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9 de novembro de 2015

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 2x09: ITEM Nº 6



(Narrado por Ivan Castro)

O pensamento é a arma mais forte do ser humano. É onde tudo começa. É onde as grandes e melhores ideias tomam forma, é onde se processa tudo que se vai dizer e fazer, embora algumas vezes ajamos sem pensar. No entanto, até mesmo as ações inconsequentes são previamente pensadas, mesmo que fora de nosso controle, mesmo que no calor de uma raiva ou na precipitação de uma paixão. É no pensamento que residem nossos desejos verdadeiros, nossas reais intenções, quem de fato somos e o que de fato queremos. Podemos mentir ao falar. Podemos simular até mesmo gestos que acompanhem uma boa mentira. Podemos ensaiar reações para serem mostradas diante do público. Podemos fingir o choro, o pesar, a alegria. Mas, por dentro, não podemos escapar do pensamento. Ele é quem regula o tanto de bondade ou maldade que estamos empregando nas interações sociais, se estamos sendo moderados ou exagerados, modestos ou convencidos, falsos ou honestos. Não acredite em pessoas que se vangloriam de ser 100% transparentes, “sem papas na língua” e toda essa bobagem. Ninguém é tão corajoso a ponto de externar tudo o que pensa. Seria um caos se cada um de nós conhecesse uma ou duas pessoas assim. Porém, por sua natureza oculta, o pensamento é inofensivo. E, graças a isso, toda a verdade que portamos em nosso interior ainda consegue se manter como uma diversão individual e sem danos a terceiros.


Entro na sala de aula separada para o encontro desta noite, que será no campus de uma faculdade local. Está um frio bem agradável lá fora. Dra. Márcia, minha psicanalista, é quem faz a mediação da terapia em grupo, e já há oito pessoas além dela, sentadas em círculo. Isso faz de mim a pessoa número nove. Será que ainda chega mais alguém?
Não sei por que resolvi me enfiar nessa tal de terapia em grupo. Sou nota zero nesse negócio de me abrir para outras pessoas. Mas, no meu melhor estilo “ator-fora-dos-palcos”, finjo que estou confortável e até mesmo me sento deixando o corpo aparentemente livre, à vontade, escondendo a tensão. Vou soar ridículo agora, mas é como quando o Chapolin diz que todos os movimentos dele são friamente calculados. Uma lição que saiu de um lugar improvável, mas que eu gosto de levar comigo. Nunca se sabe quando alguém está de olho nos seus movimentos, não é?
Então me dou conta de que talvez eu não seja o único ator não-profissional aqui. Essas pessoas ao meu redor também não devem estar totalmente intencionadas a serem francas, e provavelmente devem estar controlando vários de seus movimentos para não entregar muito sobre quem realmente são. Assim como eu, elas devem ter vindo até aqui com seu discurso pronto e, quem sabe, ensaiadinho. Eu e minha mania de achar que todo mundo vive preparado para todas as ocasiões, do mesmo jeito que eu faço. Tranquilidade, tranquilidade, tranquilidade. Repito em minha mente, como um mantra.
“Bom, acho que já podemos começar. Só estávamos esperando pelo Ivan”, anuncia a doutora Márcia. “Estamos reunidos aqui esta noite para dividirmos um pouco das nossas aflições sobre coisas que temos em comum, ou seja, a obsessão por acumular coisas. Alguém gostaria de começar?”
Adoto a típica atitude de não fazer contato visual muito prolongado com a mediadora, a fim de que ela não sugira meu nome por primeiro. Então vou lançando olhares para cada um do círculo, dois segundos para cada pessoa. Fixo meu olhar por três segundos numa moça de cabelos pretos cacheados, e coloco nesse olhar uma insistência para que ela se voluntarie a ser aquela que vai abrir o bico primeiro. Coisa técnica e sutil. E que funciona, pois ela ergue o braço e, mesmo hesitante, pede a palavra. Ao que Márcia, satisfeita, sinaliza com a cabeça que ela pode começar:
“Bom, eu... Meu nome é Mônica Andrade e... é a minha primeira vez aqui”, ela começa. Nesse momento, estou sorrindo, relaxado. Lembro que já peguei uma Mônica, acho que foi em 2005 ou 2006, durante um Congresso de Direito. Uma das piores ficadas da minha vida. Tanto que, quando vejo alguma mulher com esse nome, nem me demoro analisando se é alguém que valeria um pouco da minha atenção, tão grande foi o “trauma” da Mônica de 2005. Ou 2006. E meu veredito sobre esta Mônica, aqui na terapia, já está dado: um poço desinteressante e tedioso. Tão chata que, durante essa minha divagação, ela já encerrou sua fala e eu nem mesmo sei o que faz dela uma acumuladora.
“Gostaria de ser o próximo, Marilson?”, doutora Márcia se dirige a um rapaz prematuramente calvo, três cadeiras à minha direita, que está usando uma camiseta meio desbotada do Nirvana e uns all stars pretos de cano alto um pouco encardidos. Se eu me chamasse Marilson, com certeza procuraria terapia, mas não em grupo, que é para não espalhar o mico de ter um nome desses.
“Bom, como todos escutaram, eu me chamo Marilson, mas ao contrário da Mônica, essa não é a primeira vez que estou aqui. Alguns de vocês sabem que eu sou louco por bótons de bandas de rock e...”
Marilson, veredito: chato por agir como um adolescente tardio. Deve ter entre 25 e 27 anos, mas ainda acha o maior barato colecionar bótons. No entanto, ele consegue me fazer prestar atenção ao que diz. O sujeito é bem articulado, simpático. Isso não é do meu agrado. Eu tenho essa obsessão infinita em ser o centro das atenções, o mais legal do pedaço, o que tem carisma natural e cativante. Preciso observar onde o Marilson peca, para que eu o supere. Apesar de eu estar claramente mais bem arrumado, um cara que tem boa lábia e presença de espírito consegue compensar até mesmo detalhes como a vestimenta e a aparência. E eu não estou disposto a ser desbancado por um aspirante a grunge com o nome de Marilson. Esta galera tem de chegar ao fim dessa reunião encantada por mim, a ponto de sentir imensa falta quando eu não vier.
“Então foi isso, eu dei alguns dos meus bótons de presente pra alguns amigos e... Foi difícil, até cheguei a me arrepender, mas acho que estou conseguindo praticar o desapego”, Marilson conclui. Deve estar se sentindo um herói, e certamente está esperando uma medalha. Parabéns... por ser só mais um idiota num mundo já lotado de idiotas!
Eu só estou aqui por insistência da doutora Márcia, que, por mais que negue, está apaixonada por mim. Ela reprime os sentimentos porque é casada, mas seus olhares e sinais sempre são bem claros. Ela invariavelmente une as mãos um pouco abaixo do colo sempre que estamos conversando, enquanto os olhos brilham com um interesse profundo, num gesto inconsciente de mocinha tímida apaixonada, apesar de já ter quase uns 40 anos. Sem falar de seu sorriso de ponta a ponta, com os dentes à mostra. Ela não se comporta assim com outras pessoas, pelo que eu já vi.
Entretanto, existe outro motivo para eu ter vindo à terapia: quando você é um colecionador como eu, e alguns itens da sua coleção causariam arrepios e até repulsa na maioria das pessoas, é doloroso não ter com quem conversar a respeito. Por que do que vale ter uma coleção se você não pode sequer comentar sobre ela? Muita gente sabe sobre várias das minhas coleções, mas tem uma em especial da qual me orgulho tanto, que me dá um nó no coração por não poder compartilhar da tamanha exultação que eu carrego por tê-la.
Então, eu entro nessa onda de “obsessão por acumular coisas”, para sentir como seria poder expor o meu “problema”...
“Posso ser a próxima?”, uma moça de cabelos lisos e franja, pequena e frágil, pede a palavra, imediatamente autorizada por Márcia.
“Meu nome é Rita Lina, e essa é a minha primeira vez aqui”, ela se apresenta, seguida pelo coro de “oi, Rita” ao qual eu também me junto, dentro dos limites do amigável. “Eu estou tão empolgada em estar aqui com vocês. É bom ter pessoas com quem compartilhar. Então, como começar? Bem... Eu coleciono empregos”.
Não há dúvida de que há uma comoção silenciosa após a tal Rita contar qual é o seu objeto de coleção. Mais essa agora: além da simpatia de Marilson, agora vem a mais esquisitona entre os esquisitões roubar a atenção do pessoal.
“Pode descrever um pouco mais sobre o seu caso, Rita?”, solicita a doutora Márcia.
Rita limpa a garganta e prossegue:
“Eu nunca consigo durar mais de um mês em nenhum emprego. Mas é porque eu adoro me aventurar, sabe. Ai, não consigo viver uma mesma rotina num ambiente de trabalho por muito tempo, isso me cansa. Eu gosto de estar o tempo todo experimentando novas emoções, conhecendo pessoas, descobrindo coisas. Por exemplo, eu tô trabalhando numa agência agora e tô adorando, mas tá começando a me dar uma agonia. Não vejo a hora de ser despedida. Inclusive amanhã mesmo já vou comprar jornais pra ver as ofertas de emprego. Ou, se vocês conhecerem alguém que esteja contratando...”
“Por que você mesma não pede demissão?”, rebate Mônica, a insossa que iniciou o falatório na reunião.
“Não!”, exclama Rita, “Não funciona assim. É como um ritual, entende? Se alguma vez eu mesma me demitir, fico com a sensação de que alguma coisa está fora do curso do universo. Então, pra garantir que tudo siga dentro do normal, é melhor que eu continue sempre a ser mandada embora. Até agora tem sido assim e eu espero que seja assim pra sempre. Ninguém quer pagar pra ver algum efeito borboleta, né?”
Essa mulher é uma figura. Com tanta birutice que ela destila pela boca, não é de se admirar que dure pouco tempo nos empregos. Seus patrões devem ficar de saco cheio e logo lhe mandam passear. Mas devo admitir: ela usou muito bem a referência do “efeito borboleta”, ligado à teoria do caos. Isso adiciona um pouco de cultura à sua apresentação abilolada, uma espécie de elemento-surpresa, que pode torná-la encantadora e intrigante ao mesmo tempo, mesmo que isso soe inusitado. Não dá para acreditar: estou competindo com um roqueiro careca e uma lesada que tem fetiche por trocar de emprego.
“Ivan”, a doutora Márcia se volta para mim. “Que tal você falar um pouco da sua coleção?”
Eu assinto com a cabeça, exibo um sorriso que mostra rapidamente os dentes, corpo ligeiramente projetado para frente e mãos relaxadas repousando sobre minhas coxas. Isso significa confiança. Também significa que ninguém pode me intimidar, que estou seguro e que tudo que falarei virá de uma fonte dentro de mim que transborda conforto, que não me deixará tremulando por estar abrindo meus problemas em público. Significa também que sou admirável, notável, inspirador. Que, apesar de ter um problema a ser discutido em terapia, isso não está me enlouquecendo ou tirando a minha paz. Enfim, minha postura fará com que eu receba uma atenção especial e me diferencie no meio de todos os perdedores aqui.


Estou tomando um café no meu bar Deleite, enquanto aguardo uma pessoa especial. Convidei Sávio, o amigo e sócio da minha atual namorada Milena, para me acompanhar no café. Resolvi que, se eu vou ajudar Anna Munhoz a reconquistá-lo, preciso agir o quanto antes. E quem já passou pelos meus serviços sabe que eu odeio enrolações. O meu segredo é ir direto ao ponto, mas sem fazer com que isso pareça precipitado, o que perderia toda a graça.
Antes dele aparecer, porém, alguém está me ligando no celular. Atendo, bastante aborrecido:
“Valéria! O que você tá fazendo me ligando a essa hora?”
“Boa tarde pra você também, querido!”
Valéria sabe que eu odeio quando ela me liga durante o horário de expediente. Mas também foi mancada minha, que esqueci de trocar o chip do aparelho.
“Adoro quando você fala comigo nesse tom, meu negão”.
“Valéria, meu amor, eu já falei pra você esperar que eu ligue. Durante o dia é horrível pra conversar, eu vivo numa correria”.
“O que é que eu posso fazer, Ivan? Você sabe que eu morro de saudade”.
Valéria é uma mulher maravilhosa, mas quando pega para falar comigo com voz de mulher abandonada e carente, é um saco!!
“Infelizmente não dá pra conversar com você agora, vou receber um carregamento muito importante e isso vai me ocupar um bom tempo. Deixa que eu te ligue no horário de sempre, tá bom?”
“Ás dez?”
“Isso, isso. Te ligo às dez”.
“Vou esperar, meu oceano”.
“Espere, meu amor. Ligo sem falta. Beijão, tchau!”
Mal ela desliga, eu vou até o cofre que tenho perto da caixa registradora do bar, apanho outro celular e guardo o anterior lá dentro. E tranco.
Assim que eu ligo este aparelho recém-pegado na gaveta, aparecem várias mensagens de Milena. Leio todas com muito carinho. É um pouco incômodo, devo admitir, quando uma mulher está no início da paixão. Milena pagou de difícil durante um tempo, e vê-la hoje caindo de amores por mim é como um troféu, só que beira a chatice. Ela não é tão diferente assim das outras mulheres, como sempre quis demonstrar. No fim, age como uma típica apaixonada, que expressa sua empolgação através do contato constante comigo, e essas 14 mensagens que ela deixou no WhatsApp mais do que provam o que estou falando. Catorze mensagens não é o que se pode chamar exatamente de contato saudável num início de namoro (pelo menos não deveria ser), mas uma devoção exagerada, sinais de dependência emocional. A última vez que nos falamos foi ontem, antes de dormir. Melhor dizendo, antes de ela dormir. Essa vida de ter mais de um telefone celular e mais de um chip é tão exaustiva quanto deliciosa. Só torço para que Milena não se torne cansativa demais, previsível demais, pois ela realmente está sendo uma surpresa agradável na minha vida. E terminar uma relação que mal começou não está nos meus planos.
Sávio finalmente chega. Recebo-lhe com um aperto de mão educado, e logo noto que ele tem aquele insuportável olhar de gente meio desconfiada. Lembro que Milena me comentou que ele não é o cara mais exemplar em matéria de interação social. Vejamos como lidarei com essa questão.
“Espero não ter atrapalhado alguma coisa ao te chamar aqui”, eu me desculpo ao vê-lo aparentemente mais arrumado para outro compromisso do que para dar uma passada em meu bar.
“Eu estou trabalhando num caso e vou me ocupar com isso só mais tarde. Ou melhor, daqui a uma hora, pra ser mais preciso”, ele me explica.
“Ah, é? Que ótimo! Deve ser bastante empolgante estar num caso!”
“Será a primeira vez que vou entrar numa igreja evangélica”, conta Sávio, deixando-me curioso sobre a relação entre seu trabalho e o fato de ir a uma igreja. Mas não podemos nos demorar, então terei de ficar com a curiosidade.
“Aceita um café ou... Ah, peraí! Chá gelado, acertei?”
“É isso aí”.
“Milena me falou. Mas posso te sugerir outra coisa? É um drinque sem álcool que ela experimentou aqui, o nome é...”
Me Encante, ele completa, mostrando que Milena é expert em transmitir mensagens de ambos os lados. “Ela me falou dessa bebida, disse que adorou”.
Sávio aceita experimentar o drinque de laranja e maçã e, enquanto ele aguarda, resolvo iniciar a conversa que me motivou a chamá-lo.
“Então, Sávio, Milena e eu estamos namorando, sabe. A gente já estava saindo juntos, e resolvemos levar a um patamar mais sério”, eu introduzo. Ele apenas acompanha com o olhar.
“Você deve saber”, eu vou em frente, “ela às vezes se sente meio... Como eu poderia dizer? Meio sozinha... E nem sempre tem pra quem contar algumas coisas. Acho que ela está com algum problema”.
Enquanto digo essas palavras, também uso o olhar para acompanhá-lo. Quero avaliar sua reação ao me ouvir afirmando que Milena se sente sozinha. Logo ele, que deve se achar o maior conhecedor dos segredos dela. Na realidade, Milena não me disse nada disso, mas é bom para deixar o sujeito meio desestabilizado logo de cara. O pensamento pode até ser a arma mais poderosa do ser humano, mas são as palavras que danificam estruturas emocionais.
“Que estranho!”, ele diz, e isso com certeza se deve ao fato de ele crer que, se Milena estivesse com algum problema, ela teria mencionado a ele. “Por que você acha isso?”
“Na verdade ela deu a entender. E isso tem a ver com você.”
Agora ele está fazendo aquela cara de “ah, então foi por isso que ela não me contou”, o que não o alivia do baque inicial de talvez sua amiga nem sempre lhe contar tudo que se passa.
“O que foi que eu fiz, Ivan?”
“É a história do desapaixonamento que você pediu a ela. Sobre a tal Anna”.
“A Milena te contou?!”, agora ele tem quase certeza de que as coisas íntimas entre eles estão envoltas em fragilidade. Pela forma como está com os punhos cerrados, posso sentir o cheiro de raiva que ele transpira.
“Calma, Sávio! Foi como eu te falei. Ela não tinha pra quem contar. E a Milena confia muito em mim, então ela se abriu comigo sobre o caso. Ela não parece muito tranquila, pra ser honesto. E, como namorado dela, eu te chamei pra gente ajudar a Milena”.
Sávio se acalma um pouco. Uma das minhas funcionárias traz um copo gelado de “Me Encante” e o põe diante dele, que agradece. Espero ele dar o primeiro gole, para somente depois dar seguimento às minhas palavras.
“O que você sugere que a gente faça pra ajudar a Milena então?”, Sávio fala antes de mim.
“Primeiro eu quero te fazer uma pergunta. Posso?”
“Vai em frente!”
“Você realmente quer se desapaixonar da Anna?”
“Como é que é?”
“É sério, Sávio. Você quer se desapaixonar da Anna?”
Ele dá outro gole no drinque. Parece que gosta do sabor. Franze o cenho, olha para mim, depois desvia os olhos por um momento, até finalmente responder:
“Sim, eu quero. Foi por isso que pedi pra Milena me ajudar. Foi ela quem me ajudou no passado”.
“Mas será que isso é mesmo necessário? Se você quer se desapaixonar, é porque está apaixonado, certo?”
“Hã... É... Certo...”
“E por que você simplesmente não vive essa paixão?”
“Me desculpa, Ivan, mas... Não sei se eu tô te entendendo”, Sávio começa e exibir um semblante preocupado e confuso.
Eu me esgueiro um pouco para frente, com o máximo cuidado em alinhar um sorriso confiante e um olhar determinado, para me servirem de apoio ao que vou dizer agora:
“Talvez você não tenha uma ideia muito clara, Sávio, mas a verdade é que a Anna está muito apaixonada por você”.
“Do que é que você está falando, Ivan?”
“Estou falando o que escutei da própria Anna”.
“Cara, que brincadeira é essa? Não tem a menor graça”, ele solta o copo, fazendo menção de que vai embora.
“Sávio, eu sou amigo da Anna. Ela me pediu pra conversar com você”.
“Você o quê?!”, ele volta à mesma reação que tivera quando descobriu que Milena havia me contado sobre a história dele querer se desapaixonar de novo de Anna. “Cara, esse papo tá muito estranho. Eu realmente tenho que ir embora”.
“Sávio, fique aí e me escute!”
“De jeito nenhum. Me obrigue!”
“Você quer ajudar a Milena ou não?”
“E de que forma essa bobagem que você tá falando poderia ajudar a Milena? Eu nem mesmo consegui compreender que problema é esse que você falou que a Milena tem”.
“É verdade. Eu não fui muito claro, me desculpe”.
Sávio volta a ficar paciente. Preciso aproveitar, pois suas reações meio esbaforidas podem incomodar os outros clientes.
“O seu pedido de ajuda deixou a Milena preocupada”, começo a explicar. “Ela ficou com a sensação de ter fracassado no passado, entendeu? Tenta se colocar no lugar dela. Como você se sentiria se caísse na real de que o primeiro caso que um dia te inspirou a criar uma empresa fosse, na verdade, um grande fiasco? E agora ela comanda esse negócio totalmente baseado num fiasco? É assim que a Milena anda pensando. E ela deve estar morrendo de medo de fracassar. Fracassar de novo, diga-se de passagem”.
“Ivan, como você mesmo disse, a Anna foi apenas o primeiro caso que a Milena cuidou na vida. Ela era jovem. Nós éramos jovens. Com o tempo, ela foi se aprimorando. Se eu não confiasse nela, não teria pedido ajuda”.
Sávio é irredutível. Preciso me esforçar.
“Então você quer arriscar? E se der errado?”
“Já falei, cara. Confio na minha amiga. Ela vai me ajudar e eu vou esquecer da Anna pra sempre”.
“Ok. Mas me ajuda a entender uma coisa: se você gosta da Anna e ela também gosta de você, por que você não investe? Se não deu certo no passado, por que não tentar no presente? Vocês cresceram, amadureceram. O que quer que tenha acontecido no passado, ficou lá. Tá sacando o que eu quero dizer, Sávio? Será que você não está se sabotando ao negar uma segunda chance pra Anna? Ou melhor, pra vocês dois?”
“Não é assim tão fácil”, teima Sávio.
“Um encontro, que tal?”
“Um o quê?”
“Um encontro. Cinema, jantar, qualquer coisa. Você escolhe. Fica a seu critério. Você e Anna saem num encontro, conversam e veem no que vai dar. Não deve doer, né? O que me diz?”
“Que negócio é esse de encontro, Ivan? Aliás, eu entendi o que você disse sobre ser amigo da Anna, mas por que ela pediu ajuda pra você? Aliás de novo, a Milena sabe disso? A Milena sabe que você e a Anna são amigos? Ela ao menos sabe que vocês se conhecem?”
“Não”, eu me rendo. Mas a mente já trabalha em turbilhão para encontrar um argumento que ajude a me reerguer.
“Então com licença”, Sávio se levanta, decidido. “Eu tô indo agora contar tudo pra Milena”.
Desgraçado! Ele não pode fazer isso.
“Obrigado pelo drinque!”
Ele não pode sair daqui assim...
“Sávio!”, eu também me levanto, e acho que já tenho minha cartada final. Ele se detém para me ouvir. Talvez se arrependa de ter parado. “A Milena sabe sobre o caso Maxine?”
Ele congela ao escutar o que eu acabo de dizer.
“Hein, Sávio?”
“Não sei do que você tá falando”.
“O caso Maxine. Sua empresa foi contratada para ajudar um ricaço chamado Nestor Perucci, ele queria se desapaixonar de uma garota de programa chamada Maxine. Tem uns dois anos, mais ou menos. Lembrou agora?”
“Como é que você sabe disso?”, agora Sávio está falando incrivelmente baixo, pausadamente.
E, para dar um impacto dramático, eu o encaro bem no fundo dos olhos e falo igualmente baixo:
“Porque depois o caso veio parar nas minhas mãos. O senhor Perucci me contratou para ajudá-lo a conquistar a Maxine de vez. E eu sei  que você sabe do que eu tô falando, porque o próprio Sr. Perucci me informou que ele avisou você que estava cancelando o contrato com a ANNA. Como foi um caso que a ANNA perdeu, fiquei me perguntando se a Milena sabe, pois provavelmente ela teria surtado com um caso perdido pra uma empresa... digamos, concorrente. Então, Sávio, me tira a curiosidade: como a Milena ficou quando soube disso? Ou... ela nunca soube?”
“Ivan...”, Sávio murmura. Ele deve estar desmoronando por dentro. Alvo atingido.
Confesso que não tenho muita pena dele, pois não fui com sua cara desde o início. Não é o tipo de amizade que eu queira conservar, nem sob parâmetros de conveniência e falsidade. Trocando em miúdos, a existência de Sávio é descartável na minha vida. E, como sou um pouco ciumento, faria muito bem para o meu namoro com Milena que esse cara estivesse fora do radar a maior parte do tempo.
“Você é da agência AMANDA”, ele conclui.
“Exatamente, Sávio. A agência é minha, pra ser mais exato. Ou melhor, era. Tecnicamente, a agência não existe mais”.
Sávio está em minhas mãos. Não importa o quanto eu esteja acostumado a manipular as pessoas, a sensação de superioridade continua indescritível.
“Eu vou me encontrar com a Anna. Mas você tem que me prometer que nunca vai comentar com a Milena sobre o caso Maxine, entendeu bem?”
“É assim que se fala, Sávio”, finjo uma pequena comemoração na camaradagem, até dou uma piscadela. “No que depender de mim, essa história da Maxine vai continuar como sempre esteve”.
Será que ele está me xingando em pensamento? Pouco importa.
“Você não vai se arrepender desse encontro, Sávio. Vai com a mente aberta, dá uma chance ao amor”.
“Tô de saída, Ivan”.
“Eu entro em contato, Sávio. Boa noite!”
Ele confirma com a cabeça e se afasta. Está cambaleando um pouco. Também pudera! Deve estar dando um trabalhão se equilibrar com tantas verdades queimando em sua mente, pesando sobre seus ombros.


Já são seis da tarde. Daqui a pouco vai começar mais uma sessão de terapia em grupo com a doutora Márcia. No entanto, hoje não vai rolar pra mim. Seria difícil ir até lá e encarar aquele povo com problemas reais e fingir por tanto tempo que me importo. Pois estou seriamente convencido de que a minha coleção secreta não é um problema. Se eu de fato creio que não é um problema, acho que consigo lidar com o fato de não poder ter ninguém com quem desabafar ou comentar sobre ela. É uma pena, admito, já que é uma coleção invejável e parece até um pecado grave guardar essa conquista só para mim.
Me tranco no quarto, abro a última gaveta do guarda-roupas, e lá estão todas as fotografias. Apesar de atualmente quase ninguém guardar fotos que não sejam digitais, não posso me dar ao desfrute de ter todo esse material no celular ou até mesmo num computador. E nem de ter contas em redes sociais. Por isso a necessidade de imprimi-las para poder apreciar sozinho e guardá-las em local seguro.
Pego as fotografias e as espalho sobre a cama. Cada uma mexe comigo de uma forma especial, única. E eu entro em êxtase quando meus olhos contemplam que tudo isso é meu.
Ágata, 10 de Abril de 2013.
Cyntia, 23 de Julho de 2014.
Juliane, 05 de Outubro de 2012.
Valéria, 10 de Abril de 2014
Rosane, 18 de Agosto de 2015
E... meu item mais recente e, portanto, aquele que acabou por se tornar meu xodó por ser a grande novidade. O item nº 6, registrado da seguinte forma em minha memória:
Milena, 01 de Novembro de 2015.

E essas datas todas, que acompanham cada nome? Ora, um namorado que se preza precisa guardar a data de namoro. Isso toca o coração da namorada. Ou das namoradas. De todas as seis. 

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