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24 de agosto de 2015

DESAPAIXONANTE -- PRÉ-ESTREIA DA 2a TEMPORADA -- EPISÓDIO 2x01: O COLECIONADOR


Olá, meu povo!! Saudades de Sávio e Milena? Bom, eu prometi que a série retornaria para sua 2a temporada apenas em Setembro, e isso de certa forma continua sendo minha intenção. Maaaas, como hoje é meu aniversário, quis fazer esse agrado e antecipar o episódio de estreia da temporada. Eu estava tão ansioso pela continuidade, então espero que vocês curtam. Para quem realmente gosta da história, este episódio está gigante e foi preparado com muito carinho. É uma pré-estreia, então o trato que fiz de voltar em Setembro ainda está de pé, mas agora só se aplicará do episódio 02 em diante, ok? Agora chega de papo e... Divirta-se!!

(Narrado por Milena)

Eu poderia estar amargando o fim de meu namoro, choramingando para as minhas amigas, me empanturrando de chocolate, ouvindo as mais tristes da Adele e vendo o fantasma do Enzo em qualquer elemento da natureza. Mas eu nem posso dizer que tenho amigas, por exemplo. Chocolate eu como em qualquer ocasião, comigo não tem dessa (desde quando uma mulher gordinha e, ahn, desencanada com isso, precisa de motivo pra comer chocolate?). As músicas da Adele, por alguma razão curiosa, não me afetam emocionalmente, o que já me fez desconfiar se essa indiferença não é, na verdade, psicopatia. Estou vivendo a vida normalmente, numa boa mesmo. Eu estava atrás de uma forma de terminar o namoro com Enzo há um tempão. E do nada o cara me vem com uma história de que estava perdidamente fisgado por uma outra mulher, e pá! Terminou tudo comigo. Tipo, como isso não poderia ser uma bênção? Eu fiquei protelando por tanto tempo, que a coisa toda aconteceu sem eu precisar me esforçar. Ora, é óbvio que, se aconteceu, é porque tinha que acontecer.
Mas eu sou humana, e mais do que isso, mulher. Claro que ainda estou curiosa pra saber quem foi a cretina que fez a cabeça do Enzo, um ser que aparentemente fazia o tipo perfeito de homem, que jamais poderia se balançar por uma qualquer. Se isso for verdade, logo ela não é uma qualquer. No entanto, enquanto isso não pode ser desvendado, eu não vou ficar em casa estagnada, apenas vivendo para trabalhar. Milena Kerber? Não mesmo.
Nos últimos dois meses, tive alguns encontros, nenhuma grande coisa. Como eu disse, sou humana. Sinto o peso da solidão, preciso de companhia. Não posso ter isso com Sávio, pois todo mundo sabe que ele é quase um irmão pra mim e, em termos de companhia masculina, não estava a fim de sair com um irmão. Então lá fui eu, com a cara e a coragem, aceitar uns convites pra jantar ou ir ao cinema de alguns pretendentes que vinham me azilando há um tempo (ainda há quem fale “azilando”? Parece tão 2010, e hoje até mesmo as expressões e gírias estão ficando rapidamente obsoletas, na mesma velocidade que os telefones celulares).
Meu primeiro encontro foi com um moço chamado Arthur, fomos ao cinema assistir ao Exterminador do futuro: gênesis e até hoje eu estou sem saber se era um reboot, uma continuação ou uma trama paralela, visto que o rapaz ou ficava me contando detalhes dos bastidores da produção do filme e outras informações desinteressantes no momento ou tentava criar um climinha romântico, chegando a tentar tocar na minha mão “sem querer” umas dezesseis vezes ao longo do filme. Arthur fora da lista? Com toda a certeza.
Depois saí pra comer num restaurante japonês com o Frota. Ele é policial, então geralmente atende pelo sobrenome. Ainda bem, porque eu passei a noite toda temendo por não recordar do seu primeiro nome, mas ainda acredito que seja Abmael ou Flávio. Frota era divertido, não era do tipo nerd pavão como o Arthur, a fim de ficar exibindo todos os seus conhecimentos da cultura pop. O problema é que vez ou outra ele deixava escapar que ainda nutria sentimentos pela ex-namorada (nota para os homens: se vocês ainda sentem algo pela ex-namorada de vocês, tentem disfarçar melhor quando estiverem com outra mulher num encontro, porque não é nada divertido testemunhar o seu sorriso enquanto você demonstra a maneira que a fulana comia o temaki). Frota está fora da lista? Sim, e com altíssimas chances de jamais voltar pra ela.
Por último, saí com um amigo do Sávio, o Kellison. Sim, eu sei o que você está pensando: “Mas, Milena, já imaginou se você se apaixonasse por esse cidadão? Seus amigos iriam te zoar pro resto da vida ao ver no Facebook: MILENA KERBER ESTÁ EM UM RELACIONAMENTO SÉRIO COM KELLISON QUALQUER COISA”. Kellison!! Que nomezinho... peculiar, não? Antes fosse esse o problema, de verdade. O caso é que fomos a uma espécie de lanchonete-bar no centro da cidade, meio badaladinho porque abriu recentemente. Lugar simpático, perfeitamente encaixado nessa modinha de locais gourmet. A proposta do Kellison foi fazer um programa jovial e ao mesmo tempo sofisticado. Fiquei seduzida pela ideia e por isso topei. Ele disse que ia fazer o pedido “pra poder me surpreender”, segundo suas próprias palavras. O que chegou à nossa mesa, então, foi algo parecido com um crepe, só que com uma massa temperada com noz-moscada, com recheio de carne e queijo e um molho branco levemente acebolado. Estava delicioso, mas quase perdi o apetite quando resolvi entrar numa de explorar o território desconhecido que era o moço.
“O Sávio me falou que você adora estudar línguas”, mencionei, para ver se desencadeava uma conversa produtiva e culta.
“Ah, sim, sim. Duas, pra ser mais específico. Tenho me empenhado bastante. Uma delas eu já tô quase dominando.”
“Que bacana. Quais são essas línguas?”
“A que eu já estou quase craque é o dialeto Dothraki. A outra é o bom e velho inglês, que tá sendo um pouco mais difícil.”
Quase me engasguei com o “crepe gourmet”. Dothraki?! Caramba, Sávio, olha o que você me arranja!!
Dothraki não é aquela língua que falam em Game of Thrones?”, perguntei, só pra ter certeza do nível de bizarrice a que eu estava exposta, apesar de saber o que ele iria responder.
“Exatamente. Eu andei assistindo umas aulas no Youtube. Coisa fina mesmo!”, elogiou ele, fazendo aquele sinal de ok com o polegar e o indicador formando um círculo. Aí eu percebi que não havia chance de ele estar brincando. Mas o pior veio depois:
“E o inglês, Kellison? Que curso você tá fazendo?”
“Ah, que curso nada! Eu aprendo só vendo Dora, a aventureira. É altamente pedagógico e instigante.”
Não deu pra segurar, gente. Eu inclinei a cabeça pra trás e abri uma gargalhada que foi um escândalo. Não esperava que o tal do Kellison fosse se revelar um verdadeiro comediante, e aquilo me abriu a esperança de que a noite poderia ser salva. Afinal, que mulher não curte um homem divertido? Ainda rindo, voltei o olhar pra ele, que mantinha o rosto compassivo e um tanto alheio ao porquê de eu estar me divertindo tanto. Foi então que notei que ele tinha falado sério. Estar na casa dos 30 anos e assistir Dora, a aventureira na TV diz muito sobre uma pessoa. Especialmente se ela não menciona a presença de um sobrinho ou uma criança qualquer durante seu momento de lazer televisivo. Diz muito sobre mim, aliás: que Kellison não é o tipo de cara que eu estou procurando. E foi assim que eu zerei a minha lista de encontros temporariamente.


Aqui estou eu, na minha sala segura no escritório na ANNA, cuidando muito bem da minha vida profissional. Sávio já está na sala dele, e ainda zomba de mim por ter me jogado na cilada que ele resolveu chamar de “Kellison Dothraki”. Ele jurou que não sabia que o Kellison estava quase fera no dialeto criado para a série do momento, e sua surpresa com o próprio amigo o fazia se deliciar ainda mais pela furada que foi o nosso encontro. Ah, Sávio, se eu fosse vingativa... Se bem que isso pode ser aquela coisinha chamada “volta do anzol”, ou seja, eu passei incontáveis dias avacalhando com ele por causa daquela história que ele descobriu sobre seu cantor preferido, que a vida tratou de recompensá-lo ao me colocar numa situação quase tão ridícula quanto essa. De qualquer forma, ficarei mais cautelosa com futuras indicações de encontro dadas pelo Sávio.
Madonna bate na porta, eu a autorizo a entrar. Ela anuncia que a nova cliente já está ali para me ver. Peço gentilmente a Madonna que encaminhe a moça, enquanto pego o e-mail que ela me mandara há três dias, contendo algumas informações preliminares.
“Bom-dia, com licença”, diz a moça chamada Rafaela, uma jovem pequenininha, toda graciosa e toda educada, com um sorriso encantador e gentil.
“Olá, bom-dia. Seja bem-vinda à ANNA. Fica à vontade. Eu sou a Milena. Você aceita uma água, um café?”
“Não, obrigada”, Rafaela fala enquanto aponta a cadeira à frente da minha mesa, ao que eu gesticulo com a cabeça que ela pode se sentar.
“Então, Rafaela, eu tô aqui com o e-mail que você me enviou há alguns dias. Me fala mais do seu probleminha com o professor”.
“Pois é, eu não tô mais aguentando. Eu realmente preciso de ajuda. É uma situação que não pode acontecer, sabe. Não posso colocar em risco o relacionamento com o meu namorado, eu amo meu namorado. Então quero me desapaixonar antes que aconteça o pior.”
“Por pior você quer dizer o quê, exatamente?”
“Sei lá... Ficar com o professor ou...”
Assinto com a cabeça que estou entendendo. O “ou” deixa bem claro a intenção de que ela tem alguma expectativa, talvez inconsciente, de ter algum envolvimento com o tal professor. No e-mail enviado pra mim, Rafaela brevemente sinalizou que ela andava de paquerinha com um professor da faculdade, mas que ama o namorado e não quer ceder ao charme do cara. Bonito pensamento. Mas se ela tem tanto receio assim, por que simplesmente não cortou o contato com o professor, deixando tudo apenas no âmbito acadêmico? Teria sido muito mais barato do que contratar o serviço da empresa.
“Umas perguntas antes de fecharmos um contrato, ok? Se você tem tanto receio de se envolver com esse professor, por que não cortou o mal pela raiz? Já que você ama tanto seu namorado como fala, por que insistir em manter contato com esse homem?”
“Não sei. Ele é tão... ele é interessante. É charmoso, tem uma boa conversa, me entende.”
“Seu namorado não é charmoso, interessante e nem tem uma boa conversa?”
“Sim, claro. Eu o amo”.
“Sei. Há quanto tempo você tá namorando?”
“Um ano e meio, quase dois anos”.
“E há quanto tempo você conhece o professor?”
“Uns três meses, eu acho”.
“Seu namoro vai bem? Andam brigando muito, discutindo por qualquer coisa? Ou se vendo pouco?”
“Não, não, a gente se vê várias vezes na semana. Nossas brigas são normais, como qualquer casal. Eu amo o meu namorado”.
“Hum... Você repete muito isso, Rafaela. Eu diria que é mais pra si mesma do que pros outros, é como se fosse um mantra pra você acreditar nisso, entende?”
Ela faz que vai protestar, mas aparentemente é confrontada com alguma verdade interior, então curva a cabeça e dá um suspiro de preocupação.
“Você vai poder pegar meu caso?”, indaga, enfim.
“Ah, minha querida! Pode apostar que vou”, declaro eu, muito confiante. “Pega esse formulário, por favor, e preencha”.

O problema de Rafaela não é atípico. Muitíssimo pelo contrário. Se for pra colocar na balança, estatisticamente falando, as pessoas se apaixonam com mais facilidade por alguém além de seus relacionamentos fixos do que se desapaixonam. É também por isso que a ANNA existe, pois mesmo seguindo um caminho irracional e contrário ao que gostaríamos, quem é pego na teia da paixão proibida não se esforça pra se desapegar. Ou, se faz algum esforço, é mais para ter uma sensação de recompensa moral do que para realmente sair da situação. Tipo, Rafaela nos procurou (esse é o seu esforço), mas ela não deu garantia alguma de que vai trabalhar para diminuir a “amizade” (ou seja lá o que for) com o professor. A pessoa prefere utilizar um serviço profissional como o nosso a ter que sacrificar uma relação que ela sabe que indica perigo. No dia que eu me aposentar, darei palestras gratuitas sobre técnicas avançadas em desapaixonamento, porque olha...
O tal professor, Gustavo Dutra, leciona umas três disciplinas no curso de Odontologia que Rafaela faz, então ela tem pelo menos mais alguns semestres para encontrá-lo. Eu lhe dei a ideia de trocar de faculdade, mas ela falou que as mensalidades eram bem em conta porque a mãe é amiga da reitora. Desapaixonamento forçado pela distância estava fora de cogitação. E já fui logo desarmada quando ia sugerir que mudasse de curso então, mas aí ela quase deu um troço alegando que a Odontologia sempre foi o sonho da vida dela. Maninha, tá complicado...
O namorado de Rafaela também é estudante universitário, mas numa faculdade diferente. Ele poderia mudar de faculdade, mas conseguiu recentemente um estágio excelente onde está estudando, invalidando temporariamente a possibilidade de Rafaela tê-lo por perto e, assim, evitar o contato com o professor Gustavo. Bom, é melhor eu parar de tentar arranjar soluções mais baratas e assumir que o contrato já foi assinado e eu preciso arregaçar as mangas.
Estou no balcão da (quanta ironia) mesma lanchonete-bar que vim com o Kellison falador de Dothraki. Certifico-me de que ele não está por lá, antes de me sentir confortável para pedir um chá gelado ou algo igualmente gostoso e não-alcoólico. Mas só estou aqui porque segui o professor. Ele aparentemente está aguardando alguém, e eu espero muito que não seja minha cliente, porque se eu a visse aqui seria capaz de armar um barraco com ela e jogar em sua cara que ela tava dificultando demais o meu trabalho.
Uma chuva começa a desabar impetuosa, assim do nada. As pessoas se entreolham, bastante surpresas pelo barulho intenso que se instaurou por conta do temporal que está caindo. O único momento em que alguém parece notar minha presença é justamente quando a chuva inicia, e um homem ao meu lado se vira em minha direção, me olha e sorri, como se dissesse “caramba, mas que chuva maluca, né?”. Com um ligeiro sorriso, faço-o entender que também não esperava.
Ele é um negro bastante bonito, as primeiras coisas que qualquer mulher notaria nele. Afinal, o que mais poderia ser notado? Seu rosto é a única coisa possível de se analisar naqueles rápidos segundos de contato visual provocado pelo ruído de chuva no telhado.
“Chá gelado de abacaxi, por favor”, eu peço, mas a atendente faz uma careta tão azeda que eu contraio os lábios em negação por não ter uma alternativa em mente pro caso de não ter chá gelado.
“Com licença”, o homem ao meu lado resolve se intrometer, “posso te dar uma sugestão?”
“Pode, mas...”, eu fico meio atordoada, porque — meu Deus!— que voz é essa? Tão bem articulada, cadenciada e grave sem soar como um vilão de desenho.
Ele me olha, aguardando que eu continue após o “mas”.
“Sim, diga. Qual é a sua sugestão?”
“Experimente um drinque sem álcool que eles fazem aqui de laranja e maçã. Tenho certeza que vai adorar”.
“Laranja e maçã?”, eu pondero, como qualquer pessoa normal que pondera sobre algo que nunca experimentou.
“Licinha!”, ele chama a moça do balcão. “Me encante, por favor!”
A tal da Licinha, com a mesma cara que me olhou quando eu pedi o chá gelado, volta sua atenção para o rapaz. Percebo que ela não é muito de variar as expressões faciais. Então diz, sem muito entusiasmo:
“Gato, me chama de papel higiênico e vem ter um rolo comigo!”
“Engraçadinha”, responde o rapaz. “Eu disse ‘me encante’, não ‘me cante’. É o drinque. Traz um aqui pra moça!”
Eu rio da confusão. Levo um bom número de segundos até entender que a tal bebida de laranja e maçã tem o sugestivo nome de “Me Encante”. Definitivamente, a investigação ao professor Gustavo está começando a valer a pena. O clima tá descontraído e isso ajuda a aliviar a tensão. Licinha se afasta quase dois metros, até sumir um pouco de vista. Deve ter ido preparar o drinque.
“Eu sou o Ivan. Ivan Castro. Prazer”, ele me informa e estende a mão pra mim.
“Milena”, educadamente eu respondo. “Mas, diferente de você, acho estranho acrescentar o sobrenome.”
Ele dá uma risada muito gostosa, e não sei se estou doida, mas acredito sentir seu hálito roçando em minhas narinas. E é um hálito bom, mesmo eu não conseguindo identificar com o que ele parece.
“Tá gostando do lugar?”
“Não é dos meus preferidos, mas até que é arrumadinho. Mas vacilaram feio em não ter chá gelado”, eu avalio, como se fosse minha primeira vez ali. Pra ser sincera, nem me recordo do nome do estabelecimento.
“Nem tudo é perfeito, né?”
“Pelo visto, você tá sempre por aqui, né, Ivan? Tem até intimidade com a balconista.”
“Nem tanta. Só o suficiente para saber a quem eu tô pagando um salário todo mês”.
“Ah!”, fica impossível disfarçar o quanto estou surpresa por estar trocando uma ideia com ninguém menos que o dono do local. Caraca! E eu meio que dei uma bela mancada ainda há pouco. “Pôxa, me desculpa pelo que eu falei, eu não tinha ideia”.
“Que nada, você é cliente. O cliente sempre tem razão.”
Ele praticamente sorri a cada fim de frase. Esse é o tipo sorrateiro de conquistador, e meu alerta já está apitando para eu ter cuidado com esse sujeito.
“Aliás”, ele prossegue, “é bom vê-la outra vez por aqui”.
“Como sabe que eu já vim aqui?”
“Eu tava aqui no dia daquela sua gargalhada incrível. O rapaz que tava com você devia estar doido pra se enterrar, coitado”.
Licinha chega com meu copo generoso de “Me Encante”; tem até um canudinho jeitoso dentro, coisa mais linda. Antes de provar, acompanho Ivan na recordação do fatídico dia em que me encontrei com Kellison naquele mesmo bar. Damos uma boa risada.
“Uau!”, minha primeira reação quando o drinque desce pela minha garganta. “É realmente delicioso, viu? Refrescante e saboroso”.
Avisto uma mulher loira de vestido justo roxo e sapatos de salto alto adentrar o bar. Ela está com um guarda-chuva e se dirige para a mesa do professor Gustavo. Ocorre-me um pensamento infeliz e maldoso, julgando a moça porque está parecendo uma periguete, ao mesmo tempo em que considero sua periguetice um tanto elegante, só por conta do guarda-chuva em suas mãos. Por um momento eu havia esquecido do que vim fazer aqui. A moça se senta de maneira que fica de perfil para mim, mas dá pra notar que ela parece ser muito bonita, com um decote farto e uma sutil elegância no jeito de se portar. Tadinha, só errou no vestido... Mas, bem, eu não sou do Esquadrão da moda, então vamos eliminar as distrações.
O professor Gustavo e ela não parecem necessariamente amigos, a ocasião na verdade parece um encontro, algo como um “a-gente-se-quer-então-vamos-ver-no-que-vai-dar”. Sim, eu deduzo tudo isso só de olhar.
Termino o drinque, pouso o copo sobre o balcão, até dá vontade de pedir outro, mas por enquanto é melhor me concentrar na missão. É então que vejo Ivan, delicadamente, pegar o canudinho que acabei de usar e enrolar num lenço, guardando-o. 
“Eu faço coleção de canudinhos usados”, explica-se ele.
Pronto! Outro doido varrido... Definitivamente, o problema está em mim: só atraio as piores espécies de lunáticos. Pôxa vida, hein! Tava perfeito demais pra ser verdade...
“E você acha que eu caio nessa?”, eu acabo entrando na onda, pois com certeza eu não sou a mais normal aqui. “É claro que você vai aproveitar meu DNA pra algum experimento macabro, e esse papo de dono de bar é só fachada pra conseguir o que você quer. Eita, caramba!! Tem certeza que esse drinque não tinha álcool?”
Ele ri, gentil como um louco jamais deveria ser, e me fala:
“Fica tranquila, eu coleciono de tudo um pouco. Não é muito normal da minha parte, mas eu garanto que não sou tão estranho assim”.
O professor Gustavo e sua loira saem do estabelecimento, parecendo muito contentes.
“Tenho que ir”, eu digo para Ivan, pegando dinheiro na bolsa apressadamente e estendendo em direção à Licinha.
“Ué, mas já? Eu disse alguma besteira? Olha, desculpa se eu te assustei por causa do canudo...”
“Não, você não fez nada. É que eu preciso trabalhar. Obrigada pela dica do drinque, é muito bom mesmo”.
“Que bom, Milena! Volte sempre!”
Se isso aqui fosse um filme ou seriado adolescente, eu teria dado um jeito de me estabanar no meio do caminho ou derrubar alguma coisa, porque de alguma forma eu fiquei um pouco balançada com o modo como Ivan pronunciou meu nome e, nas entrelinhas, quando ele diz “volte sempre”, eu entendo muito mais do que isso. Eu entendo “volte sempre... pra eu poder te ver de novo”. Posso estar enganada, mas aquele olhar me transmitiu uma mensagem que as palavras ocultaram, talvez para que apenas eu captasse. O cara coleciona canudos babados e eu é que começo a ter alucinações, né? Essa vida pode ser tudo, menos justa.


Dia seguinte, estou novamente em minha sala na ANNA aguardando por Rafaela. Ontem fiz uns belos flagras do seu professor querido dando uns altos amassos na loira que ele encontrou no bar. Foi bastante exaustivo acompanhá-los, porque eles ainda esticaram a noite numa boate bastante frequentada pela classe média. Como eu levo muito a sério meu trabalho, não bobeei e arranjei uma entrada pra tal boate. Fiz o de sempre: fotos, vídeos, anotações no celular (ia ficar estranhíssimo uma moça bonita e desacompanhada usando um bloquinho de notas na balada; além de forever alone, ia dar a maior bandeira).
“Você tá preparada pra ver os resultados da investigação, Rafaela?”, indago, assim que ela se senta diante de mim.
“Claro, tô super ansiosa”.
Profissionalmente, estendo à moça um envelope pardo grande, onde contém as fotos que imprimi. Se ela resolver também dar uma espiada nas filmagens, mostro os vídeos em meu laptop.
“Olha, Rafaela, assim que você examinar todo o material recolhido, eu tenho umas coisas pra te falar”.
Ela abre o envelope com muita serenidade, dirige a mim um olhar um tanto congelado, tranquilo demais pro meu gosto. Como se estivesse tentando mascarar alguma coisa. As primeiras fotos deslizam pelos seus dedos, enquanto ela parece analisar cada uma. Não sei por quê, mas estranhamente me sinto diante de uma esposa conferindo as peripécias extraconjugais de seu marido; Rafaela não tem um relacionamento com esse cara, não há motivo para ela estar com uma postura de mulher traída, prestes a ver um mundo obscuro se descortinar. Do meu lado, eu apenas espero que essas fotos causem alguma rejeição, que façam com que ela encare o professor Gustavo como um homem que vive como um solteiro normal, principalmente um solteiro com quem ela não tem e nem deve ter laços mais íntimos.
“Chega, não quero mais ver”, anuncia ela, pondo o envelope sobre minha mesa e as fotos sobre o envelope.
Gostaria de dizer a ela “eu entendo”, mas prefiro esperar que ela se esclareça. E aparentemente tudo que vou receber como explicação são... lágrimas. A moça começa a chorar, do nada. Um choro que começa tímido, quase como aqueles choros que temos com final de filme, mas o fluxo do choro dela vai aumentando e me deixando preocupada. Comovida, ofereço um dos lenços que sempre tenho na gaveta (acredite, aqui na ANNA a gente jamais pode ficar sem lenços para possíveis momentos assim).
“Toma aqui, querida. Não fica assim! Olha pelo lado bom: você não precisa mais ficar preocupada por gostar desse professor. Ele já tem alguém. Você já tava toda bolada porque gosta dele e tem namorado. Agora você tá vendo que ele também tem uma pessoa. Você não quer sacanear o seu namorado e a namorada do seu professor, né?”
O rosto de Rafaela se transforma numa bola inchada e molhada em questão de segundos, uma figura não muito agradável de se olhar, e então me aproximo dela para prestar algum consolo, segurar sua mão, dizer algo que uma mãe ou uma irmã mais velha diria...
“Meu bem, esse lenço que eu te dei é pra usar, tá? Passa no rosto, meu amor, passa! Chorar é bom, mas enxugar as lágrimas também é. Certo?”
Eu sou um desastre mesmo. De vez em quando a Milena-Sem-Traquejo ataca pra valer. Deve ser porque minha mãe morreu cedo e eu não tenho irmã mais velha...
“Tarde demais, Milena”, diz Rafaela, entre soluços.
Na linguagem de um cliente usual da ANNA, “tarde demais” é sempre algo péssimo de se escutar. Fico eriçada de medo toda vez que escuto isso. Ou isso pode significar fracasso da minha parte, isto é, tarde demais, Milena, estou tão apaixonado(a) por essa pessoa que nada consegue me fazer desgostar dela. Apesar de que até hoje nunca tive algum problema dessa natureza, e os casos que se aproximaram disso apenas demandaram um pouco mais de esforço por parte da agência. Ou pode ter o mesmo significado anterior, com o adendo de a pessoa reclamar o dinheiro de volta. Sávio me mataria.
“Já aconteceu, Milena.”
“Ah, meu Deus, Rafaela. Aconteceu o quê?”
“Eu fiquei com o professor.”
Ok. Por mais incrível que isso NÃO pareça, eu emudeço. Sim, eu sou formada em Psicologia. Sim, eu uso minha formação para lidar com os clientes na ANNA. E, sim, parece que acabaram de passar uma borracha em todo meu conhecimento, e me desligaram da tomada. Tanto esforço empregado, e a moça cai facilmente na armadilha da paixão... É o tipo de coisa que faz eu me perguntar se, de fato, acertei ao querer me meter na vida das pessoas, sob a justificativa de estar ajudando.
“Ok, Rafaela. Tudo bem. Não precisa começar a se martirizar por causa disso. Agora você tem provas de que realmente não vale a pena apostar numa relação tão reprovável. Você só teria dor de cabeça tentando se aventurar nesse terreno perigoso. Aconteceu, né? Fazer o quê? Foi errado, você devia ter segurado a onda, mas enfim, o que está feito está feito. O bom é que dá tempo de consertar.”
“O problema, Milena”, ela está chorando menos agora, “é que era eu quem estava com ele ontem. A mulher loira era eu. Coloquei uma peruca e me disfarcei. E fui me encontrar com ele no Deleite. Depois fomos a uma boate e lá passamos a noite juntos”.
Quanto mais eu interajo com Rafaela, mais medo me dá do que ela tem a revelar. Peraí! Então o nome da lanchonete-bar do Ivan é Deleite? Opa, Milena, não é hora para perder o foco.
“Então eu passei a noite toda indo atrás do professor Gustavo, quando ele tava o tempo todo com você?!?!”
“Exatamente”, ela confirma, terrivelmente envergonhada.
“Você sabia que eu provavelmente estaria investigando, Rafaela. Por que não ligou pra me avisar que tinha sucumbido à tentação?”
“Me desculpa, eu... Você acha que eu tava raciocinando direito ontem? Nem pensei em nada”.
“É, não tava raciocinando bem mesmo, e aquele modelito que você tava usando é a melhor prova disso”.
“O quê?! O que o meu vestido tem a ver com isso?”, protesta Rafaela, o que aparentemente demostra que o tal vestido foi a única parte “pensada” na noite anterior.
“Nada, nada, deixa pra lá”, eu desconverso, não é hora de discutir moda. “O caso agora é que essas provas aí não valem nada no momento. Vou ter que voltar à ação e continuar investigando”.
“Não. Não precisa, Milena. Eu vou embora”.
“Mas... Como assim?”
“Eu vou pagar o combinado, mas... Tô me sentindo mal por você ter perdido seu tempo. Tô me sentindo tão envergonhada. E infelizmente não sei se vou conseguir me desapaixonar pelo Gustavo”.
De menina frágil e chorona ela passa à mulher decidida, de posicionamento firme. Estou com as mãos atadas. Apesar de receber meu pagamento, não gosto nada da sensação de dever mal cumprido. Meio que perde o sentido da ANNA existir. Insisto em continuar no caso, mas a determinação de Rafaela me impõe uma barreira. E, óbvio, estou de coração partido em saber que, sabe-se lá até quando, ela terá de conviver com uma paixão que pode lhe render muitos, muitos problemas.
“Posso pelo menos levar as fotos comigo?”
“Claro, querida”.
Rafaela atravessa a porta, indo embora carregando nos ombros sua vergonha de sabor ambíguo: perturbadora, porém saborosa. E eu fico com uma espinha incomodando na garganta, que vai se transformando uma frustração pastosa e insossa, difícil de engolir.


Ao longe, ouço Bitter Sweet Symphony, do The Verve. Abro os olhos. Estava sonhando e a música me acorda, porque na verdade esse é o toque do meu celular. Já é bem tarde. Ao esticar o braço em direção a uma cadeira que sempre fica ao lado da minha cama, mil pensamentos sobre quem pode estar ligando inundam minha mente. O ser humano moderno, mesmo podendo usufruir da maravilha que é o identificador de chamadas no celular, sempre tece mil teorias sobre quem está ligando e o que aquela pessoa quer. É uma mini ansiedade da qual todos nós compartilhamos, instinto coletivo. Ainda mais de madrugada.
Mas estou tão embriagada de sono que nem checo a tela. Tenho certeza que havia um nome legível, além do número da pessoa.
“Oi”, atendo com uma voz muito baixa, e faço isso um pouco de propósito, pra deixar bem claro que fui in-co-mo-da-da.
“Alô, Milena. Sou eu, a Rafaela”.
Meu processador mental lentium faz uma espécie de triagem tentando identificar no banco de dados quantas Rafaelas eu conheço. Aí me recordo que só conheço uma, a bendita cliente com quem me encontrara pela última vez no dia anterior. Isso parece levar uma eternidade de segundos e a garota com certeza sacou que eu demorei a responder em tempo hábil.
“Desculpa te incomodar às duas da manhã, mas eu necessitava falar com você”.
“Sei... Mas não dava pra ter esperado até de manhã? Você sabe que horas são?”
“Sim, ué. Eu acabei de dizer, são duas da manhã. Duas e doze, pra ser exata”.
Eu não tinha prestado atenção, mas também, estou fazendo um esforço hercúleo para interagir a essa hora da madrugada, reorganizando neurônios e tudo mais. Se ela estivesse falando coreano eu nem teria notado a diferença.
“Pode falar, Rafaela”, eu a encorajo a ir em frente, mesmo sem ter quem me encoraja a lidar com ela agora.
“Eu estava olhando de novo aquelas fotos que você tirou, sabe? E reparei que em todas elas o Gustavo está falando com pessoas na boate. Tipo, ele está apertando as mãos, abraçando, pegando no ombro, sei lá. Ele conhece todo mundo, entendeu?”
“Hummm... E daí?”
“E daí que na hora eu não percebi tanto isso. Mas agora, olhando nas fotos, isso é horrível. Que tipo de pessoa conhece todo mundo numa boate? Ele é chegado do porteiro, do balconista, de alguns frequentadores, do DJ, dos garçons... Ele é um verdadeiro rato de boate!!!”
Já estou me sentindo mais desperta enquanto ela demonstra sua revolta com o comportamento baladeiro de Gustavo. Eu também não tinha percebido isso nem durante e nem depois da investigação.
“Me diz, Milena. Que tipo de mulher eu seria se saísse com um rato de boate? Meu Deus, eu é que não quero uma vida dessa pra mim. Parece que a boate é tipo uma casa de parentes... Ah, não, não mesmo. Olha, muito obrigada, viu? Se tem uma coisa que eu odeio, é gente muito festeira. Ainda bem que eu tava disfarçada”.
“Que bom, Rafaela”, minha alegria é a mais genuína possível. “Eu fico muito feliz por você. Viu como eu tava certa? Ainda dá tempo de consertar.”
“Você é demais. Seu trabalho foi fantástico. Obrigada mesmo. E, mais uma vez, desculpa por te acordar. Tchau!”
O fato de ter me acordado se torna apenas um detalhe perto da excelente novidade. Aquilo encheu tanto meu coração que reacendeu minha paixão pelo trabalho da ANNA. E, claro, agora está difícil voltar a dormir. A mente está um turbilhão.
Sem nada melhor pra fazer, a música do The Verve fica tocando em minha cabeça. Aproveito e a ponho logo pra tocar no MP3 do telefone, enquanto começo a zanzar pelo Facebook, até o sono tomar vergonha na cara e voltar a se apossar de mim.
Seis solicitações de amizade. Deixa eu ver quem andou simpatizando com a minha cara e conferir se é recíproco. Kellison Dotharki e Arthur-Sabe-Tudo-Sobre-Filmes estão no meio, e nem penso duas vezes antes de excluir seus pedidos.
Abro as caixas de e-mail da empresa e a minha particular. Propagandas, notificações de sites dos quais participo, clientes enviando prévias de seus dramas passionais etc. Uma enxurrada de mais do mesmo. Mas, milagrosamente, meus olhos conseguem pousar numa mensagem diferente. Ivan Castro entrou em contato comigo. O bonitão dono do bar Deleite, o loucão que coleciona canudos usados. Não mencionei meu sobrenome e nem onde trabalho, mas de algum modo ele me achou. Que stalker filho da mãe!!

De repente, após a excelente notícia do potencial desapaixonamento de Rafaela, me sinto aberta a pequenas empolgações da vida. E, mesmo achando estranho o contato do colecionador, não posso negar: é uma ótima forma de terminar a noite. Não importa se já passa das duas e meia da madrugada, sinto que é hora de responder uns e-mails.

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