(Narrado por Milena)
A coisa não tá fácil aqui no
escritório da ANNA. Nossa querida secretária descobriu um problema de saúde e o
médico foi taxativo: ela precisa ficar em casa por, pelo menos, um mês. Tadinha
da Madonna! Agora temos que nos virar entre cuidar dos casos e fazer os
trabalhos que a nossa fiel escudeira teria de fazer. No meio de tudo isso,
Sávio e eu concluímos que é interessante encontrar alguém para substituí-la
durante esse período.
Entre análises de candidatos para
a vaga e essa coisa toda, estou ocupada com o caso da vez. Minha cliente se
chama Geórgia Lamarão. Ela só tem vinte e três anos, mas aparenta muito mais.
Não que pareça mais velha num sentido pejorativo. O fato é que ela é muito
despachada, exala uma maturidade incrível, meio que se parece comigo no que
tange à falta de papas na língua, com aquela honestidade ferina, sabe? Ah, e o
ponto que mais chama atenção de cara: ela é uma negra bastante exuberante, deve
ter mais de um metro e setenta, é cantora e faz bicos como modelo plus size e tem um cabelo black lindo de morrer. Confesso que me
sinto diminuta perto de uma mulher desse porte, e a única coisa maior do que
Geórgia é sua autoconfiança. Inveja? Não pouca.
“Mas por que você quer se desapaixonar, Geórgia?”, eu a indago, não
enxergando até então problema algum em uma mulher como esta se entregar aos
desvarios do amor.
“Ah, querida, eu estou ocupadérrima me amando, entende? Eu tô numa fase
maravilhosa na minha vida, mas no momento não é pra ser dividida com ninguém.
Não que eu queira ser egoísta, mas eu já tive paixões e decepções demais pra
não aproveitar a vida apenas comigo mesma, entendeu, gata?”
“Tô entendendo”, digo, sem um pingo de preocupação se estou olhando
para ela como uma verdadeira fã.
“Pois é, querida, mas o problema é esse filho da mãe do Hamilton. O
cara é uma gracinha, mas é uma cilada na minha vida. E eu falo isso porque já
me envolvi com homens do naipe dele, tá compreendendo? É o tipo que não vale
nada, mas vale tudo, se é que você me entende. E eu tô apaixonada, amiga. Mas
tá errado. Quero meu coração livre e leve. Não tô nem um pouco a fim de começar
um relacionamento, porque logo aparecem as regras, as cobranças e eu não tô com
paciência pra isso. Pelo menos não agora. Minha carreira tá linda, tô numa fase
tão boa, tudo tá rolando do jeito que eu sempre sonhei. Não é justo um homem
como Hamilton tomar isso de mim”.
Gente, para tudo!! Ela me chamou
de amiga? Sim, sim, eu reconheço que é apenas jeito de falar. Aliás, coisa que
ela faz bem até demais. Ainda bem que ela tem carisma. Inclusive, é o tipo de
atributo que lhe compensa, pois Geórgia não é exatamente bonita de rosto. E ela
sabe, assim como eu, que beleza
facial não precisa significar tanto quando se tem qualidades bem mais
consideráveis.
“Você acha mesmo que não tem como manter um relacionamento com esse
Hamilton e, mesmo assim, se impor?”, eu pergunto, na típica missão de sondar
o cliente antes que ele tome a decisão importante de pagar pelo serviço.
“Ai, eu acho. O que eu não quero é que alguém fique me enchendo o saco,
entende? Namorar é legal, é gostoso, mas quem sabe outro dia, outro mês.
Imagina, eu tenho uns ensaios belíssimos pra fazer, campanhas e mais campanhas,
viagens para eventos de moda... Preciso da minha liberdade e não abro mão. Pode
me dar o contrato pra assinar, meu amor”.
“Calma, antes do contrato tem o formulário. Vou pegar”.
Ela arrebita o nariz, mas eu vejo
que não é um sinal de arrogância, é só charme. Isso sinaliza que ela está
aguardando os procedimentos que a empresa precisa seguir, inabalavelmente
convicta do que veio fazer aqui. Geórgia sabe que é difícil estar na posição
que ela se encontra: mulher, negra e gorda. Entretanto, com o crescimento do
movimento feminista, da autoafirmação das gordinhas e das lutas contra o
preconceito racial, pode-se dizer que está um pouco mais fácil do que antes. E
ela se comporta como uma diva, alguém que defende suas opiniões de modo muito
firme. Será que ela ministra workshops
para outras gorduchas que deveriam estar mais bem-resolvidas com o peso e sua
própria feminilidade? Não que eu esteja necessitada, mas informações úteis
nunca são demais...
Contrato fechado. Geórgia se
despede no maior glamour, enquanto eu
mal tenho tempo de admirá-la, pois o telefone da recepção começa a tocar.
Preciso encontrar a substituta de Madonna o mais rápido possível.
“Agência do Negócio Nada Apaixonante, Milena, bom-dia!”
“Já tomou café, meu bem?”
E a voz dele me derrete como
manteiga no asfalto. Ou como barra de chocolate no deserto do Saara. É, minha
gente, a paixão nos faz cair nas armadilhas dos exemplinhos toscos para
descrever o que estamos sentindo. Que piegas!
Respondo que sim, pois eu tenho
uma Amélia muito eficaz em casa que atende pelo nome de Dana, a “boadrasta”,
cujos cafés e outros quitutes matinais não falham. Mas saber que ele se importa
tanto comigo é igualmente tocante. Ivan e eu ainda não oficializamos algum
namoro, porém um sabe muito bem o quanto arde no outro o desejo de levar a
relação mais adiante.
“Por que você não me ligou no celular?”
“E estragar a surpresa me entregando no identificador? Achei muito mais
emocionante ligar pro telefone fixo aí da agência. Sempre adorei
relacionamentos com essa pegada à moda antiga”, ele se justifica e finaliza
com uma risada.
“Emocionante, é? Ah, não exagera, você tá se achando muito”.
“Em compensação eu me perdi em você”.
“Hum”, resmungo, no fundo estou que nem uma idiota por dentro,
deliciada com essas fofuras, “Vejam só! Parece que alguém terminou o curso de Paquera Avançada com o
Professor Girafales”.
“Hahahahaha, nossa! Nem eu falo ‘paquera’, Milena”.
“Ah, que se dane!”, gargalho e isso me deixa entregue de bandeja e
com uma maçã na boca.
“Bom, já que não deu pra rolar um café-da-manhã, que tal um
piquenique?”
“Piquenique?!”, eu penso. Não soa romântico demais?
Não soa cor-de-rosa demais? Não soa estupendamente bonito demais? Unicórnios
flutuam no meu cérebro vulnerável.
“Olha, Ivan, eu não sei. Vou entrar num caso novo e... Não sei mesmo.
Quando você gostaria?”
“Não sei, eu realmente tava esperando você me dar uma noção, já que
você não tem um horário específico de trabalho. Mas vamos fazer assim: quando
estiver livre para um piquenique num fim de tarde, me avise. Sua única parte
vai ser essa. O resto é comigo”.
“Certo...”, eu sei que estou soando desconfiada agora. “Mas e o lugar?”
“Acabei de dizer, meu bem. O resto é comigo”.
“O resto é comigo” deve
significar “eu vou te surpreender de novo”. Esse homem não existe.
“Te mando mensagem mais tarde, pode ser?”
“Claro, Ivan. Até mais tarde então. Beijo!”
“Beijo!”
A diferença entre Ivan e Enzo é
que, apesar de Enzo ter sido um ótimo namorado, tudo nele era muito previsível
e perfeito demais. Com o Ivan eu me sinto sempre em expectativa, ele não força
as coisas, ele me dá espaço, tempo, respeita meus limites e, o mais legal de
tudo: eu ainda o estou decifrando. Como um livro que possui boas surpresas a
cada página, que te instiga a prosseguir.
“Bom-dia!”, alguém fala comigo, ao mesmo tempo em que volto para o
mundo real.
Uma moça baixa, de cabelos lisos
pretos escorridos até os ombros, com franja, olhos graúdos e uma boca ligeiramente
aberta me encara. Ela usa um par de botas marrom bem esquisitinho. A mão
esquerda segura uma pasta e a direita, um jornal.
“Bom-dia. O que você deseja?”, pergunto, interessada.
“Eu vim pelo anúncio de emprego”, ela ergue o jornal na minha
frente, apontando um pequeno texto circulado com um marcador azul. E completa: “Meu nome é Rita Lina”.
O cara se chama Hamilton Avelar.
A conta do Instagram dele
(@hamiltomatecomgracinha) é bem divertida, porque ele faz o que vários usuários
fazem (posta fotos de comida), mas de uma maneira interessante (ele coloca
frases em pequenos pedaços de papel ao lado das comidas, geralmente
bem-humorados). Por exemplo: um papel ao lado de um prato de sopa diz: “Vcs
viram o Hamilton por aí? Avisem que eu tô dando sopa hoje”. Outro papel,
encostado num prato que tem uma fatia de bolo, tem escrito o seguinte: “Cadê o
Hamilton pra me dar cobertura? Espero que ele não me dê bolo”. Meio patético e
babaca, mas um patético e babaca do bem. Eu até ri. Tem gente que curte esse
tipo de trocadilho. Deve ser por isso que Geórgia gosta dele, afinal, gordinhas
que não são neuradas com o peso também não tem problema nenhum em assumir seu
interesse por comida, sem qualquer medo de serem taxadas por isso. E um Instagram que brinca com comida merece
ser apreciado pela diversão (mesmo duvidosa) que oferece.
Próxima rede social: Twitter. Repleto de erros ortográficos,
além de apenas um punhado de tweets
banais, que citam o que realmente ele esteve fazendo, fez ou fará. Nada
interessante. A não ser que você se empolgue com um sujeito que vê graça em
rinhas de galos, por exemplo, o que pessoalmente eu considero de uma estupidez
enorme. Acho completamente imbecil a pessoa que tem como entretenimento animais
em situações de violência.
Os erros gramaticais certamente
não vão desapaixonar Geórgia, porque ela também deixa um pouco a desejar nesse
quesito. A apreciação por brigas de galos pode ter algum potencial. E,
honestamente, Sr. Arroba Hamiltomatecomgracinha, eu espero que surta efeito,
porque o senhor não merece uma mulher do quilate de Geórgia Lamarão.
Hamilton também está no Facebook. Nenhuma grande coisa. Fotos de
festas com a família, amigos e... Geórgia. Há pelo menos uma dúzia de imagens
em que eles aparecem juntos. Com direito à marcação na foto, e legenda brega e
romântica: “O amor não se explica, se vive”. Amor? Bom, pelo menos não há
registro de que eles estejam num relacionamento sério. Deduzo que isso é coisa
da Geórgia, que não quer se vincular mais seriamente, para não deixar que algum
comprometimento emocional “estrague tudo”, como ela deixou a entender que seria
se embarcasse numa relação com Hamilton. Mas, no fim das contas, o que eles
têm?
Estou exausta de xeretar na
Internet. Saio da sala e encontro a nova secretária numa situação curiosa. Ela
está com os olhos fechados, murmurando palavras que eu não consigo identificar,
com uma das mãos na cabeça e a outra estendida para o alto. Se ela fosse um ser
humano normal, eu diria que está orando (e como saber se não está?).
Não sei o que deu em mim para
contratar essa moça. Durante a entrevista, li no currículo dela que ela fala
inglês mediano, espanhol regular e um tal de Valpixiano extra-fluente, o que,
confesso, jamais sonhei que existisse em termos de habilidades linguísticas.
“Desculpa, mas o que é Valpixiano?”, indaguei na ocasião.
“É a língua oficial do planeta Valpixia”.
“Essa não”, pensei, “outra nerd do estilo do Kellison, aquele amigo
do Sávio, só que essa parece um pouquinho mais pancada”. Tantas línguas no mundo e essa galera insiste
em aprender essas patacoadas que a mídia inventa... Minha primeira reação foi
querer mandá-la sumir da minha vista depressinha.
Mas, curiosa e teimosa como sou,
resolvi dar uma chance, o que significava um risco para a minha paciência pouco
dada a essas coisas:
“Ah, esse Valpixiano é tipo Klingon, do Star Trek?”, arrisquei, para aparentar que eu não
estou tão alheia ao mundo geek.
“Klingon?”, ela quase deu um pulo da cadeira, como quem acabara de
ouvir um xingamento. “Klingon é para
amadores. A sintaxe do Valpixiano é muito mais complexa e refinada. A não ser
que você fale um Valpixiano mais crioulo, o que não é necessariamente mais
fácil que Alto Valpixiano. Mas, mesmo assim, até o crioulo ainda é mais
complexo que o Klingon. Nossos verbos irregulares são irregulares mesmo”.
“Obrigada por explicar”, esforcei-me para ser gentil, mas de um
modo a encerrar o assunto, pois não tava a fim de uma aula de Valpixiano. “Me diga uma coisa, Rita, então você
estudou no Santo Cristo? Caramba, que legal! E na mesma época que eu. Em que
turno você estudava?”
“À tarde”.
“Eu também. Mas não me lembro de você”.
“Eu só estudei dois anos lá, tinha poucos amigos. Sem falar da época
que eu fui abduzida, nesse período perdi um monte de aulas. Mas, fazer o quê?
Quando os Valpixianos te escolhem, já era”.
“Hum...”
Eu só conseguia pensar na
urgência que eu tinha para arranjar uma secretária nova e mal me sobrou tempo
para avaliar criticamente o que eu tinha diante de mim. Num mundo onde as
coisas funcionassem corretamente, essa maluca já teria perdido a vaga. Mas não,
esse é o mundo de Milena.
“Rita, você sabe atender telefone, fazer café, usar um computador?”
“Sim, claro”.
“E você sabe que esse emprego é apenas temporário, né?”
“Tudo é temporário”.
“Vou fazer um contrato e você já pode começar amanhã mesmo”.
Ela sorriu, pronunciou alguma
coisa estranha (provavelmente “graças a Deus” em Valpixiano, ou “graças ao que
quer que seja” que os lunáticos que já passaram uma temporada em Valpixia
acreditem).
De volta ao presente, aviso Rita
de que estou saindo e não sei a que horas volto. Ela abre os olhos como quem
acorda repentinamente de um sono. Balança a cabeça assentindo que entendeu a
mensagem e se recompõe do flagra que eu acabei de lhe dar. Não quero explicações,
pra ser honesta.
Tenho um encontro marcado com
Geórgia. Obviamente, havia sugerido nos encontrarmos na agência, mas ela
praticamente insistiu que eu deveria conhecer o estúdio fotográfico de um amigo
dela, onde rolaria uma sessão de fotos. Chego e sou convidada a ir para o
estúdio propriamente dito, ou seja, a sala onde as modelos estão sendo fotografadas.
Entro um tanto acanhada, já me sentindo um peixe fora d’água por estar rodeada
de pessoas de uma área distinta da minha, além das garotas circulando de um
lado para outro, ansiosas, maquiadas, acertando cabelo, roupa, reclamando disso
e daquilo, todas muito bonitas em seus corpanzis portadores de uma invejável
autoaceitação. E tem de todos os tipos: altas, baixas, loiras, morenas, umas
mais encorpadas, outras menos.
Uma magrela de trança e usando
uma blusa regata para diante de mim, intrigada. Não deixo de notar a ironia,
pois só há rechonchudas por aqui. Então ela abre a boca e diz:
“Você é nova aqui?”
“Ah! Não, não, eu não sou modelo”.
O olhar dela fica incrédulo, mas
depois ela se toca do desentendimento, desculpa-se e se volta para um cara da
equipe. Já devo me sentir elogiada por ser confundida com uma modelo? Ou devo
ficar preocupada que o meu peso já pareça ideal para figurar entre as meninas plus size? Do jeito que elas estão tão
alegrinhas, estou vendo que preocupação seria tolice da minha parte.
Aceno para Geórgia, que me
devolve um gesto que eu interpreto como que me tranquilizando porque
provavelmente não vai demorar a ir falar comigo. Geórgia está destruidora! Ela
está vestindo um conjunto preto de couro, beeem colado ao corpo, com um
generoso decote. Ela e as outras modelos parecem estar participando de mais uma
dessas campanhas em prol da beleza tamanho G (acabei de inventar o termo... ou
não). Acho válido. A maioria das gordinhas que eu conheço tem rostos lindos, e
em geral tem o humor melhor que o das outras mulheres mais esbeltas. Eu, por
exemplo, se fosse homem, preferiria ter uma fofinha macia para apertar as
carnes.
Fim da sessão. Segundo o que eu
ouço, a mulherada está faminta. Ao que um membro da equipe fotográfica
rapidamente as tranquiliza, respondendo que o lanche está sendo servido. Devo
confessar que estou dando graças a Deus por ter vindo na hora certa.
“Oi, fofa! Bora comer?”, Geórgia me cumprimenta e me convida para o
lanche.
“Oi, Geórgia. Olha, dessa vez eu vou aceitar”, respondo, sonsa da Silva,
pois raramente recuso comida.
Percebo vários olhares para minha
cliente. Mas não olhares interesseiros. São mais como os meus, ou seja,
admiração, fascínio, curiosidade. Geórgia tem um magnetismo natural. Ela é apaixonante,
e isso vai além do conceito físico-sexual. Até eu me sinto apaixonada por essa
mulher. Desnecessário explicar que não se trata de atração amorosa, mas ela me
traz, de alguma forma, inspiração sobre como agir na vida. Desde a primeira vez
em que conversamos.
Sim, eu sei que alguém poderia
contestar minha afirmação, já que eu sou convicta de que todo ser humano pode
ser desapaixonante, e definitivamente acredito que Geórgia também seja. No
entanto, ela é rara. Seu talento para desapaixonar alguém deve estar camuflado.
E não é pecado não descobrir onde ele está.
“E aí, descobriu alguma coisa sobre o bofe?”, inicia Geórgia,
beliscando uma coxinha.
“Ah... É, eu acho que tem uma coisinha...”, estou meio perdida nas
palavras, abobalhada pela ironia existente entre as modelos plus size e as modelos comuns, as
magriças. Enquanto as fininhas precisam se submeter a uma dieta mais rigorosa e
são famosas por serem exímias engolidoras de salada e afins, as cheinhas não se
fazem de rogadas diante de um rango mais pesado. Talvez não exagerem, mas
também não se resguardam do prazer. Estou só adorando tudo isso. E beliscando
uma coxinha também.
“Acha?”, inquire Geórgia, e nesta pergunta com uma só palavra dá
pra sacar que ela está procurando entender por que eu estou aqui, já que eu só “acho
que tem uma coisinha”. Então me explico:
“Geórgia, eu acredito que haja um motivo pra você se desapaixonar do
Hamilton. Eu fiz uma investigação preliminar, mas me parece que isso que eu vou
alegar agora já é uma boa razão”.
“Pode mandar, meu bem!”
Eu mando mesmo (o que quer que eu
esteja dizendo com isso), com direito a envelopinho pardo com fotos. Imprimi
tudo antes de sair da sede da ANNA.
Geórgia abre o envelope,
assustada. Fica claro que ela nunca passou por tal situação. Ok, não vamos
transformar isso na coisa mais comum do mundo.
“Gente, eu tô nervosa agora. O que será que tem aqui?”
“Fotos”, eu estrago a surpresa. Ah, qual é? Dá pra sentir que são
fotos, pela consistência do envelope. O que tem nas fotos é que pode
surpreender.
Geórgia olha a primeira. Não está
esboçando nenhuma reação. Olha a próxima. Nada. Examina a terceira, a quarta.
E, por fim, a quinta. Se ela está segurando a revolta que as fotos lhe causam,
mais uma vez está provando por que é uma verdadeira diva, pois nunca vi um
cliente parecer tão frio diante de algo tão estarrecedor e desconcertante.
“Era pra eu entender alguma coisa só olhando as fotos, Milena?”
“Como assim?”
“Ora, assim assim, ué! O que essas fotos significam?”
“Que o Hamilton é um estúpido!”, eu respondo como alguém que aponta
a obviedade das obviedades. “Nessas fotos
ele está conivente com maus tratos aos animais. Coitados dos galos, Geórgia! E
na última foto ele e uns amigos que tem umas tremendas caras de cachaceiros
estão promovendo uma briga entre gatos. Entre gatos! Dá pra ser mais asqueroso
que isso? Uma pessoa que curte ver animais brigando tem sérios problemas
psicológicos, viu?”
“A gente pode ir lá fora? Tô doida pra acender um cigarro”.
Oi? Cigarro? Mas, Geórgia, isso
não combina com a veneração que eu construí por você, moça...
“Hã... Claro...”
Quando saímos do estúdio
fotográfico e vamos para a calçada em frente ao estabelecimento, Geórgia
calmamente apanha um cigarro na bolsa e o acende. Ela é tão nem-aí que ainda está
usando a roupa do ensaio, e surpreendentemente não dá muita trela para os
olhares gulosos que lhe são lançados na rua. Tá, ela pode continuar sendo
maravilhosa e lacradora, mas tô de boca torta com esse cigarrinho. Não curto.
“Aqueles caras que parecem cachaceiros, nas fotos”, finalmente ela
começa a explicar, “são meus tios e
primos. Geralmente essas reuniões que tem rinhas de galos e brigas de gatos são
na casa de um tio meu. Eu não estou nas fotos, mas geralmente sempre vou a
essas reuniões”.
“Você?”
“Sim, meu amor. Por isso que eu não vi nada demais. Eu me divirto pra
caramba. Coitado dos galinhos, mas enfim, né?”
“Enfim?!”
Se você já foi uma criança
sentada na areia da praia, construindo pacientemente um castelo de areia por
vários minutos ou até horas, só para alguma onda (ou algum imbecil) acabar por
destruir seu delicado empreendimento, certamente pode entender o que estou
vivendo agora. Nunca fui uma criança como a que acabei de descrever, mas
compartilho da dor. A frustração emerge à medida que o castelo desaba.
“Geórgia, você tá me dizendo que você SABIA dessas barbaridades?”
“Sim. E não é pra tanto, linda. Barbaridades. Que exagero! Tá certo que
não é algo muito legal, mas todo mundo faz coisas assim, né?”
“Não, senhora. Gatos e galos nunca serviram para o meu prazer”, eu
solto esta pérola dúbia, da qual me arrependo no ato. Mas dane-se! Minha
revolta e minha desilusão aumentam cada vez que Geórgia tenta se justificar. O
que aconteceu com essa mulher, que há segundos começava a se firmar como um
espelho para mim?
“Ah, tanto faz, bebê. Só sei que esse material que você conseguiu não é
suficiente. Você vai ter que continuar tentando. Que pena, linda!”
Não adianta me chamar de “fofa”,
“querida”, “linda”, mesmo por que essas palavras são meros vocativos no
linguajar de Geórgia.
“Quer saber, Geórgia? Vamos cancelar o contrato!”
“O quê?!?!”
E ela começa a tossir, aturdida
com o que acaba de ouvir de mim. Uma pena que não seja por causa do cigarro.
“Eu pensei que... Eu pensei que você defendesse a causa dos animais,
sei lá. Ou que pelo menos ficasse horrorizada com certas coisas que fazem
contra eles. Como eu, sabe?”
“Bom, eu... Eu não sei, nunca parei pra pensar nisso. Eu acho feio quem
maltrata animais, mas nunca liguei tanto, eu acho. Por que você tá tão chateada
por causa disso?”
“Eu não quero mais trabalhar pra você, Geórgia. Dê você mesmo o seu
jeito de se desapaixonar pelo Hamilton.”
“Queridinha, você endoidou? Eu estou pagando!”
“Tecnicamente, você ainda não
pagou. Então nem precisa pagar, ok?”
Respiro fundo, meio tonta por ver
que caiu a minha ficha. Por algum motivo, eu fiz uma associação equivocada do
fato de Geórgia ser uma mulher bem-resolvida e tranquila com sua aparência e
que ela poderia ser defensora de outras causas igualmente nobres. Um balaio
maluco e irresponsável que se formou na minha mente. Truques da paixão. Mesmo
as não-amorosas.
“Como você pôde fazer isso comigo?”, pareço clamar.
Viro as costas completamente
decidida a partir. Pouco me importa se minha última frase saiu esquisita no
calor do momento, e que Geórgia não esteja entendendo patavinas do que eu quis
dizer com aquilo. Estou me sentindo lesada, lograda. Agora consigo ter um
panorama real dos sentimentos dos
meus clientes ao se deparar com uma pessoa que se revela desapaixonante.
O piquenique vai ser em algum
lugar misterioso. Dois dias se passaram após a decepção com Geórgia Lamarão, e
Ivan está prestes a cumprir sua promessa. Cheio das invencionices como só ele
quer ser, ele me fez pôr uma venda, só para garantir que eu seja realmente
surpreendida quando chegarmos.
“Prontinho, meu bem. Aqui estamos nós. Agora eu vou te ajudar a tirar a
venda”.
Estou sorrindo, sentindo raios de
sol pousando gentilmente sobre minhas bochechas. Tiro a venda. E uma paz me
invade.
“Meu Deus, Ivan! Que lugar lindo!
“Já tinha vindo aqui?”
“Umas duas vezes só, durante a vida toda”.
“Gostou?”
“Se eu gostei?! Pôxa, eu não sabia que você ia caprichar tanto, droga!”
Estamos no Cais da Esperança, que
fica a mais ou menos meia hora de carro do centro da cidade. Na verdade estamos
numa parte mais afastada das docas, que são a parte mais agitada. Ivan me
trouxe para um trapichezinho que se estira ao longo do rio. E lá em cima o sol
já começa a dar sinais de despedida. Ivan, seu travesso! Me trouxe para um
piquenique com direito a assistir ao pôr-do-sol.
A gente se senta na borda do
trapiche, com os petiscos por perto. O vento aqui é bem generoso, mas hoje está
calmo. O sol se põe e eu estou mastigando um pedaço de torrada com requeijão light. Em termos de fome, eu toparia
encarar um negócio mais “sério”, mas o que está valendo de verdade é a
companhia, o momento. É tão romântico. Mas, de algum modo, sei que não foi essa
a intenção de Ivan quando ele resolveu que me traria aqui. Ele demonstra gostar
muito do lugar. E, provavelmente, também não gostaria de pisar aqui
desacompanhado. Sorte a minha de ser aquela que está na jogada.
“Esse lugar é mágico, não acha?”, ele indaga, e eu acho tão fofa
essa pieguice.
“É verdade. É bem mágico”, eu repito a palavra mais brega que ele
falou, só para ter a sensação da pieguice que ele experimentou. Mas tudo que
sinto é uma repulsinha pelo clima estar ficando açucarado demais. Todavia, suportável.
E aprazível, bem aprazível.
“Você tá meio aérea, Milena”.
“É...”
“Algum problema? Posso tentar te ajudar?”
“Não. Quer dizer, não sei se é um problema. Eu tô aqui curtindo esse
piquenique com você. E é tão legal, sabe. Aposto que a noite aqui deve ser
maravilhosa também”.
“Ah, pode ter certeza que é”.
“Você sempre vem aqui?”
“Não sempre. Mas já estive aqui uma noite. E o céu tava cheio de
estrelas nessa vez. Fiquei um bom tempo em silêncio, só aproveitando. De vez em
quando é bom fugir um pouco da loucura da cidade”.
“Pôxa. Agora me deu até vontade de passar uma noite aqui”.
“Você já pensou que essa noite poderia ser... hoje?”
Olho para ele atenciosamente. É
uma proposta? Pois eu aceito.
“Essa noite vai ser hoje”, arremato.
Um pouco mais de silêncio depois,
Ivan pergunta:
“Você não explicou exatamente qual é o seu problema. A não ser que o
problema seja estar aqui, comigo”.
“Você não faz parte do problema, Ivan. Você faz parte da solução. Então
pode parar com essa frescura, você sabe que eu gosto de estar com você”.
Ele apenas sorri, com as mãos
espalmadas. Eu continuo:
“É o Sávio. Ele me pediu ajuda com uma coisa. E eu tô meio perdida sem
saber como vou fazer, já que eu prometi que ia ajudar”.
“Sávio, o seu sócio?”
“Sim”.
“E o que ele te pediu?”
“Ele quer se desapaixonar da eterna ex-namorada-amor-da-vida-dele, a
Anna. A mesma que deu o nome da nossa agência e blá, blá, blá... Enfim, você
conhece a história. Ele admitiu que ainda não se esqueceu dela. E quer que eu
faça meu serviço nele de novo”.
“Hum... E isso tá te deixando incomodada? Por que isso te deixa assim?
Parece que você se importa demais com isso”.
“O pior, Ivan, é que eu me importo. Sei lá, é como se fosse uma questão
de honra pra mim. É como se eu tivesse fracassado na primeira vez e agora
tivesse a chance de acertar”.
“Eu, hein! Sério? Parece exagerado. Sem ofensa”.
Quero perguntar a Ivan por que
ele considera exagerado. Mas meu coração, instantaneamente, me mostra o porquê.
Eu deveria ficar calma, relaxar, agir com temperança, porque a presença de Anna
não é um bicho-de-sete-cabeças. E eu sempre confiei no meu taco. O que me mata
é esse medo da falha. Não abri uma agência para ajudar as pessoas a se
desapaixonarem e isso ter falhas. Senão, nem teria começado. Para ter uma
clientela que confie em nós, primeiramente eu
tenho de confiar.
“Sabe, Milena”, Ivan toca minhas mãos, acariciando-as docemente, “acho que está na hora de você reavaliar
essa promessa que fez ao Sávio. Será que é mesmo tão importante ele se
desapaixonar dessa tal de Anna? Pois até agora eu não entendi qual é o problema
dele gostar dela. Sabe, será que não seria melhor ele ter uma nova experiência
com essa garota? Ao invés dele ficar fugindo dela, por que ele não tenta de
novo? Por que ele não dá uma chance ao amor? Não estou querendo me meter no
tipo de negócio que você faz, mas acho que o Sávio deveria ter um pouco mais de
maturidade. Talvez o acerto não tenha de ser seu, mas deles dois. Tentar
acertar o que não conseguiram na primeira vez que tentaram. E se a solução não
for o desapaixonamento? Você, Milena, já parou pra pensar nisso?”
Estou confusa agora. Ouvi cada
palavra de Ivan e tudo que ele disse faz um absurdo sentido. Mas, do jeito que
eu adoro bancar a indecisa, apenas baixo a cabeça deixando claro que não é
fácil saber o que fazer.
“As primeiras estrelas começaram a aparecer”, aponta Ivan, mudando
de assunto no momento mais oportuno.
Eu sorrio e olho pro céu,
encarando o espetáculo que vai tomando forma. Nesse momento, eu gostaria de
voltar a ser uma adolescente inconsequente com as palavras e gritar “Eu te amo,
Ivan!”
Mas tenho idade para me conter. E
juízo. Então só me resta aceitar o abraço que ele me oferece, enlaçando-me com
um de seus braços, enquanto contemplamos, lado a lado, a noite que vem se
desenhando diante de nós, ideal para...
“Quer ser minha namorada, Milena?”
“Sim”.
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