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22 de novembro de 2015

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 2x10: TREMENDO



(Narrado por Sávio)

A mente não consegue parar de martelar sobre o que ouvi do Ivan Castro. Uma série torrencial de confusões, em gigantescos fragmentos que parecem rolar pela minha cabeça, como rochas enormes montanhas abaixo. O cara era a pessoa por trás da agência que coincidentemente também tem nome de mulher. Ou tinha, já que ele deu a entender que AMANDA não opera mais. Ele também conhece Anna Munhoz e, segundo suas próprias palavras, são amigos. E ele me chantageou para que eu me encontrasse com ela. Assim, de uma forma praticamente inofensiva, indolor, quase sorrateira, ele me chantageou. Estou nas mãos desse cara? É assim tão fácil?
Ivan tem apenas que tomar cuidado com uma coisa: não fui com a cara dele desde o início. Desde sempre cismei com esse sujeito, ele me pareceu “legal demais”. Desconfiei de pronto. E mal ele sabe que eu já o venho investigando bem antes desse encontrozinho intimidatório em seu bar/lanchonete. Tudo bem, Ivan, eu posso até me encontrar com a Anna e ouvir o que ela tem a dizer, já que inegavelmente meu coração também quer isso, mas você está na minha mira...


Chego à Igreja Batista Luz do Evangelho para o culto que deve iniciar em dez minutos. Quando descobri que ia fazer uma visita a uma igreja evangélica pela primeira vez, ocorreu uma coincidência: fiquei sabendo que minha mãe, Lola, que poucos sabem que se converteu há cerca de três meses, frequenta esse mesmo templo. E o meu irmão caçula, Dominique, também. Confesso que, apesar de sacar que o rapaz tinha uns hábitos diferentes (além do extremo cuidado com os cabelos belos e macios), eu não tinha me tocado que ele é crente. Enfim, parece que minha casa está bem servida da bênção de Deus. Quanto a mim? Bom, eu acredito em Deus, Jesus e acho interessantes as doutrinas bíblicas, mas não me bateu a mesma paixão ainda, esse pique de sair da minha casa e me reunir com pessoas com as quais eu provavelmente só compartilharia esse tópico da vida. Não descarto uma futura possibilidade, mas no momento não tenho interesse em me filiar a uma igreja.
Neste exato instante, porém, está me dando uma pequena comichão. Aparentemente, antes de serem seguidores de Jesus, a galera que frequenta esse lugar honra o deus relógio-brasileiro, a julgar pelo fato de que elas estão atrasadas. Pior sensação: ir pela primeira vez a um lugar e ser o primeiro a chegar. Fica parecendo que você está afoito, que mal pode esperar para ter a experiência que aquele local vai te proporcionar. Inversão total dos valores: você chega na hora exata e é o certinho. Incompreensível etiqueta social, mais um bom motivo para eu continuar evitando excesso de contatos com as pessoas. Para um homem com traços fortes de antissociabilidade como eu, chamar atenção por ser o “coitado que chegou antes de todo mundo” não é algo muito divertido de imaginar. Pondero voltar ao carro e ficar por lá, mexendo no celular, para só entrar daqui a vinte pessoas. Mas a igreja está aberta e, embora eu não veja a pessoa que a deixara assim, o ambiente parece acolhedor e convidativo para alguém que quer (tentar) desanuviar um pouco a mente de uma conversa perturbadora que houve há pouco mais de meia hora. Eu simplesmente não consigo tirar as palavras de Ivan da cabeça. E a insistência dele para que eu volte a me envolver pra valer com a Anna. Eu deveria ir correndo contar tudo para Milena, isso sim. Mas aí o safado tem uma carta na manga: o caso Maxine, que eu jamais registrei. Não chegaria a ser um bicho-de-sete-cabeças, mas Milena passaria a ficar desconfiada de mim e nossa amizade seria abalada, certamente. Num negócio como o nosso, esse tipo de coisa não é nem um pouco bem-vindo. E aí me lembro da Anna me contando, na festa na casa do Parente, que ela foi a responsável pelo término de Milena e Enzo. Estou começando a ficar de estômago embrulhado por esconder tantas coisas da Mile.
Preciso relaxar, preciso relaxar, preciso rel...
“Graça e paz! Boa noite!”, uma voz se aproxima; pertence a alguém que para ao meu lado e se mantém de pé.
“Boa noite!”, eu digo, erguendo um pouco a cabeça. É uma jovem e bonita moça. Sorrio, mas não porque sou simpático ou qualquer coisa assim, mas é porque o culto nem começou e eu já estou contemplando o primeiro milagre.
A jovem diante de mim se chama Cibelle, mas ela está longe de saber que eu tenho essa informação. Ela é o motivo de eu estar aqui, na verdade. Cibelle é o objeto de paixão do meu mais recente cliente, um rapaz que tem quase a minha idade, chamado Thomas. Bom, por que Thomas e Cibelle simplesmente não curtem um romance e vivem felizes para sempre (ou, pelo menos, por uns cinco anos)? Acontece que Thomas é ateu. Segundo ele, caiu na besteira de paquerar a bonitinha do curso de Inglês, “para ver no que ia dar”. E deu nisso: uma paixão da qual ele quer muito se desgarrar, por sentir que mais cedo ou mais tarde, a relação chegaria a um ponto insuportável, por suas incompatibilidades ideológicas, já que, segundo ele outra vez, Cibelle tem a “mente muito limitada por causa da religião” e, de acordo com uma posição muito convicta de sua parte, Thomas “sente o cheiro de muita dor e sofrimento em ambos os lados”. Agora me dou conta de que não perguntei a ele como tinha tanta certeza se teriam alguma relação um dia. Outra coisa que Thomas deixou escapar foi o quanto tem interesse sexual em Cibelle. E ele acha que esbarraria feio nesse quesito relacionado à moralidade da moça. Nisso eu tenho que concordar, pelo menos pelo que eu pude notar fuçando as redes sociais de Cibelle. Ela tem uns 19 anos, mas parece bastante centrada, preocupada em servir à sua fé e viver o que prega. Mas, sei lá, todo mundo é muito amoroso no Facebook, e ela pode muito bem ser apenas mais uma que milita em causa própria: manter uma boa reputação. Aliás, foi assim que descobri a coisa toda sobre minha mãe e meu irmão frequentarem a Batista Luz do Evangelho (ou IBLE, para os íntimos): Dominique é meu amigo em comum com Cibelle. No início tomei um susto, mas depois vi que minha irmãzinha Rapunzel poderia me ser de muita utilidade.
Bom, não estou aqui para julgar os motivos do meu cliente, pois sei de inúmeros relacionamentos em que os cônjuges têm diferentes crenças e convivem bem sob o mesmo teto. Se bem que o caso do Thomas é o fato de não ter uma crença. Diante de tal circunstância, não sei nem especular o tamanho da dor de cabeça que isso pode render, mas cada um sabe de seu próprio calo, não é mesmo?
“Você é novo aqui na igreja?”, ela me pergunta, muito solícita. Pela postura, acredito que ela é uma espécie de responsável pelo templo, e provavelmente foi quem abriu as portas.
“Não, eu... Só estou de visita. Meu irmão e minha mãe frequentam aqui”, respondo, aliviado por poder usar uma desculpa verdadeira, apesar de não ser a única desculpa.
“O senhor é evangélico?”
Esse é o problema das pessoas dez anos mais novas que você. Elas não te levam a sério como um jovem também, e já começam a agir com radicalismos, tratando-o como idoso. Qual é! Será que ela não notou a juventude da minha pele?
“Hahaha, o único Senhor que eu conheço é o que vamos louvar hoje aqui”, respondo. E consigo ser mais idiota do que os pensamentos que acabei de ter. E também não deixei claro que não sou evangélico. Parabéns, Sávio! Plano de camuflagem iniciado com sucesso!!
“Quem são seu irmão e sua mãe?”, Cibelle se mostra interessada, pois pelo tamanho da igreja, todo mundo se conhece.
“Dominique e Lola. No caso, o Dominique é o irmão e a Lola é a mãe”, explicação desnecessária.
“Imaginei”, ela confirma com essa resposta que minha explicação foi realmente desnecessária. Pelo menos a moça é simpática. “Irmão, fique à vontade. Daqui a pouco vamos iniciar o culto”.
“Beleza”. Tenho a leve impressão que eu deveria ter usado algum jargão do meio, mas... O que os cristãos dizem nessa hora? Amém? Aleluia? Uma vez ouvi um pastor na TV que usava muito a palavra “tremendo”...
É só a garota se afastar e o pensamento velozmente se transporta para Ivan-Anna. Não estou nervoso pela iminência de um encontro com ela, mas não deixo de levar em consideração que, do outro lado, Milena está trabalhando para que eu me desapaixone. E, daqui a alguns dias, eu estarei indo ao encontro de Anna. Conclusão: estou prestes a sabotar o que eu mesmo praticamente implorei para ser feito.
Aquela comichão volta a coçar, instigando para que eu pense urgentemente em uma providência a ser tomada quanto a tudo isso. E o corpo e o coração doidos para passar um tempo com Anna...
As pessoas estão chegando. Algumas me cumprimentam acenando com a cabeça, corteses. Outras sussurram alguma saudação típica, mas devem ser tão tímidas que as palavras mal saem e eu apenas respondo com um movimento de cabeça e um sorriso amarelo. Aqui devem caber umas cento e vinte pessoas e, no entanto, o número ao redor nem deve chegar a cinquenta. Hoje não é domingo, então creio que os batistas prefiram lotar suas igrejas no mesmo dia que a maioria dos demais cristãos. É incrível a ironia por minha mãe e meu irmão estarem entre os últimos a adentrarem o templo, sendo que eu fui o primeiro. É isso aí, família Miranda abre, família Miranda fecha.
Não há lugares vagos perto de mim, mas minha mãe, despachada do jeito que é, explica para as pessoas à minha direita que eu sou novo no pedaço e que sou filho dela e... Resumindo: as pessoas gentilmente cedem seus lugares para dona Lola e Dominique sentarem. Agora estou me sentindo aquele pirralho que está indo pela primeira vez para a escola, e a mamãezinha tem que ficar de olho até ele se enfiar na sala de aula.
“E não é que você veio mesmo?”, mamãe cochicha comigo e parcialmente para Dominique.
“Tô surpreso em te ver, Sávio”, minha loirinha favorita comenta, também em surdina. Isso me causa um certo desconforto, é como se eu tivesse vindo à igreja porque abandonei as drogas e a galera está disposta a me apoiar.
“Só vim aqui pra trabalhar, gente. Relaxem!”, trato logo de avisar, sem tirar os olhos de Cibelle, que parece o tempo todo tão ocupada.
“Cadê a Milena?”, indaga mamãe.
“Não veio. Esse é um caso que eu estou trabalhando sozinho, mãe”.
“Vocês brigaram, foi?”
“Mãe! Claro que não! Eu já expliquei pra senhora, a gente costuma trabalhar separados, lembra?”
“Não lembro de nada disso”.
Mães!
Neste momento, um homem responsável pela programação da noite, munido do microfone, anuncia um número musical. Ele se refere às pessoas que vão cantar como “ministério de louvor”, o que me soa um tanto nebuloso, mas aposto que é apenas uma questão de tempo para que eu compreenda. A princípio, é apenas um punhado de jovens que formam uma banda e vão se apresentar agora.
“Amados, fiquem de pé nesta noite e vamos adorar ao Senhor!”, diz Cibelle, para meu espanto. Pelo visto, ela é quem “comanda” o tal ministério.
Cibelle tem uma voz doce, meiga, cálida. Ela se move e se porta com elegância e suavidade. Ao som de seu pedido, todos se levantam e passam a olhar para ela e a banda com empatia e um aparente sentimento de grande amizade. Apesar de não fazer bem o meu tipo, reconheço que ela é bonita e, mesmo eu estando dentro de um lugar sagrado, não pude deixar de notar que ela realmente tem um corpo atraente. Não é um mulherão de parar o trânsito. Entretanto, a justificativa de Thomas a respeito de ter um tesão enorme por ela é válida.
Contudo, ainda estou esperando para ver se ela vai deixar escapar algo que comprometa sua “perfeição”. Obviamente, uma pessoa numa igreja não iria se descuidar a ponto de revelar alguma parte inapropriada de seu ser, pelo simples motivo de que aqui é um lugar onde as pessoas procuram evidenciar suas virtudes. Não há nada de condenável nisso. Eu poderia me sentir frustrado e arrependido por ter escolhido o lugar errado, mas, diferentemente de todos por perto, eu não estou em busca de apreciar as virtudes de ninguém. Estou aqui à caça de alguma informação que passe despercebida por quem já chegou aqui convencido de que todos são amigos e se amam. Portanto, este lugar é perfeito para o meu trabalho.
Só não esperava que fosse acontecer tão logo. Nossa!! Olho com mais acuidade para ver se estou de fato enxergando o que está se passando diante de meus olhos e... Uau!! Não dá para acreditar: Mas que garota desafinada! Juro que me bateu a dúvida se não estou testemunhando uma possessão demoníaca neste exato momento, por que onde está a pessoa que eu acabei de descrever por ter uma voz tão agradável? Um espírito maléfico usurpador parece estar no controle e, ao que tudo indica, eu sou o único que está se dando conta disso. Ora, por favor! Esse povo não é surdo, e ninguém precisa entender tanto de música pra sacar que essa moça canta mal. Eis uma prova da complacência religiosa que deve permear muitos cultos Brasil afora. A pessoa é ruinzinha de gogó mas todo mundo finge que curte, pois quem vai magoar a irmãzinha? Além disso, no meio evangélico, acho que as pessoas levam muito mais em conta a intenção de quem está exercendo pessimamente alguma arte em vez de simplesmente chegar para a pessoa e mandar a real.
Saco o celular e resolvo registrar em vídeo a cantoria de Cibelle. É bem capaz de Thomas finalmente achar um motivo para se desapaixonar. Sim, o mundo está cheio de casais em que um dos parceiros (ou ambos) é tão bom em cantar quanto uma foca gripada, mas talvez ao imaginar isso como uma tortura constante, Thomas reavalie o que sente e prefira continuar solteiro. Ou, pelo menos, resolva manter a distância e deixar tudo na amizade.
Dominique e mamãe estão com as mãos pro alto, cantando junto, seriamente envolvidos na atmosfera espiritual. Quase todos estão nesse clima. Fico surpreso por ser o único a estar filmando, nesses tempos de modernidade em que a necessidade de registrar tudo é tão latente. Acho respeitável, assim as pessoas dão mais atenção ao que deveria importar. Apesar da falta de talento de Cibelle agredir meu bom senso.
Um minuto e alguns segundos é suficiente. Guardo o celular e volto a cravar os olhos em cada suspiro de Cibelle. Olho para o lado e Dominique já está com os olhos abertos outra vez. E, lá no púlpito, Cibelle também. Que curioso! Estou imaginando coisas ou... Eles estão se encarando? Sutilmente, estão sim. Quero dizer, a cada cinco segundos ela lança um olhar na direção de Dominique e ele corresponde. Aquilo foi um sorrisinho? Será que minha mente está criando um cenário só para justificar minha presença neste lugar?
Dominique olha para mim e tudo que eu consigo balbuciar é:
“Tremendo!”



Em casa, aproveito que Dominique está numa boa curtindo suas músicas no celular, e me aproximo:
“Você deve estar curioso pra saber o que eu tava fazendo exatamente na sua igreja, né?”
“Não”, ele retruca, numa simplicidade revoltante, tamborilando os dedos ao ritmo da música que está ouvindo. Não compreendo esses jovens que usam fones de ouvido e conseguem se comunicar ao mesmo tempo. Na minha “velhice juvenil”, essas duas tarefas são incompatíveis.
“Mas eu vou te contar”, eu não me dou por vencido. “Inclusive, acho que você pode me ajudar”.
“Sério mesmo?”, ele parece odiar a ideia.
Dominique tira os fones dos ouvidos, enrola-os, depois amarra os longos cabelos louros, sinalizando com a cabeça que eu já posso falar o que tanto quero.
“Você fala muito com a Cibelle?”, já vou direto num dos pontos-chave.
Ele franze as sobrancelhas. Na certa, está surpreso por eu mencionar logo de cara um nome tão famoso da igreja a que pertence.
“Cibelle? A do ministério?”
Ah, seu pilantrinha... Sabe muito bem que eu estou me referindo justamente a essa Cibelle, mas precisa fazer tipo, né? Podia ter enrolado um pouquinho mais.
“A Cibelle do ministério”, confirmo, com certa malícia.
“Algumas vezes, por quê?”
“Vocês são amigos?”
“É, pode-se dizer que sim”.
“O que você sabe dela?”
Dominique dá de ombros, perdido. É, eu fui vago na pergunta. Não posso garantir que ele esteja escondendo algo, pois conheço meu irmão, mas ele pode muito bem estar ocultando alguma coisa, pois ele sabe que eu tô ligado que ele tem namorada, uma moreninha muito acanhada chamada Bianca.
“Sei lá... Sei algumas coisas. Você tá atrás de saber o quê exatamente?”
“Qualquer coisa que não esteja nas redes sociais dela. Alguma coisa mais íntima, de repente algo picante. Ou comprometedor, entendeu?”
Dominique estuda minhas palavras e meu rosto. Ele meneia a cabeça como quem não acredita que está passando por esse tipo de interrogatório.
“Ela é uma garota muito direita, é só o que eu sei dela. Não acredito que ela esconda algo tão mirabolante, pelo menos não que vá te servir”.
“Droga!”
“É sério que você tá chateado porque uma menina não tem algo de mau na vida? Você é doente, Sávio!”
“Ela tá a fim de você?”
“Hã?”
“Eu vi o jeito como ela te olhava. Ela tá a fim de você, Dominique?”
“Cara!”, ele está com aquele ar de riso típico de quem acaba de ouvir a probabilidade mais remota sobre uma garota estar a fim de um cara. “Que viagem é essa? De onde foi que você tirou isso?”
“Anda, Dominique! Abre o jogo, rapaz! Eu vi o olhar dela pra você. E você tava correspondendo”.
“Quando foi isso?”
“Na hora que ela cantou”.
“Você deve ter entendido mal”.
“Mal foi ela cantando”.
Ele suprime uma risada. Provavelmente deve reconhecer a falta de habilidade e afinação da garota, mas não vai admitir, já que “pode-se dizer que são amigos”. Hum, isso me faz pensar na sorte que algumas pessoas possuem em não ter Milena como amiga.
Estou começando a sacar um provável fato: eu percebi os olhares dela para ele, mas ele não. Dominique está mergulhado em sua ingenuidade, crendo que a moça é uma dessas criaturas inalcançáveis, por isso reagiu incrédulo quando levantei a suspeita.
“Era só isso que você queria, Sávio?”, ele indaga, impaciente.
Eu retruco com impaciência extra:
“Não. Quero dizer também que, se existe algum curso para ensinar as pessoas a serem cristãs, então é melhor você se matricular nele, porque a senhorita tá muito marrentinha pro meu gosto, viu, Rapunzel?”
Irritado, ele responde ao meu comentário me atirando uma almofada.


Estou me sentindo levemente culpado. Não comprei muito a história de “apenas amigos” que Dominique alegou a respeito de sua relação com Cibelle. Não engoli essa aparente indiferença.
Vasculho tudo que posso nas redes sociais de ambos, além de (perdoe-me, irmão) hackeá-los para tentar encontrar algo mais oculto. No que está visível a qualquer ser humano, existem entre eles várias marcações em compartilhamentos de fotos, postagens, vídeos, links. Em alguns destes, tanto Dominique quanto Cibelle marcaram pouquíssimas pessoas, incluindo um ao outro.
Porém, basta deixar a mente vaga por dois segundos e me vem Ivan e Anna à memória. Preciso dar foco ao trabalho. Thomas já me ligou duas vezes nos últimos quatro dias, em busca de alguma esperança. Tive de lhe dizer que ainda estou recolhendo material, e que assim que eu tiver coisas interessantes a respeito de Ivan, entro em contato. Espere! Eu disse Ivan?
Apanho o celular e verifico na pasta de mensagens enviadas se, por alguma distração imbecil, eu tenha realmente mencionado o nome Ivan.

Fique tranquilo, Thomas. Assim q eu tiver infos interessantes sobre a Anna, entro em contato c/ ctza.

Putz, consegui fazer pior. Eu troquei Cibelle por Anna. A vida não tá fácil mesmo. Quanta tensão!! Enfim, Thomas deve ter entendido que eu me enganara, já que até agora não me questionou.

Encontro, finalmente, algo que vá me garantir alguma diversão. Uma longa conversa entre Dominique e Cibelle no Facebook Messenger. Invadir a privacidade do meu irmão pode ser justificado pelo fato de eu querer protegê-lo. Vai que Thomas é um desses homens ultraviolentos, movidos por um ciúme doentio. Ok, a princípio só estou verificando se há qualquer detalhe que me sirva para o desapaixonamento de Thomas, mas preciso de uma explicação reserva, claro. E se realmente houver algo mais que amizade entre meu irmão e a “cantora” da igreja? Melhor parar de especular e continuar acompanhando a leitura. Desta vez, o alerta moral está desligado.
Até agora, uma conversa bem trivial. Coisas da igreja, sobre o grupo de jovens do qual ambos fazem parte, comentários sobre pregações, a Bíblia, músicas que gostam em comum... E agora estão falando sobre vida amorosa. Cibelle não está namorando ninguém, mas confessa que está interessada num “rapaz complicado” (palavras dela). Pergunto-me se ela se refere ao colega do curso de Inglês, Thomas, ou ao Dominique, já que este tem namorada. Dominique sorrateiramente insiste para que ela revele quem é o cara que está “mexendo com o coraçãozinho dela” (palavras dele, de uma breguice constrangedora). Se ele está tentando conquistar essa garota, está procedendo muito mal. Todavia, o papo continua desenrolando. Devo admitir que ele deve estar fazendo algo correto... para alguém que queira se manter na friendzone.
Dominique fala timidamente de Bianca, sua namorada, para Cibelle. Esta, por sua vez, chama-os de fofos e incentiva meu irmão a levar a namorada para visitar a igreja qualquer dia. Ele lamenta que Bianca não demonstre muito interesse, e então Cibelle comenta com ele algo do qual aparentemente eles já conversaram outras vezes. E a partir daí a conversa me pega totalmente desprevenido, bem em cheio.


“O que é isso?”, indaga Thomas, numa crescente ansiedade, segurando o envelope que acabo de lhe entregar.
“Abra”.
Ele está tão curioso que rasga o envelope de forma a quase prejudicar a integridade do conteúdo. De dentro, ele puxa uma folha na qual imprimi parte da conversa que espiei entre Dominique e Cibelle, com a identidade de meu irmão devidamente protegida, inclusive nas mensagens em que o nome dele é citado. Assim como outros nomes que podem entregar a fonte de minha pesquisa.
Thomas está lendo atentamente.
“Já li”, ele diz. “Eu deveria entender alguma coisa? Porque só esse papel não esclarece nada pra mim”.
“Eu imaginei”, concordo.
Ele sustenta um olhar confuso. Resolvo explicar:
“Thomas, você e a Cibelle são de mundos completamente diferentes. Ela acredita, você não. E, no momento, o que você pode dar a ela que seja tão ou mais interessante do que o que ela já tem?”
“Você acha que não posso ser tão interessante quanto a religião dela?”, ele me pergunta num tom ligeiramente desafiador.
“Bom, pra ser sincero... Desculpa, mas não. Ela está muito feliz do jeito que está. Nessa vida que ela leva, ela precisa de alguém pra somar, pra acreditar junto com ela. Pela maturidade da Cibelle, ela não é o tipo de garota que precisa de um dilema ideológico pra lidar, ou seja, se relacionar com um cara que não tem fé alguma”.
“Peraí! De que lado você está? O cliente sou eu, esqueceu?”
“Não, claro que não esqueci. E tudo que eu tô fazendo é pra te ajudar”.
“Engraçado, não é isso que tá parecendo”, Thomas reclama, com certa razão, pois ainda não estou sendo totalmente claro.
“Quer saber? Você tem razão!”, decido me utilizar do material pensado desde o início para ser apresentado. “Eu quero que você assista algo”.
Encontro o vídeo da moça cantando, salvo há alguns dias no computador da minha sala na ANNA. Coloco para tocar e mostro a ele. Resolvi que minhas alegações iniciais seriam perda de tempo, então prefiro guardá-las para mim.
“Cara!”, Thomas exclama, horrorizado.
“Imagine namorar uma garota dessas! Imagine ela cantarolando todo dia pra você, hein!”, instigo.
“Não dá pra acreditar que ela canta Diante do Trono. Eles são a coisa mais chata do lixo gospel”.
“O quê?”
“Essa música do vídeo, ela é do ministério Diante do Trono, ele explica.
“Como é que você sabe?”
“Ué, porque eu já fui evangélico. Como você acha que me tornei ateu? Eu vi a hipocrisia das pessoas e tratei de dar o fora. Além do mais, na igreja que eu ia, eles cantavam Diante do Trono o tempo todo, e eu peguei trauma”.
Thomas pode até ser ateu (com uma motivação muito babaca, convenhamos), mas sua complacência religiosa em ignorar o mau desempenho de uma pessoa cantando permanece intacta.
“De repente tá me dando um asco”, afirma ele. “Bom, acho que foi um bom trabalho. Onde eu faço o pagamento?”


Sozinho em minha sala, volto a encarar as mensagens trocadas entre Dominique e Cibelle. Ontem, durante minha nada nobre investigação, não pude concluir se realmente os dois andaram se paquerando inocentemente ou se eu estava forçando a barra tentando identificar isso no meio de cada frase, cada palavra, cada vírgula. Estou surpreso por um casal jovem conseguir levar uma conversa saudável por tanto tempo e nenhum dos dois fazer qualquer insinuação, alguma investida. Não encontrei nada disso. Apenas duas pessoas realmente dispostas a trocar experiências relativas à sua fé. Fé. Que universo estranho para mim! Praticamente inexplorado, talvez um tanto assustador, intrigante. Não tanto a fé em si, mas a oficialização dessa fé, a identificação, a especificidade, com nome e endereço próprios.
Até que Dominique e sua “irmã em Cristo” (palavras dele, de uma breguice aceitável) me tiraram da minha posição puramente profissional e tocaram meu coração.
Após Dominique contar que sua namorada não tem interesse em visitar sua igreja, Cibelle respondeu dizendo que ele precisa continuar orando por ela, do mesmo modo que sempre fizera por sua família, independentemente de um dia ela pôr os pés na IBLE ou não. E foi então que eu descobri que ele sempre orou e ainda ora por mim, ressaltando o quanto me ama e quer me ver feliz, inclusive agradecendo a Deus todos os dias pela minha vida, a dele e a de mamãe. E que, não importa quais caminhos e escolhas eu tome na vida, seu amor por mim jamais mudará. Ele até contou para a jovem que ora pelo negócio que comando com Milena. Cibelle o apoiou mencionando que Dominique é um rapaz amável e firme na fé, e que por isso Deus salvou sua mãe da depressão. Foi nesse ponto da leitura que eu quase caí para trás enquanto lia. Que história é essa de depressão? Minha mãe andou deprimida e eu nunca soube disso? O pior: uma pessoa de fora da família tinha mais consciência sobre o fato do que eu?
Estou chorando ao ler tudo de novo. Esse tempo todo em que eu estive preocupado com o meu pequeno universo, minha mãe esteve sofrendo por alguma coisa (que, posteriormente, também no chat, descobri que tem a ver com ela jamais ter superado a separação do meu pai). E somente Dominique esteve por perto, dando-lhe força, oferecendo uma dedicação de filho que ela não pôde encontrar em mim, além de aparato espiritual. Dominique passou meses e meses orando incansavelmente pela nossa casa, pela nossa mãe. E eu nadando na superfície, preocupado se ele tinha algum flerte pro lado da cantorinha. Não sou o mais entendido das coisas que Deus faz, definitivamente, mas vejo que Ele age de formas controversas. Permitiu que eu tivesse a ideia de espionar meu irmão na Internet para me colocar diante de uma verdade aterradora. Um soco no meu egoísmo.
Não sei até que ponto essas orações foram determinantes para minha mãe voltar a encontrar alegria e abraçar uma nova fé, mas posso dizer que isto é o grande diferencial no meio dessa história toda: a fé. Esse salto no escuro que jovens como Dominique e Cibelle estão dando, motivados pelo amor que sentem por outras vidas, por um ideal que eles acreditam que pode melhorar o mundo. E fico aliviado por meu coração não ser tão de pedra, que me impeça de eu não reconhecer a beleza envolta nisso. Essas coisas que Deus pode fazer com você e por você são, indubitavelmente, tremendas.
Por conta de tudo isso, não há lugar para Thomas na vida de Cibelle. Na verdade não dou a mínima se ele acredita em Deus ou deixa de acreditar, mas se ele já teve a oportunidade de compartilhar das mesmas coisas que ela e optou por seguir pelo caminho inverso, por que criar um panorama em que ele tenha que se estressar outra vez com alguém que cultiva a espiritualidade? E por que submeter Cibelle à possibilidade de uma relação que provavelmente lhe traria chateações e sofrimento? Além do fato de Thomas estar muito mais atrás de seu corpo, disso nunca tive dúvida. Acho que nunca apliquei um desapaixonamento mais justo.
Desligo o computador, apago as luzes da sala e só tenho um destino para ir agora: para casa, dar um belo abraço na minha mãe.



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