(Denner)
Você já acordou um belo dia na
vida e, ao se dar conta de como ela é incrível, gastou alguns segundos
ponderando se aquilo não era um sonho? É assim que tenho me sentido desde que
arranjei esse trampo. Uma novidade grandiosa. Juro, cara, se eu tivesse amigos,
eu os chamaria para uma churrascada com muita cerveja para comemorar do jeito
que a ocasião merece. O problema é que... Ora, a quem estou tentando enganar?
Eu nem gosto de cerveja, e a simples
ideia de me imaginar saboreando um pobre animalzinho assassinado é suficiente
para dar um nó no estômago e aniquilar meu apetite. É um saco ser um cara
incompreendido e com vontades convictas e opiniões um tanto controversas? É, é
um saco!! Mas que se dane!! Eu estou a um passo do melhor emprego da minha
vida. E o melhor: com um talento que eu nem sonhava que tivesse.
“Você tá falando comigo?”, indaga o mestre, a quem eu também posso
chamar de patrão. Mas “mestre” soa mais sofisticado.
“Ah... Foi mal, eu... nem me dei conta de que você tava escutando”,
então cai a ficha de que eu estava tendo mais um dos meus constrangedores
“pensamentos orais”. É o tipo de coisa chatinha que me acontece às vezes. Ainda
bem que não pensei/falei nenhuma besteira, pelo menos não no estágio em que me
encontro, apenas um aprendiz.
“Você ainda não me contou o motivo de não ter amigos”, comenta o
mestre.
O sol se pôs há pouco. Estamos
dentro do carro do Mestre. Executando parte do nosso trabalho, o que me empolga
tanto que (não me pergunte por quê) eu sinto uma pontadinha de excitação nos
mamilos.
Ainda não tenho meu próprio carro,
mas se eu não cometer qualquer erro imbecil, darei um jeito nesse probleminha
em breve. Eu só preciso garantir esse emprego e fazer o meu melhor, e isso
envolve ter muito cuidado com qualquer coisa que eu disser e fizer. Me pergunto
se o fato de não ter amigos incomoda o Mestre. E o quanto isso pesa no meu
período de experiência.
“Na verdade, eu não sei. Eu sempre estive aberto a amizades, o problema
é que as pessoas me evitam, sei lá. Só sei que nenhuma relação de amizade
engrena”.
“Você gostaria que eu fosse seu amigo?”
O Mestre me pega de surpresa com
essa pergunta. Será um teste? O que eu devo dizer para agradá-lo? Ou, no
mínimo, para não soar como um babaca bajulador?
“Mestre, pra mim, já somos amigos”.
Espero ter dito a coisa certa. E
espero que não tenha soado forçado.
Ele sorri. Aparentemente passei
em seu teste. Um tiro no escuro dado por um cego que não tem braços.
“Como um cego pode atirar sem os braços?”
“O senhor ouviu?! Caramba, que vexame! Preciso aprender a me
controlar”.
“Olha ela ali”, o Mestre muda de assunto, apontando ligeiramente
com a cabeça para a mulher que estamos vigiando, uma mulher de meia-idade que
está saindo de uma academia.
“Ela deu duro hoje, hein! Nunca vi um shortinho tão suado naquela...
parte”.
O mestre começa a rir com meu
comentário, mas se engasga e agora está tossindo. O que um empregado em período
de experiência deve fazer?
“Denner, você faz os comentários mais inconvenientemente engraçados que
alguém pode fazer. Ainda bem que eu te encontrei, hein!”
“Obrigado, mestre”.
“Corta essa de ‘mestre’, tá? Me chama pelo meu nome mesmo. Apesar de eu
ser seu chefe, não precisa de toda essa formalidade. Fechado?”
“Bom, eu preferiria te chamar de Mestre. Me sinto mais à vontade.”
Ele concorda com um sinal de
cabeça, enquanto segue com o olhar a morena franzina que vai se afastando com
sua mochila e roupa coladinha de malhação. Então ele se volta rapidamente para
minha direção e, mantendo uma expressão entre austero e gentil, diz:
“Já que você curte essa onda de hierarquia, então vamos fazer o
seguinte. Aqui está uma ordem: Me chame pelo meu nome e para com esse negócio
de ‘mestre’. Entendido?”
Se tem uma coisa capaz de abalar
parte das minhas decisões, essa coisa se chama obediência. E eu odeio ter que
me render a ela, quando eu estou perfeitamente confortável dentro de uma
regrinha criada para minha satisfação pessoal.
“Tenta”, ele me atiça.
Eu hesito.
“Rápido, senão vamos perder a Yara de vista”, o Mestre insiste.
“Mas, Mest...”
Ele me olha acusativo,
impedindo-me de conseguir terminar minha argumentação. Contrariado, e para
continuarmos nosso trabalho, eu apenas digo:
“Ok... Sávio”.
Minha primeira missão está sendo
supervisionada. Para ser sincero, não é minha,
mas da empresa, por assim dizer. Sávio está me mostrando como se faz, apesar de
ele já ter me feito ler uma pilha de relatórios e me explicado diversas vezes
como os procedimentos funcionam.
No entanto, estou longe de me
sentir entediado. Essa coisa de me tornar um agente do desapaixonamento me
deixa pilhado noite e dia, como uma criança que está embarcando para a Disney. O emprego parece simplesmente
irado. Imagina só! Você ter o poder de ajudar a alguém a se livrar de uma
paixão indesejada ou proibida. Segundo o Sávio, eu tenho talento natural para
isso. E eu que pensava que meus pais estivessem certos sobre eu passar o resto
da vida naquele emprego deprimente que eu tive até minha vida mudar
drasticamente. Eu sou Denner Corrêa, tenho 30 anos de idade e ainda moro com
meus pais. Eu sonhei com um mundo melhor para mim e meus filhos (ainda não os
tenho, mas já me antecipei na parte do sonho). Eu sei que serei um vencedor. Eu
terei um novo emprego numa agência descolada chamada ANNA. O negócio deles pode
até ser nada apaixonante, mas meu coração está totalmente entregue.
Embora meus pais achem que é só uma
fase e suas expectativas se resumam a eu voltar a trabalhar como auxiliar de
serviços funerários, eu consigo botar a maior fé nos dias vindouros. Minha
maravilhosa namorada também me apoia fortemente. Ela é a única a quem eu posso
chamar de amiga no momento e, pelo visto, Sávio também está disposto a levar
nossa relação além da barreira entre patrão e empregado.
Estou com meu bloquinho de notas
no colo. Analiso as anotações que fiz sobre Yara e, não importa o quanto eu
negue, isso faz eu me sentir um detetive. Preciso manter o foco e não perder a
humildade.
“Recapitule pra mim, Denner”.
“Pois não, mestre”, eu digo, rapidamente censurado pelo olhar de
Sávio. Ele precisa entender que esse tipo de mudança é gradativa. “Certo. Sávio. Então... Yara é o objeto de
paixão do nosso cliente Olavo Gama ou, como você prefere, Sr. Gama. Yara tem 48
anos, é dentista, divorciada, tem dois filhos que moram em outro estado e já
foi casada três vezes, sendo que os filhos são do primeiro casamento. Ela ajuda
num abrigo de animais, o que é muito nobre e fofo da parte dela, e às segundas,
quartas e sextas frequenta a academia. Ela tem dois gatos e três cachorros em
casa e... Hummm... tô esquecendo alguma coisa?”
“O essencial”.
“Ah, sim, é claro. O Sr. Gama, que é um homem de 56 anos muito culto,
sério e de modos tradicionais, cismou que tem algo de errado com ela porque já
foi casada três vezes e, segundo ele, isso é meio suspeito. Eles estão saindo
há algumas semanas e ele quer levar a relação adiante, mas não quer perder
tempo com algo que pode prejudicar seus sentimentos. Resumindo: o Sr. Gama já
passou dos 50 e quer alguém pra sossegar o facho, mas não quer se meter numa
fria”.
Uau! Até eu estou impressionado
com o tanto que eu absorvi sobre o caso. E com a quantidade de informações que
a gente descobriu, a despeito das dificuldades que surgiram no meio do caminho.
Por exemplo, foi um martírio descobrir que Yara tem todos esses animais
domésticos, porque quando eu estava vigiando a casa, um dos cães se soltou e eu
corri feito um maluco pela vizinhança, surtando e em pânico. Culpa de um trauma
de infância. Tivemos um cão em casa, durante certa época, que vivia de péssimo
humor. Certo dia, ele resolveu dar uma prova disso ao pular sobre mim enquanto
eu andava inocentemente na minha bicicletinha pelo pátio. Eu desmaiei e acordei
num quarto de hospital, duas ou três horas depois, com toda a família à minha
volta. Só depois me explicaram que provavelmente eu estava brincando no
“território” do Amadeu (era assim que ele se chamava), pois ele supostamente
havia marcado aquele pedaço do pátio com seu xixi horas antes do ataque. Para
minha sorte, o naco que ele tirou da minha perna não tinha mais de doze
centímetros. Mas o trauma me ensinou a valiosa lição de não se divertir em
território alheio. Não sei dizer se foi justiça poética ou algo dessa natureza,
mas no ano seguinte ao ocorrido, Amadeu morreu após um arranca-rabo com um rottweiler da vizinhança. E eu não usei
o termo arranca-rabo por força de expressão. Amadeu teve o rabo literalmente
arrancado no que pareceu uma ciranda violenta com o impiedoso oponente. Apesar
de tudo, eu posso dizer seguramente que tenho amor pelos cães. Um amor
cauteloso, é verdade, mas ainda assim verdadeiro.
Olho para Sávio, em busca de uma
reação à minha demonstração de trabalho eficiente, mas ele está se acabando de
rir.
“Eu pensei em voz alta a respeito do cachorro, né?”, atesto.
Ele não consegue responder
oralmente, apenas confirma com a cabeça, porque está muito ocupado usando sua
boca para rir de mim. Qual será o médico que eu deveria ver para tratar dos
meus “pensamentos orais”? Sério, isso ainda pode acabar me matando.
“Mas a minha curiosidade maior é... por que Amadeu?”, ele encontra
uma folga na cachoeira de risadas e indaga.
“Ué”, eu dou de ombros, não vendo sentido no questionamento. “Na verdade, a pergunta é ‘por que não
Amadeu?’”
“Ok, ok, já entendi. Você e sua família são muito peculiares e gostam
de nomear os animais com nomes tipicamente humanos, em vez de Tobby, Rex,
Bolinha, Totó ou qualquer coisa assim. Saquei. Cara, cada vez mais eu gosto de
você”.
“Sávio, a gente tá perdendo o foco”, reclamo. Com certo medo, já
que ele é meu chefe e esse “território” é dele. O pedaço de carne que perdi
pela mordida furiosa do Amadeu ecoa em minha mente e me lembra de que eu tenho
de me pôr no meu lugar.
“Tem razão, Denner”, ele reconhece, enquanto limpa as últimas
lágrimas que vieram com as gargalhadas. “Bom,
ao que parece, você tá bem inteirado da situação. Qual é o seu palpite para o
próximo passo?”
“Coletar informações sobre os ex-maridos da Yara e, de quebra,
descobrir por que eles se separaram dela. A chave para o desapaixonamento pode
estar aí”.
Sávio sorri com imensa aprovação.
Eu dei a resposta que ele estava esperando.
“Eu falei que você tinha talento para a coisa”.
“Muito obrigado, Mestre”.
“Denner...”
“Desculpa”, eu falo, preparando a câmera para fotografar Yara
saindo de uma livraria, de onde ela vem trazendo uma sacola que deve conter, no
mínimo, uns três livros e, provavelmente um ou dois CDs.
“Ela demorou bastante tempo pra quem acabou de sair toda suada e
provavelmente fedendo da academia”, avalia Sávio.
“Verdade”, concordo, “mas o
cheirinho do cecê se mistura ao do café da livraria e fica tudo numa boa”.
E Sávio volta a explodir em
risos.
Yara resolve parar numa
panificadora. Viro-me para Sávio e, decidido, informo:
“É a minha deixa”, e já vou destravando o cinto de segurança,
preparando-me para sair do carro.
Ele apenas me olha, examinando
minha força de vontade em fazer bem meu trabalho. Certamente já sacou que eu
vou tentar uma aproximação, como um abrir de parênteses antes do próximo passo.
Adentro a panificadora, fingindo
interesse pelo lugar. Avisto meu alvo dando orientações sobre seu pedido para o
atendente. Acho que a ouvi dizer algo sobre queijo ricota ou algo assim. Pelo
menos ela é coerente para quem saiu da academia. Penso numa recordação que
acaba de me vir à mente. O Sr. Gama não vê nada de errado no estilo de vida de
Yara, ele até lamenta não ter tanta coragem quanto ela de se meter a fazer
exercícios físicos. Ele alega que isso é pra quem está tentando impressionar
alguém e, segundo ele, na idade em que está, a quem ele iria impressionar? Na
ocasião, eu quase devolvi dizendo que não tinha necessariamente de malhar para
impressionar alguém, mas também para cuidar da saúde e tal. Preferi ficar
quieto. Apesar de ter uma leve desconfiança de que isso não foi apenas pensado, pois ele imediatamente falou
que cuidava da saúde indo ao médico e fazendo tudo o que lhe era mandado. Ou eu
expressei meu pensamento pela boca ou esse senhor sabe ler mentes.
Yara senta-se com seu iogurte
natural e um sanduíche de ricota feito no pão integral. Ela pousa sobre a mesa
a sacola com os livros e CDs que comprou há alguns minutos. Quando ela tira um
dos volumes para examinar enquanto faz seu lanche, eu descubro que não preciso
me aproximar, pois tenho certeza de que acabei de encontrar um belo motivo que
pode ajudar muito no desapaixonamento.
Sávio adorou saber da minha
descoberta na padaria. Ele está tão otimista quanto eu a respeito do sucesso
que teremos neste caso. Entretanto, só nos encontraremos com o Sr. Gama amanhã.
Por hoje, tudo o que me resta é chegar em casa e descansar. Ou melhor, tentar.
“Ah, olha só quem voltou. Passou o dia todo fora, hein, bonitão!!
Espero que essas saídas tenham uma boa explicação, tipo ir atrás de um novo
emprego”.
Eu sei o que parece. Que tenho um
pai ou uma mãe que não compreende o que estou fazendo agora, que eu não preciso
procurar um novo emprego, pois já
estou a centímetros de ingressar oficialmente na ANNA, mas a realidade é que
essa bronca não foi dada por nenhum dos dois. Foi meu irmão caçula quem disse
essas palavras e ele é a pessoa que ganha mais que todos nós juntos, por isso
adora jogar na nossa cara. Sim, ele é um pequeno megero de 12 anos. O único, na
face da Terra, que merece que eu use um termo masculino que nem existe.
“Boa noite, Lucas”, eu uso minha diplomacia infalível.
“Não banque a bichinha educada pra cima de mim, Denner!! Onde você
esteve?”
Sejamos razoáveis. Diplomacia
pode falhar às vezes.
“Eu estava trabalhando”, declaro.
“Trabalhando?! TRABALHANDO?! Ora, não me faça rir! Você está se
referindo àquela ideia idiota de fazer as pessoas se desda...desaspai...dessapis...
ora, droga, você entendeu. É disso que você tá falando?”
“Lucas, você pode ter um ataque do coração antes da idade certa, sabia?
Se acalma aí”.
“Eu vou pegar meu cinto e te mostrar quem é que tem que ficar calmo,
seu vagabundo patife. Minha agente tem razão, sabia? Eu deveria me mandar desse
país e fazer minha carreira internacional, PRA VER SE VOCÊS PARAM DE TORRAR
MINHA GRANA NESSA CASA, SEUS INÚTEIS”.
“Você tem 12 anos e sua agente não sabe o que fala. Mas, considerando
que ela tá ganhando com isso, acho que ela sabe o que fala sim”.
“Podia ter usado esse tempo livre pra cortar esse cabelo, isso sim. Por
favor, quando aparecer alguém pra me entrevistar em casa, faça o favor de se
esconder”.
“Mas que tempo livre?”, replico. “Eu já disse que estava trabalhando”, reafirmei, passando as mãos
pelos meus cachos castanhos e admitindo que, dessa vez, tinha de concordar que
estava precisando dar uma aparada.
Não me sinto à vontade em
explicar os pormenores a respeito da ANNA para o Lucas. Está mais do que claro
que ele é uma criança que não sabe lidar com a carreira artística. Ele é um
atorzinho descoberto por acaso por uma publicitária infantil que, assim que
descobriu o potencial e o carisma dele, além de um sorriso realmente invejável,
caiu como um abutre sobre o coitado. Ele é a cara da maioria dos comerciais da
marca Joy´s, que produz todo tipo de
quinquilharia para o público infanto-juvenil, de roupas a brinquedos. E, ao que
tudo indica, em breve ele será a única estrela da marca. Seu contrato tem
validade até ele completar dezoito anos. Tempo suficiente para ele se tornar
inescapavelmente insuportável. Sem falar nos convites que ele vem recebendo para
estar em seriados e novelas. O menino até já fez sua primeira ponta num filme
com artistas famosos. Mesmo tendo uma única fala (“não, madame”), seu canal no Youtube
bombou de comentários elogiosos e todo tipo de bajulação (pois é, Lucas também
tem um canal no Youtube, apenas para
ampliar seu narcisismo com seu rol de seguidores ávidos por vídeos que não
contêm mais do que divagações a respeito de sua vida de celebridade teen). Alguns afirmaram que ele merecia
um Oscar. Teve até gente delirando que ele estava esperando demais para lançar
um livro. Por “gente” eu quero dizer adolescentes que não sabem o que é ficar
sem Internet e videogame por um dia sequer.
Nossa irmã mais velha, Glenda,
teve a ideia mais esperta e ambiciosa de todas e, cansada de encontrar empregos
menos prestigiosos, resolveu que agenciaria a carreira de Lucas. Como meus pais
tem a tendência a ser ludibriados por uma boa conversa e Lucas é apenas um
garoto deslumbrado com a fama precoce, Glenda inventou uma explicação qualquer
e convenceu a todos de que era a pessoa ideal para agenciá-lo, mesmo ela nunca
tendo feito isso na vida e nem mesmo tendo a mínima noção de como começar. O
curioso é que, desde então, Lucas não se dirige mais a ela como irmã, mas como
agente. Eu, por minha vez, preferi jamais me meter. E é uma das coisas que me
faz crer que nasci na família errada.
Este é o retrato dos Corrêa: um
pai que ganha um salário mínimo, uma mãe que cuida da casa, uma irmã
interesseira, um irmão-prodígio que fatura bastante dinheiro espalhando seu
sorriso e sua simpatia. Se eu fosse um irmão malvado (ou seria justo?),
bastaria filmá-lo tendo um de seus ataques de estrelismo em casa e postar na
Internet, mas uma voz dentro de mim diz que, estranhamente, isso traria mais
publicidade para o rapazinho e talvez ele até me agradecesse. E é assim que
todos, exceto eu, convenientemente preferem fazer vista grossa para o
comportamento malcriado de Lucas, deixando-o à vontade em seu mundinho de
estrela mirim simplesmente porque seu dinheiro compra isso.
Como sempre, ninguém pensou em
mim para o jantar. Havia comida para 50 mendigos famintos na geladeira, mas
nada para um vegetariano. Bom, nunca levaram a sério quando eu falei que tinha
resolvido cortar a carne da alimentação. Primeiro, disseram que não existe
vegetariano pobre. Depois, começaram a tentar me sabotar colocando carne cozida
até no feijão.
“Mesmo que você não mastigue a carne, tecnicamente você não estaria
comendo dela por conta do sabor deixado no feijão? Tipo, você estaria
absorvendo os nutrientes dela, não? Você estaria engolindo aquilo que a carne
pode dar pro ser humano, não é verdade? Pelo menos uma parte disso”, certa
vez Glenda perguntou, alfinetando-me com algo que eu sinceramente não sabia
responder. Vegetarianismo ainda era novidade pra mim.
Ao ver que eu havia apenas ficado
calado, todos trocaram risinhos entre si, como se tivessem pegado o rato inexperiente
na armadilha.
E, assim que eu ingressar na
ANNA, na primeira oportunidade que eu tiver, cairei fora deste covil. Quero ir
embora sem ressentimentos, mas os irmãos complicados que eu tenho não estão
ajudando.
Temos diante de nós um Sr. Gama
perplexo, ao olhar as fotos que eu tirei na padaria. Ok, não fui muito
discreto, e eu não podia ser pego. A primeira foto ficou uma porcaria, porque
eu havia me esquecido de desativar o som da câmera do celular e, ao me
aperceber disso, a mão tremeu por conta de um pequeno susto e a imagem ficou um
horror.
No entanto, com um esforço quase
ninja, consegui cinco imagens nítidas que exibem uma Yara sorridente diante de
um CD que ela comprara na livraria, no dia anterior, junto com alguns livros.
“E, como o senhor expôs com muita ênfase em seu formulário, o senhor
não curte nem um pouco esse tipo de música”, dou a minha cartada.
Sávio me dá uma piscadela
cúmplice. Ele está aprovando minha atuação como agente.
“Você ainda tem essas fotos em seu celular?”, indaga o Sr. Gama,
encarando-me com uma seriedade inquietante.
Eu olho para Sávio enquanto
respondo que sim, meio que procurando no olhar do meu chefe algum sinal se devo
me preocupar ou não. Ué, algo saiu errado?
“Aqui estão”, eu entrego ao cliente o celular já com a pasta das
fotos aberta.
Ele abre a primeira, dá zoom. Faz o mesmo com a segunda. E vai
dando zoom em todas. Ele viu algo que
havia passado despercebido por mim.
“Que droga!”, vocifera ele, devolvendo-me o celular com revolta.
“O que houve, Sr. Gama?”, pergunta Sávio.
“Eu achei que tinha visto algo saindo da sacola dela. E dei zoom pra confirmar. E estava certo”, ele se
levanta de sua cadeira e começa a andar pelo escritório de Sávio.
“O que o senhor viu, Sr. Gama? Outro CD? Pior que esse do Justin
Bieber?”, estou nervoso.
“Não tem nada de errado com o CD do Justin Bieber”, retruca o Sr.
Gama. “Você já ouviu ‘Sorry’? É simplesmente viciante!! O problema mesmo
está neste item aqui, quase saindo da sacola. Yara está lendo Cinquenta
Tons de Cinza”.
Ok, por essa eu não esperava. E
eu nem mesmo tinha me atentado para isso. Mas por que tanto alarde? Nunca li o
referido livro, mas sei do que se trata, embora eu ainda não esteja entendendo
por que o Sr. Gama ficou tão transtornado.
“Eu tenho trauma de mulheres que curtem sadomasoquismo. Só de me
lembrar já me dá arrepios. Agora estou muito assustado com a Yara. Será que ela
planejava incluir isso em nosso relacionamento?”, relata o Sr. Gama, e eu
poderia jurar que ele está tremendo. É, não se brinca com traumas. Minha perna
que o diga.
“Bom, nesse caso...”, digo, com lamento.
Sávio intervém:
“Então que bom que conseguimos algo, Sr. Gama. É uma pena descobrir
dessa forma, mas... parece que agora o encanto se quebrou, não é?”
“Definitivamente, Sávio. Definitivamente”, reconhece o cliente.
Que coisa mais estranha! O que
estava se configurando como um inegável fracasso se revela como uma tremenda
realização. Minha mente está num turbilhão de emoções variadas e, não posso
mentir, meu coração está batendo num compasso esquisito, pois é a primeira vez
que me encontro num momento como este, isto é, a hora de confrontar o cliente
com a verdade, a hora da possível demolição da paixão.
O Sr. Gama nos deixa um cheque,
agradece e sai. Ele parte ainda atônito, com o olhar espantado e o ar parece
ficar mais pesado. Sinto-me como se tivesse matado alguém, ou, na melhor das
hipóteses, ajudado a matar. Mas no fundo sei que, na verdade, fui eu quem puxou
o gatilho, quem atuou mais intensamente nesse “crime”.
“Como está se sentindo, Denner?”
“Não sei”, e não estou mentindo.
“Você se sente como se tivesse matado alguém?”
“Ah, fala sério. Eu pensei isso em voz alta também?”
“Não”, Sávio diz, após uma risada leve. “Eu também me senti assim, no começo. O desapaixonamento é um processo
que nos faz sentir com certo... poder. Sim, exatamente isso. Poder. E, enquanto
a gente não tá acostumado com esse poder, a gente estranha, bate até um
sentimento de culpa. Depois que a gente se acostuma, a gente passa a entender o
que tá fazendo nessa empresa. O quanto estamos ajudando as pessoas, em vez de
matando-as. Já pensou se o Sr. Gama descobrisse pessoalmente que a Yara queria
bancar a sadomasoquista? Seria um desastre, e só Deus sabe como isso iria
terminar entre eles. O ideal é que ele vá lá, invente uma desculpa qualquer e
ponha um fim no relacionamento. Dessa forma, ele fica aliviado por não ter que
lidar com seu trauma bizarro e ela não se sente culpada por suas preferências
literárias. E sexuais.”
“Mas... Não faz sentido”.
“O que não faz sentido?”
“Quem garante que ela curte sadomasoquismo? E se ela lesse o livro e
odiasse? E se nós livramos o Sr. Gama de viver uma paixão feliz e um
relacionamento bonito? Será que a gente realmente o ajudou?”
“São perguntas pertinentes”, considera Sávio. “Mas, analisando bem, por que uma mulher de 48 anos, divorciada três
vezes, que mora com cinco animais e frequenta academia três vezes por semana
compraria um livro desses? Acho que ela está com a mente bem aberta a certas...
experiências”.
Estou pensativo. E Sávio, com um
profissionalismo que chega a ser um tanto assustador para mim, arremata:
“Fomos contratados por um motivo, Denner. E fizemos o nosso trabalho.
Fomos pagos por um serviço que prestamos, não importa se saiu um pouco
diferente do esperado. Mas nós somos a ANNA e a nossa parte foi feita”.
Eu o encaro. Ele realmente parece
convicto de cada palavra. De fato, parece que quanto mais casos eu solucionar,
mais parecido com Sávio eu serei. Porém, será que eu quero me parecer tanto
assim com ele? Do que é preciso para me tornar um agente desse porte? Será que
me arrependerei?
“Vem comigo, tenho uma surpresa pra você”, anuncia ele.
Acompanho-o através da porta e,
pouquíssimos passos após atravessarmos o corredor, ele destranca uma outra
porta, convidando-me a entrar com ele.
“E aqui será a sua sala”.
“Caramba!”, minha alegria chega tão repentina que eu praticamente
esqueço das sensações que eu tive com o fim do caso do Sr. Gama. “É sério mesmo? Uau, cara!”
“É sério sim, moço”.
“Mas... essa sala aqui não era da...?”
Sávio se mostra um pouco
incomodado, mas balança a cabeça e admite que aqui costumava ser o escritório
da sua ex-sócia. Ainda bem que não mencionei o nome de Milena, pois sua reação
poderia ter sido pior. Penso que seria mais fácil para mim se eu soubesse
melhor do que aconteceu a ela.
“Talvez eu te conte, Denner. Mas não vai ser hoje”.
“Ah, você ouviu, que mancada! Perdão!”, tento dar o sorriso menos
amarelo que posso.
“Vou te deixar sozinho pra olhar o ambiente. Pode até pensar numas
ideias pro lugar. Enfim... Você merece. Fez um bom trabalho. Parabéns!! Pode se
considerar contratado. Pode se considerar, oficialmente, um agente”.
Minha resposta é um sorrisão bem
aberto, genuíno. Sávio me deixa sozinho. Mesmo eu acreditando que ele só fizera
isso pelo assunto Milena ter vindo à tona, prefiro deixar para pensar nisso
depois. Aproveito para fechar os olhos e viajar na imaginação. Não vou ganhar o
mesmo salário de Lucas, mas acontece que agora eu também sou uma estrela. Do
meu jeito, mas sou. Estrela de um céu meio nublado, mas sou. No meu
faz-de-conta, posso ver meus pais e meus irmãos me olhando, fascinados por eu
ter chegado a um lugar extraordinário, para fazer algo fora do comum, e por não
ser apenas mais um mané nesse mundo gigantesco. À medida que sou aplaudido por
minha família, outros aparecem para me ver também. Colegas que faziam bullying na época da escola,
ex-namoradas que me traíram ou me trocaram por “coisa melhor”. Até o Amadeu,
que gostaria de balançar o rabo se ainda tivesse um, então se contenta apenas
em latir. E, no meio disso tudo, posso ouvir Sweet Dreams, na versão do Marilyn Manson. Eu não sou chegado nas
músicas do cara, mas essa tem a atmosfera perfeita para o que está se
desenhando em minha mente.
O toque do meu telefone me
arranca do devaneio. É a minha amada namorada.
“E aí, amor? Alguma novidade?”, ela está meio esbaforida e, pela
voz sussurrada, deve estar no trabalho.
“Sim, meu amor”, eu cogitei mentir para ela só para pregar uma
peça, mas tá impossível disfarçar a satisfação. “Eu consegui, Rita. Eu sou oficialmente um agente da ANNA”.
“Ai, que maravilha, meu Pokémon!! A gente tem que comemorar”.
E algumas horas depois, a gente
comemorou. Essa é a vantagem de ter uma namorada que trabalha no cinema: se seu
orçamento tá apertado, ela dá um jeito de conseguir ingressos grátis. O namoro
vai bem, obrigado. É uma relação bem jovem, com apenas alguns meses de
existência, mas não há quem nos olhe e não diga que Rita Lina e eu fomos feitos
um para o outro.
E o filme? Olha, nem prestei
tanta atenção assim. Só de saber que eu não terei mais de me humilhar para o
fedelho do Lucas, eu não preciso de outro final feliz que não o meu próprio.
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