-namorada (nota para os homens: se vocês ainda sentem algo
pela ex-namorada de vocês, tentem disfarçar melhor quando estiverem com outra
mulher num encontro, porque não é nada
divertido testemunhar o seu sorriso enquanto você demonstra a maneira que a
fulana comia o temaki). Frota está fora da lista? Sim, e com altíssimas chances
de jamais voltar pra ela.
Por último, saí com um amigo do
Sávio, o Kellison. Sim, eu sei o que você está pensando: “Mas, Milena, já
imaginou se você se apaixonasse por esse cidadão? Seus amigos iriam te zoar pro
resto da vida ao ver no Facebook: MILENA
KERBER ESTÁ EM UM RELACIONAMENTO SÉRIO COM KELLISON QUALQUER COISA”.
Kellison!! Que nomezinho... peculiar, não? Antes fosse esse o problema, de
verdade. O caso é que fomos a uma espécie de lanchonete-bar no centro da
cidade, meio badaladinho porque abriu recentemente. Lugar simpático,
perfeitamente encaixado nessa modinha de locais gourmet. A proposta do Kellison foi fazer um programa jovial e ao
mesmo tempo sofisticado. Fiquei seduzida pela ideia e por isso topei. Ele disse
que ia fazer o pedido “pra poder me surpreender”, segundo suas próprias
palavras. O que chegou à nossa mesa, então, foi algo parecido com um crepe, só
que com uma massa temperada com noz-moscada, com recheio de carne e queijo e um
molho branco levemente acebolado. Estava delicioso, mas quase perdi o apetite
quando resolvi entrar numa de explorar o território desconhecido que era o
moço.
“O Sávio me falou que você adora estudar línguas”, mencionei, para
ver se desencadeava uma conversa produtiva e culta.
“Ah, sim, sim. Duas, pra ser mais específico. Tenho me empenhado
bastante. Uma delas eu já tô quase dominando.”
“Que bacana. Quais são essas línguas?”
“A que eu já estou quase craque é o dialeto Dothraki. A outra é o bom e velho inglês, que tá sendo
um pouco mais difícil.”
Quase me engasguei com o “crepe
gourmet”. Dothraki?! Caramba, Sávio, olha o que você me arranja!!
“Dothraki não é aquela língua
que falam em Game of Thrones?”, perguntei,
só pra ter certeza do nível de bizarrice a que eu estava exposta, apesar de
saber o que ele iria responder.
“Exatamente. Eu andei assistindo umas aulas no Youtube. Coisa fina mesmo!”, elogiou ele, fazendo
aquele sinal de ok com o polegar e o indicador formando um círculo. Aí eu
percebi que não havia chance de ele estar brincando. Mas o pior veio depois:
“E o inglês, Kellison? Que curso você tá fazendo?”
“Ah, que curso nada! Eu aprendo só vendo Dora, a aventureira. É altamente pedagógico e instigante.”
Não deu pra segurar, gente. Eu
inclinei a cabeça pra trás e abri uma gargalhada que foi um escândalo. Não
esperava que o tal do Kellison fosse se revelar um verdadeiro comediante, e
aquilo me abriu a esperança de que a noite poderia ser salva. Afinal, que
mulher não curte um homem divertido? Ainda rindo, voltei o olhar pra ele, que
mantinha o rosto compassivo e um tanto alheio ao porquê de eu estar me
divertindo tanto. Foi então que notei que ele tinha falado sério. Estar na casa
dos 30 anos e assistir Dora, a
aventureira na TV diz muito sobre uma pessoa. Especialmente se ela não
menciona a presença de um sobrinho ou uma criança qualquer durante seu momento
de lazer televisivo. Diz muito sobre mim, aliás: que Kellison não é o tipo de
cara que eu estou procurando. E foi assim que eu zerei a minha lista de
encontros temporariamente.
Aqui estou eu, na minha sala
segura no escritório na ANNA, cuidando muito bem da minha vida profissional.
Sávio já está na sala dele, e ainda zomba de mim por ter me jogado na cilada
que ele resolveu chamar de “Kellison Dothraki”. Ele jurou que não sabia que o
Kellison estava quase fera no dialeto criado para a série do momento, e sua
surpresa com o próprio amigo o fazia se deliciar ainda mais pela furada que foi
o nosso encontro. Ah, Sávio, se eu fosse vingativa... Se bem que isso pode ser
aquela coisinha chamada “volta do anzol”, ou seja, eu passei incontáveis dias
avacalhando com ele por causa daquela história que ele descobriu sobre seu
cantor preferido, que a vida tratou de recompensá-lo ao me colocar numa
situação quase tão ridícula quanto essa. De qualquer forma, ficarei mais
cautelosa com futuras indicações de encontro dadas pelo Sávio.
Madonna bate na porta, eu a
autorizo a entrar. Ela anuncia que a nova cliente já está ali para me ver. Peço
gentilmente a Madonna que encaminhe a moça, enquanto pego o e-mail que ela me mandara há três dias,
contendo algumas informações preliminares.
“Bom-dia, com licença”, diz a moça chamada Rafaela, uma jovem
pequenininha, toda graciosa e toda educada, com um sorriso encantador e gentil.
“Olá, bom-dia. Seja bem-vinda à ANNA. Fica à vontade. Eu sou a Milena.
Você aceita uma água, um café?”
“Não, obrigada”, Rafaela fala enquanto aponta a cadeira à frente da
minha mesa, ao que eu gesticulo com a cabeça que ela pode se sentar.
“Então, Rafaela, eu tô aqui com o e-mail que você me enviou há alguns dias. Me fala mais do seu probleminha com
o professor”.
“Pois é, eu não tô mais aguentando. Eu realmente preciso de ajuda. É
uma situação que não pode acontecer, sabe. Não posso colocar em risco o
relacionamento com o meu namorado, eu amo meu namorado. Então quero me
desapaixonar antes que aconteça o pior.”
“Por pior você quer dizer o quê, exatamente?”
“Sei lá... Ficar com o professor ou...”
Assinto com a cabeça que estou
entendendo. O “ou” deixa bem claro a intenção de que ela tem alguma
expectativa, talvez inconsciente, de ter algum envolvimento com o tal
professor. No e-mail enviado pra mim,
Rafaela brevemente sinalizou que ela andava de paquerinha com um professor da
faculdade, mas que ama o namorado e não quer ceder ao charme do cara. Bonito
pensamento. Mas se ela tem tanto receio assim, por que simplesmente não cortou
o contato com o professor, deixando tudo apenas no âmbito acadêmico? Teria sido
muito mais barato do que contratar o serviço da empresa.
“Umas perguntas antes de fecharmos um contrato, ok? Se você tem tanto
receio de se envolver com esse professor, por que não cortou o mal pela raiz?
Já que você ama tanto seu namorado como fala, por que insistir em manter
contato com esse homem?”
“Não sei. Ele é tão... ele é interessante. É charmoso, tem uma boa
conversa, me entende.”
“Seu namorado não é charmoso, interessante e nem tem uma boa conversa?”
“Sim, claro. Eu o amo”.
“Sei. Há quanto tempo você tá namorando?”
“Um ano e meio, quase dois anos”.
“E há quanto tempo você conhece o professor?”
“Uns três meses, eu acho”.
“Seu namoro vai bem? Andam brigando muito, discutindo por qualquer
coisa? Ou se vendo pouco?”
“Não, não, a gente se vê várias vezes na semana. Nossas brigas são
normais, como qualquer casal. Eu amo o meu namorado”.
“Hum... Você repete muito isso, Rafaela. Eu diria que é mais pra si
mesma do que pros outros, é como se fosse um mantra pra você acreditar nisso,
entende?”
Ela faz que vai protestar, mas
aparentemente é confrontada com alguma verdade interior, então curva a cabeça e
dá um suspiro de preocupação.
“Você vai poder pegar meu caso?”, indaga, enfim.
“Ah, minha querida! Pode apostar que vou”, declaro eu, muito
confiante. “Pega esse formulário, por
favor, e preencha”.
O problema de Rafaela não é
atípico. Muitíssimo pelo contrário. Se for pra colocar na balança,
estatisticamente falando, as pessoas se apaixonam com mais facilidade por
alguém além de seus relacionamentos fixos do que se desapaixonam. É também por
isso que a ANNA existe, pois mesmo seguindo um caminho irracional e contrário
ao que gostaríamos, quem é pego na teia da paixão proibida não se esforça pra
se desapegar. Ou, se faz algum esforço, é mais para ter uma sensação de
recompensa moral do que para realmente sair da situação. Tipo, Rafaela nos
procurou (esse é o seu esforço), mas ela não deu garantia alguma de que vai
trabalhar para diminuir a “amizade” (ou seja lá o que for) com o professor. A
pessoa prefere utilizar um serviço profissional como o nosso a ter que
sacrificar uma relação que ela sabe que indica perigo. No dia que eu me
aposentar, darei palestras gratuitas sobre técnicas avançadas em
desapaixonamento, porque olha...
O tal professor, Gustavo Dutra,
leciona umas três disciplinas no curso de Odontologia que Rafaela faz, então
ela tem pelo menos mais alguns semestres para encontrá-lo. Eu lhe dei a ideia
de trocar de faculdade, mas ela falou que as mensalidades eram bem em conta
porque a mãe é amiga da reitora. Desapaixonamento forçado pela distância estava
fora de cogitação. E já fui logo desarmada quando ia sugerir que mudasse de
curso então, mas aí ela quase deu um troço alegando que a Odontologia sempre
foi o sonho da vida dela. Maninha, tá complicado...
O namorado de Rafaela também é
estudante universitário, mas numa faculdade diferente. Ele poderia mudar de
faculdade, mas conseguiu recentemente um estágio excelente onde está estudando,
invalidando temporariamente a possibilidade de Rafaela tê-lo por perto e,
assim, evitar o contato com o professor Gustavo. Bom, é melhor eu parar de
tentar arranjar soluções mais baratas e assumir que o contrato já foi assinado
e eu preciso arregaçar as mangas.
Estou no balcão da (quanta
ironia) mesma lanchonete-bar que vim com o Kellison falador de Dothraki. Certifico-me de que ele não
está por lá, antes de me sentir confortável para pedir um chá gelado ou algo igualmente
gostoso e não-alcoólico. Mas só estou aqui porque segui o professor. Ele
aparentemente está aguardando alguém, e eu espero muito que não seja minha
cliente, porque se eu a visse aqui seria capaz de armar um barraco com ela e
jogar em sua cara que ela tava dificultando demais o meu trabalho.
Uma chuva começa a desabar
impetuosa, assim do nada. As pessoas se entreolham, bastante surpresas pelo
barulho intenso que se instaurou por conta do temporal que está caindo. O único
momento em que alguém parece notar minha presença é justamente quando a chuva
inicia, e um homem ao meu lado se vira em minha direção, me olha e sorri, como
se dissesse “caramba, mas que chuva maluca, né?”. Com um ligeiro sorriso,
faço-o entender que também não esperava.
Ele é um negro bastante bonito,
as primeiras coisas que qualquer mulher notaria nele. Afinal, o que mais
poderia ser notado? Seu rosto é a única coisa possível de se analisar naqueles
rápidos segundos de contato visual provocado pelo ruído de chuva no telhado.
“Chá gelado de abacaxi, por favor”, eu peço, mas a atendente faz
uma careta tão azeda que eu contraio os lábios em negação por não ter uma
alternativa em mente pro caso de não ter chá gelado.
“Com licença”, o homem ao meu lado resolve se intrometer, “posso te dar uma sugestão?”
“Pode, mas...”, eu fico meio atordoada, porque — meu Deus!— que voz
é essa? Tão bem articulada, cadenciada e grave sem soar como um vilão de
desenho.
Ele me olha, aguardando que eu
continue após o “mas”.
“Sim, diga. Qual é a sua sugestão?”
“Experimente um drinque sem álcool que eles fazem aqui de laranja e
maçã. Tenho certeza que vai adorar”.
“Laranja e maçã?”, eu pondero, como qualquer pessoa normal que
pondera sobre algo que nunca experimentou.
“Licinha!”, ele chama a moça do balcão. “Me encante, por favor!”
A tal da Licinha, com a mesma
cara que me olhou quando eu pedi o chá gelado, volta sua atenção para o rapaz.
Percebo que ela não é muito de variar as expressões faciais. Então diz, sem
muito entusiasmo:
“Gato, me chama de papel higiênico e vem ter um rolo comigo!”
“Engraçadinha”, responde o rapaz. “Eu disse ‘me encante’, não ‘me
cante’. É o drinque. Traz um aqui pra
moça!”
Eu rio da confusão. Levo um bom
número de segundos até entender que a tal bebida de laranja e maçã tem o
sugestivo nome de “Me Encante”. Definitivamente, a investigação ao professor
Gustavo está começando a valer a pena. O clima tá descontraído e isso ajuda a
aliviar a tensão. Licinha se afasta quase dois metros, até sumir um pouco de
vista. Deve ter ido preparar o drinque.
“Eu sou o Ivan. Ivan Castro. Prazer”, ele me informa e estende a
mão pra mim.
“Milena”, educadamente eu respondo. “Mas, diferente de você, acho estranho acrescentar o sobrenome.”
Ele dá uma risada muito gostosa,
e não sei se estou doida, mas acredito sentir seu hálito roçando em minhas
narinas. E é um hálito bom, mesmo eu não conseguindo identificar com o que ele
parece.
“Tá gostando do lugar?”
“Não é dos meus preferidos, mas até que é arrumadinho. Mas vacilaram
feio em não ter chá gelado”, eu avalio, como se fosse minha primeira vez
ali. Pra ser sincera, nem me recordo do nome do estabelecimento.
“Nem tudo é perfeito, né?”
“Pelo visto, você tá sempre por aqui, né, Ivan? Tem até intimidade com
a balconista.”
“Nem tanta. Só o suficiente para saber a quem eu tô pagando um salário
todo mês”.
“Ah!”, fica impossível disfarçar o quanto estou surpresa por estar
trocando uma ideia com ninguém menos que o dono do local. Caraca! E eu meio que
dei uma bela mancada ainda há pouco. “Pôxa,
me desculpa pelo que eu falei, eu não tinha ideia”.
“Que nada, você é cliente. O cliente sempre tem razão.”
Ele praticamente sorri a cada fim
de frase. Esse é o tipo sorrateiro de conquistador, e meu alerta já está apitando
para eu ter cuidado com esse sujeito.
“Aliás”, ele prossegue, “é
bom vê-la outra vez por aqui”.
“Como sabe que eu já vim aqui?”
“Eu tava aqui no dia daquela sua gargalhada incrível. O rapaz que tava
com você devia estar doido pra se enterrar, coitado”.
Licinha chega com meu copo
generoso de “Me Encante”; tem até um canudinho jeitoso dentro, coisa mais
linda. Antes de provar, acompanho Ivan na recordação do fatídico dia em que me
encontrei com Kellison naquele mesmo bar. Damos uma boa risada.
“Uau!”, minha primeira reação quando o drinque desce pela minha
garganta. “É realmente delicioso, viu?
Refrescante e saboroso”.
Avisto uma mulher loira de
vestido justo roxo e sapatos de salto alto adentrar o bar. Ela está com um
guarda-chuva e se dirige para a mesa do professor Gustavo. Ocorre-me um
pensamento infeliz e maldoso, julgando a moça porque está parecendo uma
periguete, ao mesmo tempo em que considero sua periguetice um tanto elegante,
só por conta do guarda-chuva em suas mãos. Por um momento eu havia esquecido do
que vim fazer aqui. A moça se senta de maneira que fica de perfil para mim, mas
dá pra notar que ela parece ser muito bonita, com um decote farto e uma sutil
elegância no jeito de se portar. Tadinha, só errou no vestido... Mas, bem, eu
não sou do Esquadrão da moda, então
vamos eliminar as distrações.
O professor Gustavo e ela não
parecem necessariamente amigos, a ocasião na verdade parece um encontro, algo
como um “a-gente-se-quer-então-vamos-ver-no-que-vai-dar”. Sim, eu deduzo tudo
isso só de olhar.
Termino o drinque, pouso o copo
sobre o balcão, até dá vontade de pedir outro, mas por enquanto é melhor me
concentrar na missão. É então que vejo Ivan, delicadamente, pegar o canudinho
que acabei de usar e enrolar num lenço, guardando-o.
“Eu faço coleção de canudinhos usados”, explica-se ele.
Pronto! Outro doido varrido...
Definitivamente, o problema está em mim: só atraio as piores espécies de
lunáticos. Pôxa vida, hein! Tava perfeito demais pra ser verdade...
“E você acha que eu caio nessa?”, eu acabo entrando na onda, pois
com certeza eu não sou a mais normal aqui. “É
claro que você vai aproveitar meu DNA pra algum experimento macabro, e esse
papo de dono de bar é só fachada pra conseguir o que você quer. Eita, caramba!!
Tem certeza que esse drinque não tinha álcool?”
Ele ri, gentil como um louco
jamais deveria ser, e me fala:
“Fica tranquila, eu coleciono de tudo um pouco. Não é muito normal da
minha parte, mas eu garanto que não sou tão estranho assim”.
O professor Gustavo e sua loira
saem do estabelecimento, parecendo muito contentes.
“Tenho que ir”, eu digo para Ivan, pegando dinheiro na bolsa
apressadamente e estendendo em direção à Licinha.
“Ué, mas já? Eu disse alguma besteira? Olha, desculpa se eu te assustei
por causa do canudo...”
“Não, você não fez nada. É que eu preciso trabalhar. Obrigada pela dica
do drinque, é muito bom mesmo”.
“Que bom, Milena! Volte sempre!”
Se isso aqui fosse um filme ou
seriado adolescente, eu teria dado um jeito de me estabanar no meio do caminho
ou derrubar alguma coisa, porque de alguma forma eu fiquei um pouco balançada
com o modo como Ivan pronunciou meu nome e, nas entrelinhas, quando ele diz
“volte sempre”, eu entendo muito mais do que isso. Eu entendo “volte sempre...
pra eu poder te ver de novo”. Posso estar enganada, mas aquele olhar me
transmitiu uma mensagem que as palavras ocultaram, talvez para que apenas eu
captasse. O cara coleciona canudos babados e eu é que começo a ter alucinações,
né? Essa vida pode ser tudo, menos justa.
Dia seguinte, estou novamente em
minha sala na ANNA aguardando por Rafaela. Ontem fiz uns belos flagras do seu
professor querido dando uns altos amassos na loira que ele encontrou no bar. Foi
bastante exaustivo acompanhá-los, porque eles ainda esticaram a noite numa
boate bastante frequentada pela classe média. Como eu levo muito a sério meu
trabalho, não bobeei e arranjei uma entrada pra tal boate. Fiz o de sempre:
fotos, vídeos, anotações no celular (ia ficar estranhíssimo uma moça bonita e
desacompanhada usando um bloquinho de notas na balada; além de forever alone, ia dar a maior bandeira).
“Você tá preparada pra ver os resultados da investigação, Rafaela?”,
indago, assim que ela se senta diante de mim.
“Claro, tô super ansiosa”.
Profissionalmente, estendo à moça
um envelope pardo grande, onde contém as fotos que imprimi. Se ela resolver
também dar uma espiada nas filmagens, mostro os vídeos em meu laptop.
“Olha, Rafaela, assim que você examinar todo o material recolhido, eu
tenho umas coisas pra te falar”.
Ela abre o envelope com muita
serenidade, dirige a mim um olhar um tanto congelado, tranquilo demais pro meu
gosto. Como se estivesse tentando mascarar alguma coisa. As primeiras fotos
deslizam pelos seus dedos, enquanto ela parece analisar cada uma. Não sei por
quê, mas estranhamente me sinto diante de uma esposa conferindo as peripécias
extraconjugais de seu marido; Rafaela não tem um relacionamento com esse cara,
não há motivo para ela estar com uma postura de mulher traída, prestes a ver um
mundo obscuro se descortinar. Do meu lado, eu apenas espero que essas fotos
causem alguma rejeição, que façam com que ela encare o professor Gustavo como
um homem que vive como um solteiro normal, principalmente um solteiro com quem
ela não tem e nem deve ter laços mais íntimos.
“Chega, não quero mais ver”, anuncia ela, pondo o envelope sobre
minha mesa e as fotos sobre o envelope.
Gostaria de dizer a ela “eu
entendo”, mas prefiro esperar que ela se esclareça. E aparentemente tudo que
vou receber como explicação são... lágrimas. A moça começa a chorar, do nada.
Um choro que começa tímido, quase como aqueles choros que temos com final de
filme, mas o fluxo do choro dela vai aumentando e me deixando preocupada.
Comovida, ofereço um dos lenços que sempre tenho na gaveta (acredite, aqui na
ANNA a gente jamais pode ficar sem lenços para possíveis momentos assim).
“Toma aqui, querida. Não fica assim! Olha pelo lado bom: você não
precisa mais ficar preocupada por gostar desse professor. Ele já tem alguém.
Você já tava toda bolada porque gosta dele e tem namorado. Agora você tá vendo
que ele também tem uma pessoa. Você não quer sacanear o seu namorado e a
namorada do seu professor, né?”
O rosto de Rafaela se transforma
numa bola inchada e molhada em questão de segundos, uma figura não muito
agradável de se olhar, e então me aproximo dela para prestar algum consolo,
segurar sua mão, dizer algo que uma mãe ou uma irmã mais velha diria...
“Meu bem, esse lenço que eu te dei é pra usar, tá? Passa no rosto, meu
amor, passa! Chorar é bom, mas enxugar as lágrimas também é. Certo?”
Eu sou um desastre mesmo. De vez
em quando a Milena-Sem-Traquejo ataca pra valer. Deve ser porque minha mãe
morreu cedo e eu não tenho irmã mais velha...
“Tarde demais, Milena”, diz Rafaela, entre soluços.
Na linguagem de um cliente usual
da ANNA, “tarde demais” é sempre algo péssimo de se escutar. Fico eriçada de
medo toda vez que escuto isso. Ou isso pode significar fracasso da minha parte,
isto é, tarde demais, Milena, estou tão
apaixonado(a) por essa pessoa que nada consegue me fazer desgostar dela.
Apesar de que até hoje nunca tive algum problema dessa natureza, e os casos que
se aproximaram disso apenas demandaram um pouco mais de esforço por parte da
agência. Ou pode ter o mesmo significado anterior, com o adendo de a pessoa
reclamar o dinheiro de volta. Sávio me mataria.
“Já aconteceu, Milena.”
“Ah, meu Deus, Rafaela. Aconteceu o quê?”
“Eu fiquei com o professor.”
Ok. Por mais incrível que isso
NÃO pareça, eu emudeço. Sim, eu sou formada em Psicologia. Sim, eu uso minha
formação para lidar com os clientes na ANNA. E, sim, parece que acabaram de
passar uma borracha em todo meu conhecimento, e me desligaram da tomada. Tanto
esforço empregado, e a moça cai facilmente na armadilha da paixão... É o tipo
de coisa que faz eu me perguntar se, de fato, acertei ao querer me meter na
vida das pessoas, sob a justificativa de estar ajudando.
“Ok, Rafaela. Tudo bem. Não precisa começar a se martirizar por causa
disso. Agora você tem provas de que realmente não vale a pena apostar numa
relação tão reprovável. Você só teria dor de cabeça tentando se aventurar nesse
terreno perigoso. Aconteceu, né? Fazer o quê? Foi errado, você devia ter
segurado a onda, mas enfim, o que está feito está feito. O bom é que dá tempo
de consertar.”
“O problema, Milena”, ela está chorando menos agora, “é que era eu quem estava com ele ontem. A
mulher loira era eu. Coloquei uma peruca e me disfarcei. E fui me encontrar com
ele no Deleite. Depois fomos a uma
boate e lá passamos a noite juntos”.
Quanto mais eu interajo com
Rafaela, mais medo me dá do que ela tem a revelar. Peraí! Então o nome da
lanchonete-bar do Ivan é Deleite?
Opa, Milena, não é hora para perder o foco.
“Então eu passei a noite toda indo atrás do professor Gustavo, quando
ele tava o tempo todo com você?!?!”
“Exatamente”, ela confirma, terrivelmente envergonhada.
“Você sabia que eu provavelmente estaria investigando, Rafaela. Por que
não ligou pra me avisar que tinha sucumbido à tentação?”
“Me desculpa, eu... Você acha que eu tava raciocinando direito ontem?
Nem pensei em nada”.
“É, não tava raciocinando bem mesmo, e aquele modelito que você tava
usando é a melhor prova disso”.
“O quê?! O que o meu vestido tem a ver com isso?”, protesta
Rafaela, o que aparentemente demostra que o tal vestido foi a única parte
“pensada” na noite anterior.
“Nada, nada, deixa pra lá”, eu desconverso, não é hora de discutir
moda. “O caso agora é que essas provas aí
não valem nada no momento. Vou ter que voltar à ação e continuar investigando”.
“Não. Não precisa, Milena. Eu vou embora”.
“Mas... Como assim?”
“Eu vou pagar o combinado, mas... Tô me sentindo mal por você ter
perdido seu tempo. Tô me sentindo tão envergonhada. E infelizmente não sei se
vou conseguir me desapaixonar pelo Gustavo”.
De menina frágil e chorona ela
passa à mulher decidida, de posicionamento firme. Estou com as mãos atadas.
Apesar de receber meu pagamento, não gosto nada da sensação de dever mal
cumprido. Meio que perde o sentido da ANNA existir. Insisto em continuar no
caso, mas a determinação de Rafaela me impõe uma barreira. E, óbvio, estou de
coração partido em saber que, sabe-se lá até quando, ela terá de conviver com
uma paixão que pode lhe render muitos, muitos problemas.
“Posso pelo menos levar as fotos comigo?”
“Claro, querida”.
Rafaela atravessa a porta, indo
embora carregando nos ombros sua vergonha de sabor ambíguo: perturbadora, porém
saborosa. E eu fico com uma espinha incomodando na garganta, que vai se
transformando uma frustração pastosa e insossa, difícil de engolir.
Ao longe, ouço Bitter Sweet Symphony, do The Verve. Abro os olhos. Estava
sonhando e a música me acorda, porque na verdade esse é o toque do meu celular.
Já é bem tarde. Ao esticar o braço em direção a uma cadeira que sempre fica ao
lado da minha cama, mil pensamentos sobre quem pode estar ligando inundam minha
mente. O ser humano moderno, mesmo podendo usufruir da maravilha que é o
identificador de chamadas no celular, sempre tece mil teorias sobre quem está
ligando e o que aquela pessoa quer. É uma mini ansiedade da qual todos nós
compartilhamos, instinto coletivo. Ainda mais de madrugada.
Mas estou tão embriagada de sono
que nem checo a tela. Tenho certeza que havia um nome legível, além do número
da pessoa.
“Oi”, atendo com uma voz muito baixa, e faço isso um pouco de
propósito, pra deixar bem claro que fui in-co-mo-da-da.
“Alô, Milena. Sou eu, a Rafaela”.
Meu processador mental lentium faz uma espécie de triagem
tentando identificar no banco de dados quantas Rafaelas eu conheço. Aí me
recordo que só conheço uma, a bendita cliente com quem me encontrara pela
última vez no dia anterior. Isso parece levar uma eternidade de segundos e a
garota com certeza sacou que eu demorei a responder em tempo hábil.
“Desculpa te incomodar às duas da manhã, mas eu necessitava falar com você”.
“Sei... Mas não dava pra ter esperado até de manhã? Você sabe que horas
são?”
“Sim, ué. Eu acabei de dizer, são duas da manhã. Duas e doze, pra ser
exata”.
Eu não tinha prestado atenção,
mas também, estou fazendo um esforço hercúleo para interagir a essa hora da
madrugada, reorganizando neurônios e tudo mais. Se ela estivesse falando
coreano eu nem teria notado a diferença.
“Pode falar, Rafaela”, eu a encorajo a ir em frente, mesmo sem ter
quem me encoraja a lidar com ela agora.
“Eu estava olhando de novo aquelas fotos que você tirou, sabe? E
reparei que em todas elas o Gustavo está falando com pessoas na boate. Tipo,
ele está apertando as mãos, abraçando, pegando no ombro, sei lá. Ele conhece
todo mundo, entendeu?”
“Hummm... E daí?”
“E daí que na hora eu não percebi tanto isso. Mas agora, olhando nas
fotos, isso é horrível. Que tipo de pessoa conhece todo mundo numa boate? Ele é
chegado do porteiro, do balconista, de alguns frequentadores, do DJ, dos garçons... Ele é um verdadeiro rato de
boate!!!”
Já estou me sentindo mais
desperta enquanto ela demonstra sua revolta com o comportamento baladeiro de
Gustavo. Eu também não tinha percebido isso nem durante e nem depois da
investigação.
“Me diz, Milena. Que tipo de mulher eu seria se saísse com um rato de
boate? Meu Deus, eu é que não quero uma vida dessa pra mim. Parece que a boate
é tipo uma casa de parentes... Ah, não, não mesmo. Olha, muito obrigada, viu?
Se tem uma coisa que eu odeio, é gente muito festeira. Ainda bem que eu tava
disfarçada”.
“Que bom, Rafaela”, minha alegria é a mais genuína possível. “Eu fico muito feliz por você. Viu como eu
tava certa? Ainda dá tempo de consertar.”
“Você é demais. Seu trabalho foi fantástico. Obrigada mesmo. E, mais
uma vez, desculpa por te acordar. Tchau!”
O fato de ter me acordado se
torna apenas um detalhe perto da excelente novidade. Aquilo encheu tanto meu
coração que reacendeu minha paixão pelo trabalho da ANNA. E, claro, agora está
difícil voltar a dormir. A mente está um turbilhão.
Sem nada melhor pra fazer, a
música do The Verve fica tocando em minha cabeça. Aproveito e a ponho logo pra
tocar no MP3 do telefone, enquanto começo a zanzar pelo Facebook, até o sono tomar vergonha na cara e voltar a se apossar
de mim.
Seis solicitações de amizade.
Deixa eu ver quem andou simpatizando com a minha cara e conferir se é
recíproco. Kellison Dotharki e Arthur-Sabe-Tudo-Sobre-Filmes estão no meio, e
nem penso duas vezes antes de excluir seus pedidos.
Abro as caixas de e-mail da
empresa e a minha particular. Propagandas, notificações de sites dos quais
participo, clientes enviando prévias de seus dramas passionais etc. Uma
enxurrada de mais do mesmo. Mas, milagrosamente, meus olhos conseguem pousar
numa mensagem diferente. Ivan Castro entrou em contato comigo. O bonitão dono
do bar Deleite, o loucão que
coleciona canudos usados. Não mencionei meu sobrenome e nem onde trabalho, mas
de algum modo ele me achou. Que stalker filho
da mãe!!
De repente, após a excelente
notícia do potencial desapaixonamento de Rafaela, me sinto aberta a pequenas
empolgações da vida. E, mesmo achando estranho o contato do colecionador, não
posso negar: é uma ótima forma de terminar a noite. Não importa se já passa das
duas e meia da madrugada, sinto que é hora de responder uns e-mails.
Nenhum comentário:
Postar um comentário