(Narrado por Ivan Castro)
O pensamento é a arma mais forte
do ser humano. É onde tudo começa. É onde as grandes e melhores ideias tomam
forma, é onde se processa tudo que se vai dizer e fazer, embora algumas vezes
ajamos sem pensar. No entanto, até mesmo as ações inconsequentes são
previamente pensadas, mesmo que fora de nosso controle, mesmo que no calor de
uma raiva ou na precipitação de uma paixão. É no pensamento que residem nossos
desejos verdadeiros, nossas reais intenções, quem de fato somos e o que de fato
queremos. Podemos mentir ao falar. Podemos simular até mesmo gestos que
acompanhem uma boa mentira. Podemos ensaiar reações para serem mostradas diante
do público. Podemos fingir o choro, o pesar, a alegria. Mas, por dentro, não
podemos escapar do pensamento. Ele é quem regula o tanto de bondade ou maldade
que estamos empregando nas interações sociais, se estamos sendo moderados ou
exagerados, modestos ou convencidos, falsos ou honestos. Não acredite em
pessoas que se vangloriam de ser 100% transparentes, “sem papas na língua” e
toda essa bobagem. Ninguém é tão corajoso a ponto de externar tudo o que pensa. Seria um caos se cada
um de nós conhecesse uma ou duas pessoas assim. Porém, por sua natureza oculta,
o pensamento é inofensivo. E, graças a isso, toda a verdade que portamos em
nosso interior ainda consegue se manter como uma diversão individual e sem
danos a terceiros.
Entro na sala de aula separada
para o encontro desta noite, que será no campus de uma faculdade local. Está um
frio bem agradável lá fora. Dra. Márcia, minha psicanalista, é quem faz a
mediação da terapia em grupo, e já há oito pessoas além dela, sentadas em
círculo. Isso faz de mim a pessoa número nove. Será que ainda chega mais alguém?
Não sei por que resolvi me enfiar
nessa tal de terapia em grupo. Sou nota zero nesse negócio de me abrir para
outras pessoas. Mas, no meu melhor estilo “ator-fora-dos-palcos”, finjo que
estou confortável e até mesmo me sento deixando o corpo aparentemente livre, à
vontade, escondendo a tensão. Vou soar ridículo agora, mas é como quando o Chapolin diz que todos os movimentos
dele são friamente calculados. Uma lição que saiu de um lugar improvável, mas
que eu gosto de levar comigo. Nunca se sabe quando alguém está de olho nos seus
movimentos, não é?
Então me dou conta de que talvez
eu não seja o único ator não-profissional aqui. Essas pessoas ao meu redor também
não devem estar totalmente intencionadas a serem francas, e provavelmente devem
estar controlando vários de seus movimentos para não entregar muito sobre quem
realmente são. Assim como eu, elas devem ter vindo até aqui com seu discurso
pronto e, quem sabe, ensaiadinho. Eu e minha mania de achar que todo mundo vive
preparado para todas as ocasiões, do mesmo jeito que eu faço. Tranquilidade,
tranquilidade, tranquilidade. Repito em minha mente, como um mantra.
“Bom, acho que já podemos começar. Só estávamos esperando pelo Ivan”, anuncia
a doutora Márcia. “Estamos reunidos aqui
esta noite para dividirmos um pouco das nossas aflições sobre coisas que temos
em comum, ou seja, a obsessão por acumular coisas. Alguém gostaria de começar?”
Adoto a típica atitude de não
fazer contato visual muito prolongado com a mediadora, a fim de que ela não
sugira meu nome por primeiro. Então vou lançando olhares para cada um do
círculo, dois segundos para cada pessoa. Fixo meu olhar por três segundos numa
moça de cabelos pretos cacheados, e coloco nesse olhar uma insistência para que
ela se voluntarie a ser aquela que vai abrir o bico primeiro. Coisa técnica e
sutil. E que funciona, pois ela ergue o braço e, mesmo hesitante, pede a
palavra. Ao que Márcia, satisfeita, sinaliza com a cabeça que ela pode começar:
“Bom, eu... Meu nome é Mônica Andrade e... é a minha primeira vez aqui”,
ela começa. Nesse momento, estou sorrindo, relaxado. Lembro que já peguei uma
Mônica, acho que foi em 2005 ou 2006, durante um Congresso de Direito. Uma das
piores ficadas da minha vida. Tanto que, quando vejo alguma mulher com esse
nome, nem me demoro analisando se é alguém que valeria um pouco da minha
atenção, tão grande foi o “trauma” da Mônica de 2005. Ou 2006. E meu veredito
sobre esta Mônica, aqui na terapia, já está dado: um poço desinteressante e
tedioso. Tão chata que, durante essa minha divagação, ela já encerrou sua fala
e eu nem mesmo sei o que faz dela uma acumuladora.
“Gostaria de ser o próximo, Marilson?”, doutora Márcia se dirige a
um rapaz prematuramente calvo, três cadeiras à minha direita, que está usando
uma camiseta meio desbotada do Nirvana
e uns all stars pretos de cano alto
um pouco encardidos. Se eu me chamasse Marilson, com certeza procuraria
terapia, mas não em grupo, que é para não espalhar o mico de ter um nome
desses.
“Bom, como todos escutaram, eu me chamo Marilson, mas ao contrário da
Mônica, essa não é a primeira vez que estou aqui. Alguns de vocês sabem que eu
sou louco por bótons de bandas de rock e...”
Marilson, veredito: chato por
agir como um adolescente tardio. Deve ter entre 25 e 27 anos, mas ainda acha o
maior barato colecionar bótons. No entanto, ele consegue me fazer prestar
atenção ao que diz. O sujeito é bem articulado, simpático. Isso não é do meu
agrado. Eu tenho essa obsessão infinita em ser o centro das atenções, o mais
legal do pedaço, o que tem carisma natural e cativante. Preciso observar onde o
Marilson peca, para que eu o supere. Apesar de eu estar claramente mais bem
arrumado, um cara que tem boa lábia e presença de espírito consegue compensar
até mesmo detalhes como a vestimenta e a aparência. E eu não estou disposto a
ser desbancado por um aspirante a grunge
com o nome de Marilson. Esta galera tem de chegar ao fim dessa reunião
encantada por mim, a ponto de sentir imensa falta quando eu não vier.
“Então foi isso, eu dei alguns dos meus bótons de presente pra alguns
amigos e... Foi difícil, até cheguei a me arrepender, mas acho que estou
conseguindo praticar o desapego”, Marilson conclui. Deve estar se sentindo
um herói, e certamente está esperando uma medalha. Parabéns... por ser só mais
um idiota num mundo já lotado de idiotas!
Eu só estou aqui por insistência
da doutora Márcia, que, por mais que negue, está apaixonada por mim. Ela
reprime os sentimentos porque é casada, mas seus olhares e sinais sempre são
bem claros. Ela invariavelmente une as mãos um pouco abaixo do colo sempre que
estamos conversando, enquanto os olhos brilham com um interesse profundo, num
gesto inconsciente de mocinha tímida apaixonada, apesar de já ter quase uns 40
anos. Sem falar de seu sorriso de ponta a ponta, com os dentes à mostra. Ela
não se comporta assim com outras pessoas, pelo que eu já vi.
Entretanto, existe outro motivo
para eu ter vindo à terapia: quando você é um colecionador como eu, e alguns
itens da sua coleção causariam arrepios e até repulsa na maioria das pessoas, é
doloroso não ter com quem conversar a respeito. Por que do que vale ter uma
coleção se você não pode sequer comentar sobre ela? Muita gente sabe sobre
várias das minhas coleções, mas tem uma em especial da qual me orgulho tanto,
que me dá um nó no coração por não poder compartilhar da tamanha exultação que
eu carrego por tê-la.
Então, eu entro nessa onda de
“obsessão por acumular coisas”, para sentir como seria poder expor o meu
“problema”...
“Posso ser a próxima?”, uma moça de cabelos lisos e franja, pequena
e frágil, pede a palavra, imediatamente autorizada por Márcia.
“Meu nome é Rita Lina, e essa é a minha primeira vez aqui”, ela se
apresenta, seguida pelo coro de “oi, Rita” ao qual eu também me junto, dentro
dos limites do amigável. “Eu estou tão
empolgada em estar aqui com vocês. É bom ter pessoas com quem compartilhar.
Então, como começar? Bem... Eu coleciono empregos”.
Não há dúvida de que há uma
comoção silenciosa após a tal Rita contar qual é o seu objeto de coleção. Mais
essa agora: além da simpatia de Marilson, agora vem a mais esquisitona entre os
esquisitões roubar a atenção do pessoal.
“Pode descrever um pouco mais sobre o seu caso, Rita?”, solicita a
doutora Márcia.
Rita limpa a garganta e
prossegue:
“Eu nunca consigo durar mais de um mês em nenhum emprego. Mas é porque
eu adoro me aventurar, sabe. Ai, não consigo viver uma mesma rotina num
ambiente de trabalho por muito tempo, isso me cansa. Eu gosto de estar o tempo
todo experimentando novas emoções, conhecendo pessoas, descobrindo coisas. Por
exemplo, eu tô trabalhando numa agência agora e tô adorando, mas tá começando a
me dar uma agonia. Não vejo a hora de ser despedida. Inclusive amanhã mesmo já
vou comprar jornais pra ver as ofertas de emprego. Ou, se vocês conhecerem alguém
que esteja contratando...”
“Por que você mesma não pede demissão?”, rebate Mônica, a insossa
que iniciou o falatório na reunião.
“Não!”, exclama Rita, “Não
funciona assim. É como um ritual, entende? Se alguma vez eu mesma me demitir,
fico com a sensação de que alguma coisa está fora do curso do universo. Então,
pra garantir que tudo siga dentro do normal, é melhor que eu continue sempre a
ser mandada embora. Até agora tem sido assim e eu espero que seja assim pra
sempre. Ninguém quer pagar pra ver algum efeito borboleta, né?”
Essa mulher é uma figura. Com
tanta birutice que ela destila pela boca, não é de se admirar que dure pouco
tempo nos empregos. Seus patrões devem ficar de saco cheio e logo lhe mandam
passear. Mas devo admitir: ela usou muito bem a referência do “efeito
borboleta”, ligado à teoria do caos. Isso adiciona um pouco de cultura à sua
apresentação abilolada, uma espécie de elemento-surpresa, que pode torná-la
encantadora e intrigante ao mesmo tempo, mesmo que isso soe inusitado. Não dá
para acreditar: estou competindo com um roqueiro careca e uma lesada que tem
fetiche por trocar de emprego.
“Ivan”, a doutora Márcia se volta para mim. “Que tal você falar um pouco da sua coleção?”
Eu assinto com a cabeça, exibo um
sorriso que mostra rapidamente os dentes, corpo ligeiramente projetado para
frente e mãos relaxadas repousando sobre minhas coxas. Isso significa
confiança. Também significa que ninguém pode me intimidar, que estou seguro e
que tudo que falarei virá de uma fonte dentro de mim que transborda conforto,
que não me deixará tremulando por estar abrindo meus problemas em público.
Significa também que sou admirável, notável, inspirador. Que, apesar de ter um
problema a ser discutido em terapia, isso não está me enlouquecendo ou tirando
a minha paz. Enfim, minha postura fará com que eu receba uma atenção especial e
me diferencie no meio de todos os perdedores aqui.
Estou tomando um café no meu bar
Deleite, enquanto aguardo uma pessoa especial. Convidei Sávio, o amigo e sócio
da minha atual namorada Milena, para me acompanhar no café. Resolvi que, se eu
vou ajudar Anna Munhoz a reconquistá-lo, preciso agir o quanto antes. E quem já
passou pelos meus serviços sabe que eu odeio enrolações. O meu segredo é ir
direto ao ponto, mas sem fazer com que isso pareça precipitado, o que perderia
toda a graça.
Antes dele aparecer, porém,
alguém está me ligando no celular. Atendo, bastante aborrecido:
“Valéria! O que você tá fazendo me ligando a essa hora?”
“Boa tarde pra você também, querido!”
Valéria sabe que eu odeio quando
ela me liga durante o horário de expediente. Mas também foi mancada minha, que
esqueci de trocar o chip do aparelho.
“Adoro quando você fala comigo nesse tom, meu negão”.
“Valéria, meu amor, eu já falei pra você esperar que eu ligue. Durante
o dia é horrível pra conversar, eu vivo numa correria”.
“O que é que eu posso fazer, Ivan? Você sabe que eu morro de saudade”.
Valéria é uma mulher maravilhosa,
mas quando pega para falar comigo com voz de mulher abandonada e carente, é um
saco!!
“Infelizmente não dá pra conversar com você agora, vou receber um
carregamento muito importante e isso vai me ocupar um bom tempo. Deixa que eu
te ligue no horário de sempre, tá bom?”
“Ás dez?”
“Isso, isso. Te ligo às dez”.
“Vou esperar, meu oceano”.
“Espere, meu amor. Ligo sem falta. Beijão, tchau!”
Mal ela desliga, eu vou até o
cofre que tenho perto da caixa registradora do bar, apanho outro celular e
guardo o anterior lá dentro. E tranco.
Assim que eu ligo este aparelho
recém-pegado na gaveta, aparecem várias mensagens de Milena. Leio todas com
muito carinho. É um pouco incômodo, devo admitir, quando uma mulher está no
início da paixão. Milena pagou de difícil durante um tempo, e vê-la hoje caindo
de amores por mim é como um troféu, só que beira a chatice. Ela não é tão
diferente assim das outras mulheres, como sempre quis demonstrar. No fim, age
como uma típica apaixonada, que expressa sua empolgação através do contato
constante comigo, e essas 14 mensagens que ela deixou no WhatsApp mais do que provam o que estou falando. Catorze mensagens
não é o que se pode chamar exatamente de contato saudável num início de namoro
(pelo menos não deveria ser), mas uma devoção exagerada, sinais de dependência
emocional. A última vez que nos falamos foi ontem, antes de dormir. Melhor
dizendo, antes de ela dormir. Essa vida de ter mais de um telefone celular e
mais de um chip é tão exaustiva quanto
deliciosa. Só torço para que Milena não se torne cansativa demais, previsível
demais, pois ela realmente está sendo uma surpresa agradável na minha vida. E
terminar uma relação que mal começou não está nos meus planos.
Sávio finalmente chega.
Recebo-lhe com um aperto de mão educado, e logo noto que ele tem aquele
insuportável olhar de gente meio desconfiada. Lembro que Milena me comentou que
ele não é o cara mais exemplar em matéria de interação social. Vejamos como
lidarei com essa questão.
“Espero não ter atrapalhado alguma coisa ao te chamar aqui”, eu me
desculpo ao vê-lo aparentemente mais arrumado para outro compromisso do que
para dar uma passada em meu bar.
“Eu estou trabalhando num caso e vou me ocupar com isso só mais tarde.
Ou melhor, daqui a uma hora, pra ser mais preciso”, ele me explica.
“Ah, é? Que ótimo! Deve ser bastante empolgante estar num caso!”
“Será a primeira vez que vou entrar numa igreja evangélica”, conta
Sávio, deixando-me curioso sobre a relação entre seu trabalho e o fato de ir a
uma igreja. Mas não podemos nos demorar, então terei de ficar com a
curiosidade.
“Aceita um café ou... Ah, peraí! Chá gelado, acertei?”
“É isso aí”.
“Milena me falou. Mas posso te sugerir outra coisa? É um drinque sem
álcool que ela experimentou aqui, o nome é...”
“Me Encante”, ele
completa, mostrando que Milena é expert
em transmitir mensagens de ambos os lados. “Ela
me falou dessa bebida, disse que adorou”.
Sávio aceita experimentar o
drinque de laranja e maçã e, enquanto ele aguarda, resolvo iniciar a conversa
que me motivou a chamá-lo.
“Então, Sávio, Milena e eu estamos namorando, sabe. A gente já estava
saindo juntos, e resolvemos levar a um patamar mais sério”, eu introduzo.
Ele apenas acompanha com o olhar.
“Você deve saber”, eu vou em frente, “ela às vezes se sente meio... Como eu poderia dizer? Meio sozinha...
E nem sempre tem pra quem contar algumas coisas. Acho que ela está com algum
problema”.
Enquanto digo essas palavras,
também uso o olhar para acompanhá-lo. Quero avaliar sua reação ao me ouvir
afirmando que Milena se sente sozinha. Logo ele, que deve se achar o maior
conhecedor dos segredos dela. Na realidade, Milena não me disse nada disso, mas
é bom para deixar o sujeito meio desestabilizado logo de cara. O pensamento
pode até ser a arma mais poderosa do ser humano, mas são as palavras que
danificam estruturas emocionais.
“Que estranho!”, ele diz, e isso com certeza se deve ao fato de ele
crer que, se Milena estivesse com algum problema, ela teria mencionado a ele. “Por que você acha isso?”
“Na verdade ela deu a entender. E isso tem a ver com você.”
Agora ele está fazendo aquela
cara de “ah, então foi por isso que ela não me contou”, o que não o alivia do
baque inicial de talvez sua amiga nem sempre lhe contar tudo que se passa.
“O que foi que eu fiz, Ivan?”
“É a história do desapaixonamento que você pediu a ela. Sobre a tal
Anna”.
“A Milena te contou?!”, agora ele tem quase certeza de que as
coisas íntimas entre eles estão envoltas em fragilidade. Pela forma como está
com os punhos cerrados, posso sentir o cheiro de raiva que ele transpira.
“Calma, Sávio! Foi como eu te falei. Ela não tinha pra quem contar. E a
Milena confia muito em mim, então ela se abriu comigo sobre o caso. Ela não
parece muito tranquila, pra ser honesto. E, como namorado dela, eu te chamei
pra gente ajudar a Milena”.
Sávio se acalma um pouco. Uma das
minhas funcionárias traz um copo gelado de “Me Encante” e o põe diante dele,
que agradece. Espero ele dar o primeiro gole, para somente depois dar
seguimento às minhas palavras.
“O que você sugere que a gente faça pra ajudar a Milena então?”,
Sávio fala antes de mim.
“Primeiro eu quero te fazer uma pergunta. Posso?”
“Vai em frente!”
“Você realmente quer se desapaixonar da Anna?”
“Como é que é?”
“É sério, Sávio. Você quer se desapaixonar da Anna?”
Ele dá outro gole no drinque.
Parece que gosta do sabor. Franze o cenho, olha para mim, depois desvia os
olhos por um momento, até finalmente responder:
“Sim, eu quero. Foi por isso que pedi pra Milena me ajudar. Foi ela
quem me ajudou no passado”.
“Mas será que isso é mesmo necessário? Se você quer se desapaixonar, é
porque está apaixonado, certo?”
“Hã... É... Certo...”
“E por que você simplesmente não vive essa paixão?”
“Me desculpa, Ivan, mas... Não sei se eu tô te entendendo”, Sávio
começa e exibir um semblante preocupado e confuso.
Eu me esgueiro um pouco para
frente, com o máximo cuidado em alinhar um sorriso confiante e um olhar
determinado, para me servirem de apoio ao que vou dizer agora:
“Talvez você não tenha uma ideia muito clara, Sávio, mas a verdade é
que a Anna está muito apaixonada por você”.
“Do que é que você está falando, Ivan?”
“Estou falando o que escutei da própria Anna”.
“Cara, que brincadeira é essa? Não tem a menor graça”, ele solta o
copo, fazendo menção de que vai embora.
“Sávio, eu sou amigo da Anna. Ela me pediu pra conversar com você”.
“Você o quê?!”, ele volta à mesma reação que tivera quando
descobriu que Milena havia me contado sobre a história dele querer se
desapaixonar de novo de Anna. “Cara, esse
papo tá muito estranho. Eu realmente tenho que ir embora”.
“Sávio, fique aí e me escute!”
“De jeito nenhum. Me obrigue!”
“Você quer ajudar a Milena ou não?”
“E de que forma essa bobagem que você tá falando poderia ajudar a
Milena? Eu nem mesmo consegui compreender que problema é esse que você falou
que a Milena tem”.
“É verdade. Eu não fui muito claro, me desculpe”.
Sávio volta a ficar paciente.
Preciso aproveitar, pois suas reações meio esbaforidas podem incomodar os
outros clientes.
“O seu pedido de ajuda deixou a Milena preocupada”, começo a
explicar. “Ela ficou com a sensação de
ter fracassado no passado, entendeu? Tenta se colocar no lugar dela. Como você
se sentiria se caísse na real de que o primeiro caso que um dia te inspirou a
criar uma empresa fosse, na verdade, um grande fiasco? E agora ela comanda esse
negócio totalmente baseado num fiasco? É assim que a Milena anda pensando. E
ela deve estar morrendo de medo de fracassar. Fracassar de novo, diga-se de
passagem”.
“Ivan, como você mesmo disse, a Anna foi apenas o primeiro caso que a
Milena cuidou na vida. Ela era jovem. Nós éramos jovens. Com o tempo, ela foi se
aprimorando. Se eu não confiasse nela, não teria pedido ajuda”.
Sávio é irredutível. Preciso me
esforçar.
“Então você quer arriscar? E se der errado?”
“Já falei, cara. Confio na minha amiga. Ela vai me ajudar e eu vou
esquecer da Anna pra sempre”.
“Ok. Mas me ajuda a entender uma coisa: se você gosta da Anna e ela
também gosta de você, por que você não investe? Se não deu certo no passado,
por que não tentar no presente? Vocês cresceram, amadureceram. O que quer que
tenha acontecido no passado, ficou lá. Tá sacando o que eu quero dizer, Sávio?
Será que você não está se sabotando ao negar uma segunda chance pra Anna? Ou
melhor, pra vocês dois?”
“Não é assim tão fácil”, teima Sávio.
“Um encontro, que tal?”
“Um o quê?”
“Um encontro. Cinema, jantar, qualquer coisa. Você escolhe. Fica a seu
critério. Você e Anna saem num encontro, conversam e veem no que vai dar. Não
deve doer, né? O que me diz?”
“Que negócio é esse de encontro, Ivan? Aliás, eu entendi o que você
disse sobre ser amigo da Anna, mas por que ela pediu ajuda pra você? Aliás de
novo, a Milena sabe disso? A Milena sabe que você e a Anna são amigos? Ela ao
menos sabe que vocês se conhecem?”
“Não”, eu me rendo. Mas a mente já trabalha em turbilhão para
encontrar um argumento que ajude a me reerguer.
“Então com licença”, Sávio se levanta, decidido. “Eu tô indo agora contar tudo pra Milena”.
Desgraçado! Ele não pode fazer
isso.
“Obrigado pelo drinque!”
Ele não pode sair daqui assim...
“Sávio!”, eu também me levanto, e acho que já tenho minha cartada
final. Ele se detém para me ouvir. Talvez se arrependa de ter parado. “A Milena sabe sobre o caso Maxine?”
Ele congela ao escutar o que eu
acabo de dizer.
“Hein, Sávio?”
“Não sei do que você tá falando”.
“O caso Maxine. Sua empresa foi contratada para ajudar um ricaço
chamado Nestor Perucci, ele queria se desapaixonar de uma garota de programa
chamada Maxine. Tem uns dois anos, mais ou menos. Lembrou agora?”
“Como é que você sabe disso?”, agora Sávio está falando
incrivelmente baixo, pausadamente.
E, para dar um impacto dramático,
eu o encaro bem no fundo dos olhos e falo igualmente baixo:
“Porque depois o caso veio parar nas minhas mãos. O senhor Perucci me
contratou para ajudá-lo a conquistar a Maxine de vez. E eu sei que você sabe do que eu tô falando, porque o
próprio Sr. Perucci me informou que ele avisou você que estava cancelando o
contrato com a ANNA. Como foi um caso que a ANNA perdeu, fiquei me perguntando
se a Milena sabe, pois provavelmente ela teria surtado com um caso perdido pra
uma empresa... digamos, concorrente. Então, Sávio, me tira a curiosidade: como
a Milena ficou quando soube disso? Ou... ela nunca soube?”
“Ivan...”, Sávio murmura. Ele deve estar desmoronando por dentro. Alvo
atingido.
Confesso que não tenho muita pena
dele, pois não fui com sua cara desde o início. Não é o tipo de amizade que eu
queira conservar, nem sob parâmetros de conveniência e falsidade. Trocando em
miúdos, a existência de Sávio é descartável na minha vida. E, como sou um pouco
ciumento, faria muito bem para o meu namoro com Milena que esse cara estivesse
fora do radar a maior parte do tempo.
“Você é da agência AMANDA”, ele conclui.
“Exatamente, Sávio. A agência é minha, pra ser mais exato. Ou melhor,
era. Tecnicamente, a agência não existe mais”.
Sávio está em minhas mãos. Não
importa o quanto eu esteja acostumado a manipular as pessoas, a sensação de
superioridade continua indescritível.
“Eu vou me encontrar com a Anna. Mas você tem que me prometer que nunca
vai comentar com a Milena sobre o caso Maxine, entendeu bem?”
“É assim que se fala, Sávio”, finjo uma pequena comemoração na
camaradagem, até dou uma piscadela. “No
que depender de mim, essa história da Maxine vai continuar como sempre esteve”.
Será que ele está me xingando em
pensamento? Pouco importa.
“Você não vai se arrepender desse encontro, Sávio. Vai com a mente
aberta, dá uma chance ao amor”.
“Tô de saída, Ivan”.
“Eu entro em contato, Sávio. Boa noite!”
Ele confirma com a cabeça e se
afasta. Está cambaleando um pouco. Também pudera! Deve estar dando um trabalhão
se equilibrar com tantas verdades queimando em sua mente, pesando sobre seus
ombros.
Já são seis da tarde. Daqui a
pouco vai começar mais uma sessão de terapia em grupo com a doutora Márcia. No
entanto, hoje não vai rolar pra mim. Seria difícil ir até lá e encarar aquele
povo com problemas reais e fingir por tanto tempo que me importo. Pois estou
seriamente convencido de que a minha coleção secreta não é um problema. Se eu
de fato creio que não é um problema, acho que consigo lidar com o fato de não
poder ter ninguém com quem desabafar ou comentar sobre ela. É uma pena, admito,
já que é uma coleção invejável e parece até um pecado grave guardar essa
conquista só para mim.
Me tranco no quarto, abro a
última gaveta do guarda-roupas, e lá estão todas as fotografias. Apesar de
atualmente quase ninguém guardar fotos que não sejam digitais, não posso me dar
ao desfrute de ter todo esse material no celular ou até mesmo num computador. E
nem de ter contas em redes sociais. Por isso a necessidade de imprimi-las para
poder apreciar sozinho e guardá-las em local seguro.
Pego as fotografias e as espalho
sobre a cama. Cada uma mexe comigo de uma forma especial, única. E eu entro em
êxtase quando meus olhos contemplam que tudo isso é meu.
Ágata, 10 de Abril de 2013.
Cyntia, 23 de Julho de 2014.
Juliane, 05 de Outubro de 2012.
Valéria, 10 de Abril de 2014
Rosane, 18 de Agosto de 2015
E... meu item mais recente e,
portanto, aquele que acabou por se tornar meu xodó por ser a grande novidade. O
item nº 6, registrado da seguinte forma em minha memória:
Milena, 01 de Novembro de 2015.
E essas datas todas, que
acompanham cada nome? Ora, um namorado que se preza precisa guardar a data de
namoro. Isso toca o coração da namorada. Ou das
namoradas. De todas as seis.
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