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24 de março de 2016

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 3x04: VENCIDOS E VENCEDORES



(Sávio)

Eu gosto muito de Silverchair. Por volta dos meus 17, 18 anos, costumava negar quando todo mundo dizia que eu só começara a curti-los por causa do motivo óbvio: Ana´s song. Passei um tempão alterando o nome da música em todas as cópias em MP3 que eu tinha dela, acrescentando um N ao nome “Ana”, para sentir a canção como se fosse dedicada a mim e ao meu sofrimento. Rolou uma pequena frustração quando fiquei sabendo que a música era, na verdade, sobre a anorexia do líder da banda, Daniel Johns. Depois que você analisa a letra, até que faz sentido e, embora eu torça um pouco o nariz para essa versão que nada contemplava as minhas dores, devo admitir que a música ganhou tons mais poéticos e profundos para mim.
Toda essa divagação sobre Silverchair faz parte de um momento inesperado aqui na sala misteriosa do oitavo andar da TechnoCorp. Simplesmente do nada as músicas da banda grunge começaram a tocar através de umas caixas de som espalhadas nos quatro cantos da sala. O porquê de ser especificamente essa banda? Não faço ideia. Assim como não faço ideia do que está se passando aqui. Há quanto tempo estamos trancafiados aqui? Eu chutaria, sei lá, uns noventa minutos.
“Quando essas malditas músicas vão parar de tocar?”, esbraveja um dos três caras que estão aqui comigo.
Não estou em condições de defender o Silverchair, mesmo porque depois do episódio ridículo que vivenciei em Goiânia, prefiro não pôr minha mão no fogo por banda nenhuma ou cantor nenhum. O homem que reclamou da música é o Juraci. Ele é um homem alto, bastante gordo, com a mão do tamanho de uma pizza média. Notei que ele usa uma peruca mal posicionada e, se as circunstâncias fossem favoráveis, eu poderia até ver alguma graça nisso. Nesse pouco tempo enclausurado com três estranhos, já me dei ao trabalho de descobrir seus nomes: além do Jura (ele insistiu para que o chamemos assim), há também o seu Venâncio, o idoso do grupo, e o Howard, que em uma hora e meia já deu mostras de que se acha o máximo só porque nasceu nos Estados Unidos.
Seu Venâncio tem o rosto sardento e vermelho, corpo mirrado e é surdo de um dos ouvidos. Howard parece ter a minha idade, tem porte atlético e o cabelo alourado tão bem penteado que parece ter sido esculpido e, tal qual uma escultura, nem sequer se mexe.
Eis os meus colegas de reality show. Enfurnados numa sala com alguns móveis, um frigobar, uma TV de umas quarenta polegadas e nada de janelas. Pelo menos Aurora não cometeu a insanidade de manter este lugar sem ar-condicionado.
Falando em coisas insanas, o rock do Silverchair é substituído por... Raça Negra?!
“Aí sim!”, comemora Juraci.
“Você gosta disso?”, indago a ele, apesar de ser tarde demais para perguntar, pois ele já está até batucando os dedos numa prancheta que acaba de encontrar.
E uma conclusão me é clara:
“Peraí! Eles estão tocando músicas de acordo com nossos gostos específicos. Tiveram o trabalho de investigar sobre a gente. Meu Deus, até isso?! O que mais eles descobriram sobre nós?”
De repente, o monitor da televisão é ligado. A figura de Aurora Souto surge na tela.
“Saudações, navegantes!!”, diz ela, e eu me coloco bem à frente da TV, encarando-a com revolta. “Andei observando os resultados dos primeiros contatos entre vocês. E até então, estão se dando bem, mesmo num ambiente de competição”.
“Que competição?”, indaga Howard.
“Isso não importa”, intervenho. “O que a gente quer mesmo saber é a que horas você vai acabar com essa besteira de nos manter trancados aqui. Olha, Aurora, não tem a menor graça”.
“Dona Aurora!”, exclama Juraci. “Pelo amor de Deus, meu filho está me esperando no carro. O menino só tem oito anos, deve estar desesperado. Preciso sair daqui, por favor, dona Aurora!! Eu lhe imploro”.
Juraci se ajoelha, ridículo. Aurora lhe dá uma bronca:
“Não seja inconveniente, Juraci. Levante-se!”
Quando ele se ergue novamente, ela anuncia:
“Seu filho está bem. Já o levamos pra casa. Íamos explicar pra sua mulher o seu paradeiro, mas ela parecia muito apressada e não quis saber. Seu casamento vai bem, Juraci?”
Ele engole em seco e baixa a cabeça, mas agora deve estar menos angustiado por causa do filho.
“Quanto a você, Sávio, é melhor parar com esse comportamento hostil. Isso não vai ajudar com o resultado final da competição.”
“Eu não quero saber de competição”, retruco. “Quando eu sair daqui, pode ter certeza de que eu vou à polícia e você vai ter de se explicar”.
“Ah, é? E o que vai acontecer com o dinheiro que eu já transferi pra conta da sua empresa? Você tem 10.000 reais para me devolver, Sávio?”
“Mas... Que história é essa de dez mil reais?? O serviço não custa nem metade disso. Além do mais, eu tinha entendido que você ia acertar o pagamento comigo, após o serviço estar pronto”.
Os meus três companheiros de confinamento estão com o mesmo semblante de surpresa. Devem estar imaginando que tipo de negócios eu ando prestando para Aurora.
“Mudei de ideia e resolvi logo transferir o dinheiro”, explica ela. “Previ que você fosse agir dessa maneira. E, conforme te expliquei antes, eu estava disposta e pagar o preço necessário pelo serviço”.
“Tudo bem”, eu preciso me mostrar inabalável. “Então, por favor, ligue pra minha sócia e peça pra ela não fazer nada com o dinheiro e lhe devolver. Assim, você me tira daqui e continua com sua grana. Pronto! Todo mundo fica numa boa, ninguém sai prejudicado”.
“Não é assim tão fácil, meu ingênuo Sávio”, ela estraga meus planos. “Não se sai da Sala Dos Desafios com uma simples negociação. Ou você sai vencedor ou sai vencido”.
“Então eu já me considero vencido. Pode destrancar a porta?”
“Não se sai vencedor ou vencido sem uma competição”.
“Cacete! Do que se trata tudo isso? Por que você trancou a gente aqui? Isso não tem cabimento, Aurora!!”
Na minha revolta, viro-me para os outros três e, com meu olhar, cobro deles uma reação. Será possível que eu sou o único indignado aqui?
“Eu queria ser legal com você, Sávio”, lamenta Aurora, baixando a cabeça como se estivesse anotando alguma coisa. “Mas sua indisciplina e insubordinação podem te custar muito. Lá se foram cinco pontos”.
“Aurora, eu preciso ir pra um funeral. Você investigou sobre mim, certo? Então sabe que eu tô dizendo a verdade”.
“Não houve funeral, Sávio. E considere o assunto encerrado”.
“Não houve funeral?! Como assim não houve funeral?!”
“Assunto encerrado, Sávio”.
“Vocês não vão falar nada pra essa maluca?”, eu digo para os outros, tentando incitá-los.
“Eu queria, mas só consigo escutar parte do que ela fala, então prefiro não me envolver em discussões”, afirma o Seu Venâncio.
“E o meu filho já está a salvo, então por mim tudo bem ficar aqui. Agora ele é responsabilidade da mãe”, diz Juraci, dando de ombros, parecendo aliviado. Acho que o casamento dele realmente tá com algum problema. Ou ele tá desesperadamente precisando de uma folga do trampo.
“E eu até agora tô querendo entender como é a competição”, confessa Howard, olhando atento para a TV.
“Nenhum de vocês está aí à toa”, Aurora prossegue. “Como eu disse antes, a permanência de vocês na Sala dos Desafios é de 24 horas. No entanto, até lá, vocês passarão por algumas provas que acontecerão a cada oito horas. E eu estou aqui para anunciar a primeira. Após todas as provas, teremos um vencedor. E o vencedor, obviamente, levará um delicioso prêmio”.
“Qual?”, Howard pergunta com uma inegável ambição nos olhos, capturado pela promessa.
“Aí é que está, meu querido Howard. Uma das provas será a descoberta do prêmio”.
“E se não conseguirmos cumprir todas as provas?”, questiona Jura.
Cansado dessa ladainha estúpida, saio da frente do monitor e me sento no sofá, apenas tentando manter a paciência.
“Vocês se lembram do outro rapaz que devia estar com vocês? Lembram do que aconteceu com ele?”
“Seus capangas deram uma coça nele? Sim, a gente ouviu tudinho”, digo.
“Peraí, a gente tá correndo risco de apanhar?!”, desespera-se Jura. “O que é isso? Você descobriu o que aconteceu na colônia de férias de 1982, não foi? Meu Deus, será que o Rivaldo Pimenta nunca vai desistir dessa ideia de vingança?”
“Calma, Juraci, calma!! Não tem nada a ver com nenhum Rivaldo Pimenta. Desculpe, me expressei mal. Não foi isso que eu quis dizer”, explica-se Aurora. “Quis dizer que a cada prova não cumprida, um de vocês é eliminado”.
“Ótimo!”, declaro. “Obrigado por avisar, assim eu me garanto em ser despachado logo na primeira prova. Mal posso esperar por ela”.
“Sávio, você só diz isso porque não faz ideia de como o prêmio pode beneficiar você e até mesmo as pessoas que você ama. Faça um favor a si mesmo e dê o melhor de si no jogo. Aliás, essa mensagem é para todos vocês. Que tipo de homens vocês são? É assim que vocês querem parecer para suas namoradas, esposas, mães e irmãs? Como covardes fujões?”
“Por mim, tudo bem. Nenhuma mulher importante na minha vida sabe que eu estou aqui”, continuo inflexível.
Mas Aurora me ignora:
“A competição terá provas de habilidades físicas, filosóficas e estratégicas. E a primeira é a seguinte: há uma carta perdida nesta sala. Encontrem-na”.
“Só isso? Moleza!”, diz Howard, cheio de si e já tirando o paletó, como se isso tivesse alguma relação com a tarefa.
“Dona Aurora, eu gostaria de dizer que...”, mal o Seu Venâncio abre a boca, a tela da TV se apaga. Aurora se foi. E nos deixou com uma droga de tarefa idiota de procurar uma carta.
“Eu só ia dizer que já encontrei a carta. Mas como não tinha papel no banheiro, eu a usei pra limpar a bunda”, revela o Seu Venâncio.


Nunca imaginei que a primeira prova fosse ridícula a tal ponto de já ter sido cumprida antes mesmo de ser anunciada. Graças às necessidades fisiológicas do Seu Venâncio, ainda temos mais oito horas para esperar até o próximo desafio.
“Desculpa, amigos, se eu soubesse que a carta tinha alguma coisa a ver com isso, eu não teria usado”.
“Relaxe, Seu Venâncio. A gente sabe que o senhor não fez por mal”, Jura o apoia.
“Sim, meu intestino está normal, obrigado por perguntar”, responde o idoso.
“Achei um livro de poesias”, informa Howard, tirando um exemplar bem fino de dentro de uma gaveta do armário. “Vai que ela resolve passar outra prova relacionada a... coisas escritas”.
“Deixa eu dar uma olhada”, eu digo, e ele me passa o livro. Missão Poesia, de Marvin Cross. Blá, blá, blá, blá, poesia cristã, não sei o quê... Hum, nunca ouvi falar desse autor, nem mesmo de poesia cristã. Meu irmão poderia curtir”, e largo o livro sobre uma escrivaninha próxima.
“Eu pediria pra você ler um poema do livro, mas eu não curto poesia”, diz Juraci.
“Não vou ler, Juraci, pode ficar tranquilo. Até porque o clima não tá pra poesia, eu acho”.
“Se vocês insistem”, o Seu Venâncio se levanta do sofá, esfrega as mãos como quem está nervoso. “Faz um tempão que não faço isso, mas...”
E ele começa a declamar um poema. Um negócio meio confuso e esquisito (como a maioria dos poemas soam, a bem da verdade) envolvendo uma tal Carolina, com algumas palavras que já nem se usam mais na Língua Portuguesa, tipo “fuzarca”, “doravante”, “banzé” (o que raios é um banzé, mano?). Não sei se sou eu quem não está prestando atenção muito bem, mas do meio pro fim a Carolina agora está sendo chamada de Izamara. Ou será que é outra mulher?
Após intermináveis cinco minutos, Seu Venâncio termina, balançando a cabeça de maneira muito humilde. Howard e Juraci o aplaudem, meio que pra demonstrar respeito, eu suponho. Vou na onda e bato umas palminhas também.
“Foi o senhor mesmo quem escreveu, Seu Venâncio?”, interessou-se Howard.
“Sim. Fiz agorinha. Modéstia à parte, sempre fui bom em improvisar poemas. A moçada achava supimpa”.
“O senhor devia fazer muito sucesso nos saraus, hein!”, digo em tom sarcástico, esperando que ninguém note.
“Um soneto à moda italiana sobre Manaus? Hummm... Pôxa, rapaz, eu não sei quase nada sobre a cidade, então vou ficar devendo essa”.
“Tudo bem”, eu me utilizo de frases curtíssimas com o velho, já que ele sempre distorce o que a gente diz. Pelo menos fomos poupados de mais um solilóquio poético. Nossa! Um pouco de tempo com este senhor e eu já estou até falando “solilóquio”.
Um silêncio mais pesado do que um elefante se instaura. Isso é odioso.
“Estou com vocês há algumas horas e ainda não sei exatamente o que vocês fazem”, digo. É a única saída que encontro para quebrar a pausa angustiante na conversa.
“Eu sou entregador de encomendas”, conta Juraci.
“E você usa terno pra isso?”, eu estranho.
“Sim. Exigência da empresa”.
“Eu sou um agente duplo”, diz Howard. “Sou funcionário da Aurora, mas finjo que trabalho pro Ricardo Beltrão. Vocês sabem quem ele é, né? O arquirrival dela nos negócios. Eu fiz um curso nos Estados Unidos sobre como ser um agente duplo. Meu professor era agente aposentado da CIA”.
“Não acredito”, digo, ignorando a gabolice de Howard sobre seu glorioso treinamento nos States, e levemente incomodado por ele ter pronunciado “ci ai ei”. “Esse mundo corporativo é muito selvagem. Ela tem um romance com o cara, mas mesmo assim o espiona”.
“E ela é louca por ele”, acrescenta Howard.
Estou cada vez mais impressionado com Aurora.
“E você, por que está aqui, Sávio?”, Howard está curioso.
“Porque Aurora me contratou para ajudá-la a se desapaixonar do Ricardo Beltrão”.
“Desapaixonar?!”, pergunta o Seu Venâncio, usando o ouvido bom.
“Isso. Eu tenho uma empresa especializada em ajudar as pessoas a pararem de gostar de outras, romanticamente falando”.
“Uau! Se eu tivesse te conhecido antes...”, lamenta Jura, fazendo-me imaginar o porquê disso.
O monitor da TV se acende. Aurora outra vez.
“Estamos com fome, Aurora”, reclamo. “Você já esteve num reality show, não é? Então deve saber que os participantes precisam se alimentar de vez em quando”.
“Saudações, navegantes! Parece que houve uma ‘complicação’ com a carta da primeira prova, não é?”
“Sim, está amassada e suja de cocô na lixeira do banheiro”, despeja Juraci, impaciente.
“Como você confina pessoas numa sala e não deixa sequer um rolo de papel higiênico no banheiro? Você já ouviu falar de direitos humanos?”, atiço o clima desagradável.
“Senhores, não vamos perder tempo. A comida será providenciada em breve. Agora, é a hora da primeira eliminação e as instruções para a próxima prova”.
Estranhamente, os nervos ficam aflorados. Existe uma sensação de expectativa, excitação. A mente quer trabalhar incansavelmente contra a terrível conclusão: estamos envolvidos neste jogo absurdo. E estamos ansiosos para saber qual será a próxima prova.
“As instruções para a segunda prova estavam na carta, então infelizmente a prova teve de ser repensada, já que... Bem, seria muita crueldade colocar vocês pra meter a mão no lixo do banheiro, certo? Então, enquanto minha secretária não aparece com as novas instruções, vamos à eliminação. Cada um vai votar em alguém e, somados os pontos dessa pessoa, teremos um veredito. Lembrando que o Seu Venâncio está imune porque, tecnicamente, ele encontrou a carta”.
“Mas ele se livrou da carta”, interrompe Howard. “Como ele pode provar que realmente a encontrou?”
“Não se preocupe com evidências, meu querido Howard. Não se esqueça de que vocês estão cercados de câmeras, então a única pessoa que precisa de fato saber se ele encontrou a carta já sabe que ele encontrou. No caso, eu.”
“Obrigado, dona Aurora”, agradece Seu Venâncio, e só Deus sabe se ele escutou direito ou não o que ela acaba de dizer.
Seu Venâncio é um velho sortudo. Obviamente, tem todo o perfil de primeiro eliminado, mas sua esperteza involuntária o colocou acima de todos nós. É por isso que jamais devemos subestimar uma pessoa experiente, mesmo quando ela faz cagadas.
“Juraci, pra quem vai o seu voto? E, por favor, justifique”.
Jura respira fundo, olha para os colegas de confinamento, depois para a tela da TV e responde:
“O meu voto vai para o Howard”, ele vota do jeito que eu esperava, e por dentro eu estou meio vibrante. “Só por uma questão de afinidade mesmo. Quer dizer, da falta dela”.
“Isso não é uma justificativa decente. Refaça ou vai perder pontos”.
Essa mulher se mostra cada vez mais louca. Existe até uma pontuação para a forma que é feita a explicação sobre quem você quer que saia do jogo?
“Tudo bem”, concorda Jura, dando a entender que ele realmente tem mais a contar. “Eu quero que o Howard saia porque sinto inveja dele. A vida dele é tão perfeita! E eu gostaria de ser magro como ele e ter um cabelo igual. É isso. Não quero que ele fique aqui mais nem um minuto, senão vou ficar me mordendo de inveja”.
O quê?? Mas que porcaria, Juraci!! Não quero crer que ele esteja falando sério. Quem, em sã consciência, quer ter um cabelo que parece ter sido penteado com gel de cimento?
E o bonachão do Howard não está nada ofendido. Pelo contrário, parece que acabou de ganhar dez dúzias de curtidas no Facebook.
Aurora está anotando algo. Depois, ergue a cabeça e se dirige a Howard.
“Bem”, ele inicia. “Meu voto vai para o Sávio, claro. Notei o quanto ele ficou com inveja por eu ter nascido nos Estados Unidos, e de todos os cursos que eu fiz também. Vi o quanto ele ficou olhando pras minhas roupas e pro meu cabelo. Se for pra ter alguém com inveja de mim, prefiro que seja o Juraci, porque a inveja dele é branca. Mas o Sávio? Não. A inveja que o Sávio tem de mim é angustiante. Tenho impressão de que, se eu adormecesse, ele tentaria me matar”.
“Aham”, faz Aurora, tomando notas. “Matar...”
Antes que ela se dirija a mim, vou logo adiantando:
“Meu voto é pro Howard. A justificativa é: acho ele o maior imbecil e não consigo entender como ele consegue conviver consigo mesmo, de tão mala. O fato de ele ter nascido nos Estados Unidos não faz a menor diferença pra mim, apenas prova que babacas nascem em qualquer lugar. Essa justificativa tá boa? Se quiser, posso incluir alguma coisa sobre o cabelo dele...”, não me recordo se alguma vez na vida eu abusei tanto da honestidade. Mas Howard é merecedor.
“Está ótima”, diz Aurora.
Apesar de estarmos em situação tão inusitada, estou feliz por saber que me livrarei desse sujeitinho. Dois votos a um contra o otário.
“Juraci, você está fora da competição”, Aurora anuncia, dura, fria e sem cerimônia.
Jura balança a cabeça em conformação. Eu protesto:
“Mas foram dois votos a um!!”
“Eu sei, Sávio. Mas o problema do Juraci foi ficar se ajoelhando durante meu primeiro contato e questionando quando não devia. Por conta disso, ele perdeu dois pontos com relação ao Howard e... Ele sai e o Howard fica”.
“Seu recalque bate no meu cabelo e volta, seu invejoso”, Howard me diz.
É esse o meu maior rival neste reality show anônimo? Um cara que usa bordões de funk?
“Tem certeza? Acho que meu recalque quebrou com o impacto”, eu devolvo, fulo da vida porque eu já construí uma certa consideração pelo Juraci.
“Certo, dona Aurora. Por onde eu saio?”, pergunta Jura.
“Pardal e Reginaldo vão lhe buscar. Parabéns pela sua participação, Juraci. Pena que não vai mais concorrer ao grande prêmio”.
Juraci se despede de nós, e ouve-se o som da porta sendo destrancada. Os brucutus estão lá, aguardando pelo primeiro eliminado do Big Brother do Oitavo Andar. Juraci parte e, por um momento, meu coração se aperta.
“Ele foi um grande companheiro”, comenta Seu Venâncio.
“Ele já é um vencedor”, eu digo. Eita, sério que eu acabo de dizer isso? Que clichê!
“Agora, em poucas palavras, as instruções para a segunda prova: Existe uma segunda carta nesta sala. Encontrem-na”.
“ESPERA!”, eu berro, antes que a TV se desligue outra vez. E me dirijo ao Seu Venâncio: “O senhor encontrou alguma outra carta?”
“Não”.
“Boa sorte, navegantes! Ah, e a comida de vocês já está aí, numa caixa em cima do frigobar. A produção colocou aí enquanto vocês não estavam olhando. Bom apetite e tchauzinho!”
“Aurora!”, eu grito de novo.
Ela ainda não foi embora.
“É sério, já chega pra mim. Eu já tô cansado. Como é que você quer que eu investigue sobre o seu amante Ricardo Beltrão se me mantém preso aqui? E você só me deu seis dias. Agora só vou ter cinco”.
“Participante Sávio, é melhor se calar, ok?”, ela ameaça, mas desta vez é muito diferente das outras vezes em que me tratou assim. Em seu olhar, posso ver um misto de fúria e constrangimento. “É melhor vocês irem abrir a caixa de comida. Até mais tarde!”
E some.
Nós, os três restantes, olhamos de imediato para o frigobar e de fato há uma caixa sobre ele. A produção de Aurora é tão ninja que, há segundos atrás, não havia caixa alguma ali.


“Preciso te falar uma coisa”, diz Seu Venâncio em segredo para mim.
“Desculpe, Seu Venâncio, mas se for outra poesia, não tô no clima”.
“Eu encontrei a primeira carta no bolso do meu paletó”, ele vai direto ao ponto.
“Sério? Então será que colocaram a carta no seu bolso desde o início?”
“Estou desconfiado que foram os seguranças dela”.
“Que estranho. Por que a Aurora mandaria fazer isso? Pelo visto, ela queria garantir que o senhor fosse o primeiro a vencer as provas. Será que ela fez isso por pena? Não faz muito sentido, pois a Aurora não age com muita lógica”.
“Por que ela teria pena de mim?”, indaga o Seu Venâncio, um tanto inconsciente de sua condição de idoso que não foi descartado do jogo em respeito à sua idade.
“E por que o senhor não falou nada antes?”
“Ué, como eu iria falar? Vocês passaram o dia todo me pedindo pra recitar poemas”.
“Ah, é, claro”, ainda consigo usar um imbatível sarcasmo.
“Procure nos seus bolsos. Veja se não colocaram uma carta na sua roupa também”.
Um tanto contrariado, resolvo atender a sugestão do velho. Estou torcendo para não encontrar nada, pois em nenhum momento eu estive tão fora de mim a ponto de enfiarem uma carta nos meus bolsos sem eu sentir. E estou certo: não há nada. E que mania é essa de Aurora por cartas?
“Ah, então vocês estão de complozinho, é?”, aparece Howard, completamente desagradável.
“Vou beber água”, diz o Seu Venâncio, afastando-se alguns metros.
“Não é proibido duas pessoas conversarem, Howard”, digo.
“Não, não é... A não ser que vocês estivessem de fofoquinha montando um esqueminha pra me derrubar da competição”.
“Não seria proibido da mesma forma”.
“Hummmm... É, tem razão. Mas mesmo assim. Eu não vou deixar vocês ficarem sozinhos criando planinhos pra me fazer perder a competição, entendeu?”
“Por que você gosta tanto de usar diminutivos?”
“Aff... Como você é babaca!”
“Sério? Tem certeza que não quis dizer ‘babaquinha’? Ah, cara, me deixa em paz!”
“Eu conheço seu tipo, Sávio. Tá só usando o velho pra conseguir me tirar do jogo, pensa que eu não sei? No fim, vai dar um jeito de se livrar dele também. Você é um jogador nato, seu pilantra”.
“Obrigado pelo elogio, Howard, mas não tô merecendo. Eu tô pouco me lixando pra esse jogo. Você quer ser o ganhador? Tudo bem. Eu é que não vou ficar no teu caminho. E, olha, duvido que o Seu Venâncio esteja interessado também. Ele nem sabe direito por quê está aqui”.
“Não banque o espertinho comigo, Sávio! Eu estou de olhos bem abertos em você, entendeu?”
“Mais uma vez, agradeço. Mas eu já tenho namorada. Além disso, se eu gostasse de homens, você não faria meu tipo”.
“O quê? Ora essa!! Fique sabendo que eu faço o tipo de qualquer pessoa. Como é que você ousa me ofender, seu cretino idiota?”, Howard parece estar rosnando como uma fera e, por tudo que é mais sagrado, ele caminha até mim, pronto para me agredir.
Mas cai desacordado porque, vejam só, o Seu Venâncio vem por trás e lhe quebra uma cadeira nas costas. Meus olhos estão esbugalhados e meu corpo treme, tentando compreender o que acaba de acontecer aqui.
“Velhinho borra-botas é a tua mãe!!”, esbraveja o Seu Venâncio para o corpo desacordado do Howard. E, assim, fico sabendo o quanto surdez é algo mais perigoso do que eu imaginava.
“Já tava de saco cheio desse boçal”, declara o velho, limpando o suor da testa.


Uma estranha sirene começa a soar, como se tivéssemos que dar início a procedimentos de emergência. A porta se destranca. As paredes se abrem, revelando passagens secretas. De repente, Seu Venâncio e eu somos surpreendidos ao ver que, o que até então se parecia com um escritório grande, agora mais se assemelha a um salão de festas pronto para receber pelo menos 50 convidados.
Aurora vem caminhando, ar de preocupada no rosto, seus seguranças a ladeiam.
“O senhor tinha de agir com tamanha violência, Seu Venâncio?”
“Ele me xingou, dona Aurora”.
“Nem mais uma palavra. Não posso tolerar violência na Sala dos Desafios”, ela diz e, em seguida, olha para todos os lados possíveis, falando com figuras invisíveis para mim. “Vamos ter que antecipar, pessoal. Podem aparecer!”
Balões multicoloridos começam a cair, assim, do nada absoluto, acompanhados de uma chuva de confetes. Uma chuva infinita de confetes!
“Que merda é essa, Aurora? Do que é que se trata tudo isso?”, procuro entender, embora acredite que não vá gostar nada da resposta.
Várias pessoas começam a aparecer, e quanto mais eu tento compreender de onde elas surgem, mais pessoas aparecem. Algumas delas parecem ter muita intimidade com o Seu Venâncio, visto que o abraçam com ternura e admiração. O que é que está rolando aqui?
Aurora se aproxima de mim e, com uma tremenda cara cínica, diz:
“Desculpe ter te envolvido nisso, Sávio. Mas é que eu gosto de abusar da criatividade”.
“Aurora”, eu respondo, colocando a mão na testa, em símbolo de decepção. “Não me diz que isso tudo era só uma droga de uma festa-surpresa de aniversário”.
“Não, não era”, ela me alivia. “Era uma festa-surpresa de despedida pro Seu Venâncio. Ele vai se aposentar e amanhã é o último dia dele aqui. Ele foi o nosso porteiro e eu prometi a mim mesma que daria a ele uma festa inesquecível. Por isso coloquei ele na Sala dos Desafios. Como você pode ver, ele é muito querido. Ele sempre gostou muito de grandes emoções, então achei que iria adorar ficar na Sala, sabe? Mas não tava esperando que ele usasse violência contra ninguém. Infelizmente, tive que intervir e cancelar o jogo”.
“Que se dane essa explicação!”, estou mesmo muito, muito, muito indignado. “E tinha que me meter nisso? Eu nem sequer conheço esse homem”.
Lanço um olhar para onde ele está, e há muitas pessoas cercando-o, aparentemente dando-lhe os parabéns pela participação no famigerado e estúpido jogo promovido por Aurora Souto. Seu Venâncio está inegavelmente feliz.
“Foi justamente por isso que o coloquei lá, Sávio. Porque você era um elemento neutro, alguém que não ia causar desconfiança ao seu Venâncio, e que o faria acreditar que estava numa competição com outros homens. Ele já conhecia o Juraci e o Howard, então em algum momento poderia suspeitar”.
“O Juraci e o Howard sabiam disso?!”
“Sim, Sávio. Geralmente, em festas-surpresa todo mundo sabe, menos o homenageado”.
“O homenageado e o laranja do Sávio que tava lá com ele, né?”
“Sua função foi importante, Sávio. Veja o rostinho dele, tão iluminado. Aposto que nunca se sentiu tão querido”.
“Fazia parte do papel do Howard ser tão imbecil, por acaso?”
“Não, não, na verdade ele é daquele jeito mesmo. O único detalhe é que não ia revelar que tudo se tratava de uma festa de despedida pro Seu Venâncio”.
“E o cara que os seus capangas deram uma surra no elevador? O cara que se recusou a participar da competição”.
“Ah, tá falando do Rodolfo?”, ela se lembra, sorridente, e aponta para um cara a uns dez metros de nós, que não parece nadinha com alguém que fora espancado.
“Não acredito que me meti nessa roubada”, continuo me lamuriando com ódio.
“Ah, vamos lá, foi divertido, não foi? Só espero que não esteja pensando mal a meu respeito”.
“Ah, que nada, por enquanto você é só uma psicopata sádica”.
“Sabe o que eu aprendi nesses anos todos de ex-vencedora de reality show? Que ressentimentos não servem pra nada”, agora ela está dando uma de sábia conselheira. Até seu olhar é mais terno e sua voz é mais branda. “Aliás, aqui está o seu telefone celular, intacto”.
“Obrigado”, faço o agradecimento a contragosto.
Um dos seguranças se aproxima e lhe cochicha algo. Ela assente com a cabeça, depois volta a falar comigo:
“Howard acordou, Sávio. Acho que seria bom vocês se acertarem pra tudo terminar em paz”.
“Sinto muito, mas não vai rolar”.
“Por favor”, ela insiste.
Nem tenho tempo de correr do pedido, pois lá vem Howard mancando e com uma cara azedíssima, com as mãos nas costas, acompanhado por um dos seguranças de Aurora.
“Surpresa, Sávio!”, ele diz, mas sem um pingo de animação. Acho que só para não perder a chance de mostrar que já sabia de tudo.
“Desculpa por falar do seu cabelo e dizer que você é um imbecil”, adianto-me, para perder menos tempo possível.
“Tudo bem, eu já ouvi isso algumas vezes”.
“Só algumas?”
Aurora me censura com o olhar. Parece minha mãe, quando eu começo a pegar pesado com Dominique. Falando nisso, que saudade de casa!
“Desculpa também, Sávio”, diz Howard. “Acontece que eu sou muito competitivo e acabei exagerando. Até me esqueci que tudo fazia parte de uma surpresa pro Seu Venâncio”.
“Sei... Surpresa, né? Acontece que... eu também tenho uma surpresinha”, declaro.
E é aí que tenho a oportunidade de cravar a minha bandeira nessa história toda, com algo que até então ninguém poderia prever.
“Você havia me dado seis dias pra investigar o Ricardo Beltrão, certo, Aurora? Mas aí você insistiu em me manter na porcaria do seu joguinho tosco, roubando um dia da minha investigação”.
“Sávio, esse assunto não é pra ser tratado agora”.
“Pelo contrário”, eu me oponho ferozmente. “Essa é a hora perfeita. E nem adianta tentar me cortar, porque eu tenho uma bela surpresa pra você, Aurora Souto. E esse cabelo-de-pedra aí precisa ouvir”.
“Cara, isso magoa, sabia? A gente acabou de se desculpar”, Howard soa meio choroso, mas não me toca o coração.
Aurora está me encarando, embora por dentro deva estar nervosa.
“Você não quer que eu exponha que você tem um caso com o Beltrão, não é? Mas aí vai uma informaçãozinha pra você, Aurora: esse paspalho do Howard já sabia de tudo. É isso mesmo. Na hora em que mencionei sobre você e o Beltrão serem amantes na Sala dos Desafios, você ficou toda nervosona, provavelmente porque eu era o único ali que deveria saber do seu namorinho. Porém, antes de você aparecer na TV pela segunda vez, eu havia comentado que tinha sido contratado pra isso, e o Sr. American Pie aqui não pareceu nada surpreso. Ele, inclusive, falou que você é louca pelo Ricardo Beltrão. Ora, como é que ele pode afirmar uma coisa dessas, se você jamais comentou isso com ele, Aurora?”
Silêncio embaraçoso. Os olhos de Aurora estão brilhando, mas são lágrimas se formando. Ela está fitando o rosto de Howard, que está visivelmente envergonhado.
“Howard, você era mesmo um agente duplo”, prossigo. “Só que você não espiona o Beltrão pra Aurora. É o contrário, não é? Foi o próprio Beltrão que te contou sobre o romance entre eles, não foi? Aliás, arrisco dizer que foi também o Beltrão quem teve a ideia de fazer você enganar a Aurora, fazendo ela pensar que você tava do lado dela, né?”, concluo.
“Isso é verdade, Howard?”, Aurora pergunta, terrivelmente afetada.
“Aurora, eu posso explicar...”
“Confessa, Howard!! É verdade ou não é?”
Eu dou vazão à parte final e mais crucial do meu discurso:
“Ricardo Beltrão deve olhar pra você como um mero objeto sexual que ele pode manipular mesmo de longe, Aurora. Ele tem você nas mãos. Mas, agora que você sabe a verdade, espero que entenda que não vale a pena continuar se encontrando com um cara desses, que está destruindo sua empresa por dentro. Olha, apesar de malvado, foi um golpe genial. Ah! Por fim, gostaria de agradecer pelas horas de confinamento. Eu nunca tinha resolvido um caso da ANNA num tempo tão recorde. Quer saber o que eu aprendi agora que sou ex-participante de reality show? Ressentimentos constroem vencedores que sabem tirar proveito deles. Tô indo nessa. Fiquem à vontade pra se resolver aí”.
“Aquele safado do Ricardo!”, vocifera Aurora, bem convencida de que essa paixão não vale nada.
São oito da noite quando os deixo para trás. Saio triunfante, com aquele sorriso que não precisa mostrar os dentes para deixar claro que existe uma imensa satisfação em mim. Ninguém me nota, pois a verdadeira estrela ali sempre foi o Seu Venâncio. No fim das contas, seu inesperado surto violento salvou minha vida. E eu dou uma última olhada pra ele, que está rindo feito uma criança com um copo na mão. Enquanto eu sigo, ele me dá uma piscadela e faz sinal de positivo com o polegar. Eu aceno de volta.
Consigo ouvir uma certa discussão entre Aurora e Howard, ele tentando se desculpar da grande mancada que pensou que jamais fossem descobrir. E sobre minhas últimas palavras com relação ao que eu aprendi como ex-participante de um reality show? Bom, eu sei lá o que eu quis dizer com essa baboseira, mas foi a primeira coisa que me veio e achei bacana de dizer, pra dar um impacto, pra jogar a última pá de terra no assunto que eu estou encerrando.
E pensar que Aurora nos pagou dez mil pilas por esse caso...
“Desculpa, tive que voltar”, eu refaço o caminho e me aproximo de Aurora outra vez, e ela ainda tá desolada. “Mas é que esse teu prédio é todo confuso. Como é que eu saio desse maldito oitavo andar, hein?”

Agora que sou um vencedor, não posso ser vencido por um mero detalhe me impedindo de dar o fora daqui.

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