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30 de março de 2016

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 3x05: PARADOXAL



(Milena)

Quem me conhece sabe que eu tenho coisinhas mal resolvidas em termos de assuntos familiares. Uma mãe que faleceu prematuramente, um pai que sempre pareceu estar ausente (até que um dia ele passou a estar literalmente ausente, por morar longe), irmãs com as quais eu não tenho o que se pode chamar de “a relação mais bacana do universo”. Portanto, deve ser fácil imaginar o que significa, para mim, ver que o Natal se aproxima. Nos últimos anos, papai e suas outras mulheres têm vindo para cá para passarmos as datas de fim de ano juntos, mas dessa vez não será possível, devido às complicações de sua vida de professor com um calendário letivo desfavorável.
Eu estaria satisfeita e devidamente consolada por ter Ivan, mas ele tem uma viagem bem na véspera de Natal, para alguma cidade do interior. Meio que me ofereci para ir com ele, mas a propaganda negativa que ele fez sobre o trajeto foi bastante desencorajante.
E, quando eu penso que será uma noite deprimente, recebo uma ligação na sede da ANNA. Madonna, que graças a Deus está de volta à ativa, me passa a ligação.
“Bom dia, Milena falando”.
“Oooiii, Milena, minha querida!”
Esse jeitão meio escandaloso é inconfundível: dona Lola Miranda, mãe do Sávio.
“Oi, dona Lola, tudo bem?”
“Tudo ótimo, graças a Deus. Olha, linda, você não quer vir passar o Natal com a gente? Já tô até arrumando o quarto do Dominique pra você. Ele dorme com o Sávio, não tem problema nenhum. Não vai vir muita gente, pode ficar despreocupada, e a variedade de comida vai ser boa. Você gosta de salada de batata, né? Vou preparar uma bem caprichada especialmente pra você. Posso pôr azeitona, meu anjo?”
Ai, meu Deus, quanta coisa para processar. Nem sei por onde começo. Sem falar que as coisas entre Sávio e eu ainda não estão, digamos, esclarecidas. Sem mencionar, também, que nem sempre tô no clima para as brincadeirinhas da dona Lola sobre eu me casar com ele. Bom, é isso ou umas taças de vinho e acompanhando a suposta alegria alheia natalina pelas redes sociais. Na balança das coisas deprimentes, qual situação parece menos triste?
“Obrigado pelo convite, dona Lola, mas a senhora falando desse jeito me faz sentir como se eu estivesse dando trabalho...”
“Ai, menina, que nada! Você sabe que, pra mim, você é como uma nora. Não é trabalho algum. Te aguardo na Quarta, viu?”
“Ah... Ok. Então até quar...”, eu quis concluir, mas ela já desligou e eu só ouço um insistente tu-tu-tu...
Pelo menos a salada de batata está garantida.
Mal essa chamada se encerra, o telefone toca outra vez.
“Tem uma cliente na linha, dona Milena, uma tal de Vitória”, avisa Madonna.
“Pode passar”.
Converso com uma senhorinha meio esbaforida por uns dois minutos. Não é a primeira vez que me comunico com a dona Vitória Amaral. Parece que hoje o dia está reservado para ligações de senhorinhas esbaforidas.
Após o fim do papo, encontro-me preocupada. Respiro fundo, saio da minha sala, vou até o outro lado do corredor e bato à porta do sócio.
“Tá aberta”, ele grita lá de dentro.
Eu entro e, já pela minha cara, Sávio se deixa contagiar:
“Aconteceu alguma coisa, Milena?”
“Tá preparado pra encarar um caso de zona mortal?”


O último lugar que eu imaginei aparecer numa segunda-feira à noite, ainda mais a trabalho: um bar de comediantes. Acompanhada de Sávio, estamos aqui para uma missão de zona mortal. A mãe de um ex-cliente, que é um comediante de Stand-Up, me ligou esta manhã insistindo que o filho tivera uma recaída pela paixão da qual o livramos há cerca de um ano, e que isto o vem deixando transtornado. Lembro-me como este caso não foi fácil na época, mas confesso que hoje, com minha autoconfiança profissional abalada, não tenho a mínima noção de como a ANNA vai se sair.
“Então aqui fica a famosa Comedy House...”, Sávio comenta, enquanto entramos e escolhemos uma mesa.
“Famosa, é? Só ouvi falar nela hoje, por meio da mãe do Beto. Pensei que você já tivesse vindo aqui”.
“E eu pensei que você já tivesse vindo aqui. Sei lá, com o Ivan...”
Estamos nesse debatezinho inicial porque, na primeira vez que cuidamos do caso de Beto, ele trabalhava como representante comercial, desses         que vão às escolas e faculdades tentar empurrar algum produto aos estudantes. Se bem que, na prática, é quase a mesma coisa de ser comediante de Stand-Up, pois o método é bem semelhante: um cara em pé em frente a uma plateia e que tenta enchê-la com informações aparentemente verídicas, mas que não devem ser levadas a sério.
“Você sabe que eu não gosto que me vejam rindo em público. As pessoas geralmente não estão preparadas pra aceitar alguém que sabe interagir com uma boa piada”.
“Ah, é. Eu tinha me esquecido desse detalhe. Mas se hoje você for alvejada por uma piada daquelas, como pretende se safar da censura pública?”
“Da mesma maneira de sempre”, respondo, com ar de indiferença. “Contagiando todo mundo com minha risada que lembra uma hiena em chamas”.
Passando por cima do falso tom de cumplicidade entre nós, Sávio avalia:
“Seu humor tá meio... estranho”.
“Jura?”
Fui incisiva demais ao dizer “jura”, com um tom exageradamente enfático. Mas não estou pensando em me desculpar. Sávio, claro, percebeu. Mas ele também não vai levar adiante.
“Senhoras e senhores, boa noite e bem-vindos ao Comedy House, cumprimenta o anfitrião ou seja lá o que for do bar, um sujeito negro de óculos de aro grosso e bem-apessoado para um comediante. Afinal, o que eu esperava? Um maluco vestido de palhaço?
“Meu nome é Neto Medeiros e eu serei o host da noite. Antes da nossa primeira atração, eu gostaria de chamar a atenção de vocês para um fato”, isso geralmente faz parte de uma introdução para alguma narrativa humorística. “Já repararam que quando tá chegando o Natal começa a bater um espírito de bondade totalmente do nada?? Impressionante, né? A minha sogra é adepta dessa bondade temporária. É a única época do ano que ela não me xinga. O resto de Dezembro ela passa jogando na minha cara o quanto foi ‘legal’ comigo”.
Quase todos riem dessa piada insossa. Sávio esboça uma risada, mas sem muito envolvimento, enquanto passa rapidamente pela minha cabeça se ele já vem sendo xingado pela mãe da Anna Munhoz.
“Fiquem com nossa primeira atração da noite, galera. Ela chegou recentemente pra fazer parte do Comedy House, então recebam com muito carinho a estreia de... Rita Lina!!!”
Sávio (já devidamente a par dos últimos acontecimentos sobre Rita Lina e sua ascensão dos mortos) e eu nos entreolhamos. É, eu devia ter botado mais fé quando ela disse que era um “espírito livre”.
“Boa noite, GALERA!!!”, ela nos saúda com uma estranha desenvoltura para alguém que está estreando num palco de stand-up. Seus olhos graúdos nos observam atentos. Ou então seja só impressão causada pelo fato de eles serem tão expressivos.
“Uau, tô tão nervosa”, ela inicia. “Como vocês ouviram, é a minha primeira vez como comediante, e tô tendo uma sorte imensa de estar estreando num bar tão legal. Mas eu não vim despreparada, eu treinei muito pra isso. É... eu treinei durante 29 anos, sempre servindo de palhaça pra vida”.
A plateia cai na risada imediatamente. Rita Lina tem bastante carisma. Quem diria que, apesar do assunto delicado que vim tratar aqui, parece que vou ter um pouco de diversão.
“Deixa eu perguntar uma coisa pra vocês”, ela prossegue. “Vocês acreditam em vida extraterrestre?”
Ninguém assume ou nega, e o que rolam são uns burburinhos que não deixam bem claro qual é a posição do pessoal. No entanto, dando uma rápida olhada ao redor, vejo que alguns não dispensam a possibilidade. Muito bem, Rita, com um tópico fácil de arrancar gargalhadas de tão esdrúxulo, até eu subo nesse palco.
Ela sai do palco após quinze minutos muito bem conduzidos, sob calorosos aplausos do público. Quando percebe nossa presença, vem até nós.
“Ei, que legal vocês estarem aqui. Como sabiam que era minha estreia?”
“Na verdade, a gente veio por causa de outro comediante, um cliente nosso”, explica Sávio. “A propósito, seja bem-vinda de volta, Rita”.
Está estampado na cara de Sávio o quanto ele se sente um alienígena ao dizer isso, e sou tomada por uma enorme vontade de rir, mas não desisto de me manter reservada.
“Quer dizer que seu novo emprego é comediante!?”, friso para Rita. “Então é daí que vem todas aquelas histórias de Valpixianos e tal?”
“Credo, Milena, não”, ela se ofende seriamente. “Eu jamais brincaria com isso. Como pôde pensar isso de mim?”
“Ah, perdão...”, eu me desculpo, quando na verdade gostaria de enterrar a cabeça no piso deste bar.
“Eu apenas gosto de explorar diversos ambientes empregatícios. Não sei quanto tempo vai durar essa fase de comediante stand-up, mas eu tô adorando”.
“Você foi muito bem”, Sávio elogia.
“O único problema é o assédio dos fãs”, ela chega mais perto e cochicha. “Tem um cara ali que quase tirou minha roupa só com o olhar. Queria ver ele ficar com essas gracinhas lá em Valpixia. Será que ia ter coragem de dar um dos pulmões pra selar o pedido de casamento?”
“Sério? Uau, o Brasil podia pegar alguns costumes Valpixianos emprestados, né? Isso intimidaria o assédio”, opina Sávio, dando vazão ao seu indefectível sarcasmo.
Olho para a direção que ela aponta e vejo o tal rapaz de quem ela falou. Além de esquisito, ele está hipnotizado e não tira os olhos de Rita. Ele é estranhamente familiar, mas de onde o conheço?
“Ei, eu acho que sei quem ele é”, arrisco, após um tempo de ponderação. “Parece com o carinha que trabalha na capela funerária onde rolou o seu... ahn... a sua... Como posso dizer?”, eu fico que nem uma tonta estalando os dedos, procurando um termo adequado.
“Onde eu reiniciei”, ela completa, e é bizarro como isso não soa estapafúrdio vindo dela.
“É... Onde você reiniciou...”, confirmo, e vindo de mim parece surreal.
Rita dá de ombros, e o fato de o rapaz talvez ser quem eu penso que seja não lhe causa qualquer interesse.
“Adoraria conversar mais com vocês, mas estou cansadona. A gente se vê por aí”, ela se despede.
Sávio e eu retribuímos a despedida e, como sempre acontece após uma interação com Rita, trocamos outro olhar cúmplice sobre o quanto nos divertimos com suas peculiaridades. Já nem sei mais por que a gente ainda se surpreende.
“Espero que o Beto seja o próximo”, torço.
E minhas preces são atendidas. Nosso ex-cliente, que nem sabe que estamos aqui para conversar seriamente sobre sua paixão incurável, é anunciado pelo mesmo host que apresentara Rita.
“Que tal ele parece pra você?”, indago para Sávio.
“Parece bastante profissional”, diz ele. “Quero dizer, ele é comediante, né? Não pode aparecer na nossa frente fingindo que não tem diagnóstico de depressão e que toma remédio pra isso”.
“A mãe dele falou que ele continua indo atrás da tal Nádia...”, conto, e dou uma respirada de frustração. “Pra ser sincera, eu nem sei por que aceitei vir aqui. O nosso trabalho com esse caso foi ano passado. Se ele teve uma recaída, o que eu posso fazer? Não seria a primeira vez que alguém teve uma recaída, né?”
“Milena, por favor”, Sávio tenta me censurar por eu começar a ser direta demais a respeito de minhas decepções. “A gente ainda vai conversar sobre isso, mas essa não é a hora. Além disso, não é o primeiro caso de zona mortal que a gente enfrenta, então vamos agir com todas as nossas armas”.
“Armas...”, repito, com uma sincera falta de ideia de quais armas serão essas.
Beto Amaral está se apresentando todo animadinho e fazendo a galera praticamente se contorcer de tanto rir. Eu poderia me enquadrar nessa situação, se estivesse prestando atenção ao show. Queria ter a mesma serenidade de Sávio, que, mesmo ciente da nossa missão, não está perdendo um segundo de cada apresentação no bar. Contudo, é quase palpável que existe uma nuvem negra pairando sobre nós dois. E o fato de estarmos juntos lidando com um caso em que o cliente voltou ao objeto de paixão apenas piora o quadro. Ainda bem que ninguém pode sondar minha mente, pois estou me sentindo tão irritante com essa minha nova mania de me achar uma profissional medíocre. O problema nisso reside na questão de que eu não posso simplesmente trabalhar em negar a mim mesma o que se passa. Eu ando me questionando sim. E ando me pondo em xeque também, de um modo que chega a desequilibrar meu sono. O suposto talento que sempre acreditei ter, o faro para o negócio que gerei, a habilidade em ajudar as pessoas com paixões indesejadas. Por que, de repente, me sinto como uma anciã enferrujada, cega, de tato descuidado e sem prática?
“Sabe, pessoal”, Beto está falando em cima do palco, “eu não sei em outros lugares, mas aqui no Brasil os médicos são tratados tipo uns deuses, já sacaram? Cê tá esperando pra ser atendido no hospital e, quando finalmente chega sua vez e você vai entrando na salinha do médico, ele ou ela tá lá, todo vestido de branco, parecendo uma criatura intocável, um ser divino dotado de glória e poder”, ele não só fala como gesticula dramaticamente, a fim de dar um acompanhamento corporal à sua história. Isso cria uma boa sintonia com o público, porque mostra que ele não é apático. E o jeito como ele se move incita ao riso. Se eu entendesse de técnicas de comédia, diria que ele está procedendo muito bem. Porém, ultimamente, não tô dando conta nem de analisar a comédia que é a minha vida.
“Dia desses eu tava nessa situação”, continua Beto. “Entrei na salinha, o médico perguntou o que eu tinha, eu falei, aí ele me mandou tomar uma medicação, passou uma receita e no final perguntou se eu tinha entendido. Eu respondi ‘amém, Senhor’. E com as mãos pra cima e os olhos fechados que nem um imbecil. Eu falei ‘pôxa, doutor, foi mal aí pela mancada’, e então ele balançou a mão e disse ‘tá, meu filho, agora vá e não peques mais’”.
E Beto consegue angariar várias gargalhadas, mas mal dá tempo para as pessoas rirem o tanto que gostariam, pois a dinâmica do Stand-Up nos força a voltar imediatamente a prestar atenção à fala dele, que já está seguindo com outra narrativa.
E sua performance vai perdurando. Histórias sobre pessoas desempregadas, estranhamente linkadas a piadas sobre relações entre casais (um clichê presente em 100 de 100 apresentações de Stand-Up) e por aí vai. Não sei se sou eu que estou muito azeda hoje ou se o repertório de humor não tá me ganhando, mas eu mal movi os lábios para rir durante a noite toda.
Finalmente Beto recebe seus aplausos finais e sai de cena. Sávio me olha, sinalizando que vai buscá-lo e trazê-lo para a nossa mesa. Olho para onde estava sentado o suposto admirador de Rita Lina, mas o cara já evaporou daqui. No fim das contas, acho que ela tava certa sobre ele ser seu fã.
Sávio e Beto chegam à mesa. O comediante já não parece tão animadão assim. Olhando para ele agora, apenas parece ser um mero mortal, ao invés de alguém com o invejável poder de alegrar aqueles ao seu redor.
“Sávio e Milena, quanto tempo!”
“Beto, antes de qualquer coisa, quero que saiba que adorei o seu show”, elogia Sávio, extraindo um sorriso dúbio do nosso novo parceiro de mesa.
“Obrigado, Sávio. E você, Milena, curtiu?”
“Acho que foi legal, mas é que eu sou muito chata, então não rio fácil”, eu meio que estou mentindo porque o problema do meu azedume está muito bem direcionado ao dia de hoje.
“Comédia é uma parada difícil”, ele comenta. “Cada risada que eu consigo com uma piada vale mais do que qualquer cachê. Mas enquanto não puder pagar as contas com reconhecimento e gargalhadas, tô aceitando o dinheiro”.
“Sua mãe ligou pra agência, Beto”, corto a mini palestra dele e vou direto ao ponto. “Ela tá preocupada com você, disse que você ainda não esqueceu a Nádia”.
“A gente tá aqui pra te ajudar, Beto”, explica Sávio. “Mas existe um porém: você quer ser ajudado?”
O semblante de Beto se revela ligeiramente preocupado, como alguém que descobre uma conta não paga depois de ter estourado todo o orçamento do mês.
“Eu não sei... Quero dizer, não é que eu acredite que eu e Nádia vamos voltar, mas é que... É complicado”.
“Por quê?”, questiono.
“Bom, não sei explicar. Eu realmente estava muito bem depois que vocês fizeram o serviço de desapaixonamento. Por quase um ano eu tava livre da Nádia. Eu nunca tinha me sentido tão livre em toda a minha vida. Mas aí, uns dois meses atrás, comecei a fazer umas besteiras...”
“Tipo o quê?”, Sávio se interessa, enquanto acena para o garçom vir até nós.
“Fui verificar como tava a vida dela. Falei com uns amigos que temos em comum, dei uma fuçada nas redes sociais, inventei uma conta falsa só pra segui-la no Snapchat, e sei lá, ela continua mais engraçada do que nunca, isso meio que me cativou de novo”.
“Engraçada? Ela é comediante também?”, indago, juntando as peças.
“Não. Mas brincou com meu coração de um jeito que não teve a menor graça”, ele desune as peças que eu havia juntado, usando uma sacada que eu devo admitir que ficou legal. “É que a melhor característica da Nádia sempre foi me fazer rir. Ela sempre teve um humor incrível”.
O garçom se aproxima. Sávio pede uma cerveja para si e Beto solicita o mesmo. Pergunto se eles têm o drinque “Me Encante” e os três me olham como se eu tivesse recitado um poema escrito numa fusão entre grego e russo.
Me desculpo por esquecer que essa bebida é exclusividade do bar do Ivan, então peço ao garçom que me traga apenas água (“água você tem, né, queridão?”, eu não desisto de ser um docinho, não importa o momento). O atendente confirma que sim, eles têm água no bar, mas faz isso com uma extrema cara de bunda trancada, que eu noto que não sou única que não foi influenciada pelo clima de comédia pulsante que está rolando por aqui. Ele então sai para providenciar os pedidos e nós voltamos ao papo.
“O negócio é o seguinte, Beto: sua mãe me ligou hoje de manhã e, segundo ela, você tá sofrendo muito desde que sua paixão por Nádia se reacendeu com tudo”.
“Minha mãe exagera um pouco. Sabe como é mãe, né?”
“Sei...”, concorda Sávio, todo condescendente.
“Eu sei mais ou menos. A minha está morta”, declaro.
“Desculpa, Milena”, diz Beto, sinceramente sentido. “Mas a verdade é que, como eu disse, é complicado. Eu tive uma história com a Nádia, mas não é como se eu estivesse desesperado por causa disso”.
“Não?”, eu falo, em tom refutador. “Então nos explique isto”, eu apanho o celular na bolsa, encontro um print de uma mensagem que a mãe dele me enviou e lhe mostro.
“O que é isso?”, ele gagueja.
“Sua mãe me enviou hoje esse print de uma mensagem que a Nádia deveria ter enviado a você ontem, mas ao que parece ela mandou errado pra sua mãe. Pelo que entendi, é que seu antigo número é da sua mãe agora, não é isso? Mas quando a Nádia foi responder alguma mensagem sua, ela não atentou que você agora tem um número novo e enviou pro seu antigo, fazendo com que a mensagem chegasse ao telefone da sua mãe. E, meu caro Beto, pelo que dá pra ver na mensagem, você deve ter feito alguma coisa digna de um... desesperado”.
“A gente tá bastante preocupado, Beto”, endossa Sávio. “Nessa mensagem, a Nádia diz que ‘isso está ficando assustador’ e que, se você não parar, ela vai ter que acionar as autoridades. Cara, pelo amor de Deus, o que é que tá ficando tão assustador?”
“Sei lá, eu não faço ideia do que...”
“Beto, por favor, não minta pra nós. Só queremos ajudar”, insiste Sávio.
“Você andou ameaçando ela?”, pergunto.
“O quê? Claro que não! Olha, é verdade, eu descobri que ainda gosto muito dela, mas eu juro pra vocês que não tô fazendo nenhuma loucura. Eu nem sabia que ela tinha mandado essa mensagem”.
“Então o que dizia a mensagem que você mandou e fez ela responder isso?”, inquiro.
“Eu apaguei a mensagem”.
“E não se lembra do que tinha escrito?”, pressiona Sávio.
“Eu escrevo várias coisas pra Nádia. Talvez ela esteja se sentindo perseguida, deve ser isso”.
“Se for assim, você está falhando miseravelmente em querer reconquistá-la”, afirmo.
“Milena...”, Sávio reprova minha sinceridade.
“Milena tem razão. Minha cabeça tá meio perturbada. Assim como meu coração. Como é que eu pude me reapaixonar? Eu pensei que o serviço de vocês era à prova desse tipo de coisa”.
Sou atingida em cheio com o que ele diz. Gostaria de admitir que eu também sempre pensei a mesma coisa.
“Mas não se esqueça que quem brincou com fogo foi você, Beto”, Sávio retruca. “Se você não fosse tão curioso a respeito da sua ex-namorada, quem sabe não estaria nessa encrenca agora”.
Que bonitinho, Sávio!! E a sua justificativa, qual é?
“Verdade”, reconhece Beto. “Bom, vocês estão certos. E a minha mãe também, fazer o quê? A gente vive teimando com as nossas mães, mas no final elas só querem nosso bem, né?”
“Dá pra parar de usar mães como referência?”, eu alfineto, mesmo não estando tão incomodada. Apenas sendo um docinho, apenas sendo Milena Kerber.
Beto espalma as mãos em sinal de desculpas, e o garçom está de volta, com as cervejas e a água.
“Vou aceitar a ajuda de vocês e... se vocês conseguiram da outra vez, vão conseguir de novo”, aposta o comediante.
“Esse é o espírito!”, comemora Sávio. “Não é mesmo, Mile?”
“Claro”, concordo, apesar de saber que não convenceria ninguém com essa falta de fé tão evidente no meu olhar.
“Estou nas mãos de vocês de novo”, diz Beto, pegando a cerveja que o garçom acabou de repousar sobre a mesa e dando um generoso gole. Ele sorri. É bom ver que está mais confiante do que eu.


The Verve está tocando. Eu desperto como quem é bruscamente puxado de um sonho e leva um pouquinho de tempo até realizar que Bittersweet symphony ainda é o toque do meu celular. Entre espiar no identificador quem está ligando e uma olhadela no horário no cantinho superior da tela do celular, um estranho temor me invade. Eu não estou esperando uma ligação às sete e quinze da manhã.
“Alô”, já vou logo falando, sem me preocupar se a voz sairá mal articulada.
“Milena, desculpa o horário, aqui é a Vitória”.
“Pode falar, dona Vitória”.
 A voz dela está extremamente solene e isso começa a me dar calafrios.
“Eu liguei porque os seus serviços não serão mais necessários”.
Ajeito-me na cama, de modo a ficar sentada para poder me concentrar na conversa.
“Como assim, dona Vitória? Tá tudo bem?”
“Eu encontrei o Beto no quarto dele hoje, por volta das cinco e meia. Ele se enforcou”.


Depois da ligação (que eu nem lembro direito como terminou; acho que dona Vitória começou a chorar e murmurou alguma coisa antes de desligar), fui tomada por um assombro tão gigantesco, um silêncio tão arrebatador, que simplesmente desabei em minha cama e fiquei lá, por pelo menos uma hora, imóvel, impactada, alvejada duramente pelas palavras da mãe do Beto.
Suicídio.
O peso dessa palavra e a brutalidade de seu significado criam uma casca gelada e tão potente ao nosso redor que é praticamente impossível se desvencilhar dos estragos que isso causa.
Mesmo eu não sendo da família e jamais ter tido alguma relação significativa com ele que ultrapassasse a formalidade entre cliente-empresa, é inegável a dimensão que tal ato toma quando você “conhece” os motivos que lhe originaram. Nunca, em toda esta trajetória enquanto agente do desapaixonamento, imaginei que “zona mortal” ganharia tons tão literais. Isso é muito doloroso, muito agressivo e traumatizante.
Hoje é quarta-feira, véspera de Natal. Todo mundo na casa do Sávio está sabendo do que se sucedeu ontem. Obviamente, ninguém cancelaria uma comemoração familiar por causa da morte inesperada de um rapaz que mal conhecíamos. Eu estou fazendo uma social aqui, mas dá pra sacar que eu estou bastante abalada e acho que todos estão me respeitando. Sávio não conhecia o Beto tanto quanto eu, pois na época que a ANNA foi contratada para resolver seu caso, eu fui a agente em campo.
Nunca conheci um suicida. Conheci candidatos em potencial, mas que nunca sucumbiram à tentação de se desintegrar para sempre das agruras que a vida provê. Saber que você teve participação na vida de uma pessoa que, mais tarde, tiraria a própria vida, te faz recapitular toda sua interação com esse alguém e investigar o quanto de influência, por menor que seja, você poderia ter exercido tanto para contribuir com esse mal quanto para dissuadir a pessoa de tal decisão. Tomar conhecimento que alguém se matou só me faz concluir o quanto não estamos preparados para encarar esse tipo de problema, que vai se tornando cada vez mais banal.


Tento sorrir, me entrosar, mas a mente volta e meia para na mesma estação obscura. Suicídio. Meu Deus, o cara era comediante!! Isso deveria fazer algum sentido? Pois não faz o mínimo sentido!! Num gesto de desespero que esteve mascarado esse tempo todo, Beto nos deixou como último ato uma piada. Sem graça, de gosto duvidoso, mas ainda assim uma piada. Acho que o profissionalismo dele era tão intrínseco que ele se obrigou a fingir que sua dor era menor do que realmente era e... Nossa! Eu tento, tento e tento me desviar desses pensamentos, e não consigo. Não consigo me conformar. Esse paradoxo é emocionalmente esmagador demais para eu me recompor tão rapidamente.
Anna não está aqui. Ela tem de passar o natal com a família, que mora em outro estado. Na verdade, eu nem tinha me tocado que aceitara o convite de dona Lola sem sequer verificar como seria ter de lidar com a presença desagradável da namorada de Sávio, até que ele próprio comentou como seria e eu fiquei me perguntando se ele fizera de propósito, ciente de que eu não me sentiria legal com ela por perto.
Suicídio.
Como ele pôde? Ele nem esperou sequer uma ação da ANNA em seu favor. Como o Beto pôde...?
“A salada de batata já vai ser servida, filha”, avisa dona Lola, tirando-me do devaneio maligno.
“Ah, obrigada, dona Lola”.
Ela dá um sorriso sem mostrar os dentes, apenas para estabelecer um gesto de gentileza, e sai para cuidar de outras coisas. Ela sabe que eu não tô num clima festivo.
“Ei, Mile”, Sávio se aproxima. “Como você tá?”
“Eu não sei. Ainda tô em choque”.
“Eu imagino. Deve ser terrível. Imagino como deve estar a mãe dele”.
“Bom, já eu não consigo imaginar. Esse tipo de coisa é inimaginável”.
Sávio me estende um copo, que eu pego com certo desinteresse, apenas por necessidade de distração. Pelo cheiro, é refrigerante.
“Como ele pôde, Sávio? Tipo, o emprego dele era fazer as pessoas rirem”.
“E a gente tinha falado com ele um dia antes. Ele tava tão bem, tão confiante, tão... alegre”.
“Mas só Deus sabe como era o tamanho da dor dele. E o quanto ele deve ter suportado. Sávio, há quanto tempo será que ele vinha aguentando? Será que ele vinha planejando se matar há muito tempo?”
“Mile, por favor, vamos deixar pra conversar sobre isso outra hora, outro dia? Eu sei que foi um tremendo choque, mas não há mais nada a se fazer. Infelizmente, o que tá feito tá feito. É triste, mas é a verdade”.
“Por um momento, eu...”, hesito, porque tenho tanto, mas tanto medo de falar, que, se eu falar, parece que pode se tornar real. “Esquece”.
Mas Sávio me conhece. É como se ele pudesse ler os meus pensamentos. E, ao contrário de mim, não hesita:
“Você chegou a me imaginar no lugar do Beto, não foi? Você ficou se perguntando como seria se você falhasse em me ajudar a me desapaixonar da Anna, né? Se eu seria capaz de me suicidar também?”
Bebendo lentamente, demoro a responder. Mas balanço a cabeça confirmando suas suspeitas.
Dominique aumenta o som. Noto que, apesar de ele e a mãe serem evangélicos, a playlist é bem variada, mas nada extravagante. Entretanto, fica impossível de conversar agora.
“Vamos pra área de serviço. A gente tem que conversar”, intima Sávio, ao que eu concordo sem pestanejar.
Acho que a tão aguardada conversa que devíamos ter tido na noite em que Rita Lina “morreu” finalmente vai acontecer.



“As coisas estão estranhas entre nós, Milena”, Sávio nem enrola.
A área de serviço fica na parte de trás da casa, no quintal, ao ar livre. Sávio apanhou duas cadeiras na cozinha e as posicionou frente a frente.
“E não eram pra estar?”, replico, e sei que neste momento não tenho razão de ocultar minhas mágoas.
“Bom, eu posso explicar. O problema é que, com tudo o que aconteceu, só agora tô tendo a chance de conversar com você”.
“Explicar o quê, Sávio? Por acaso você vai tentar me convencer de que eu não fracassei naquilo que eu sempre acreditei a minha vida inteira? Que eu sou boa no que eu faço, quando na verdade não é bem assim? Quando, na verdade, tem gente se suicidando por causa do tanto que eu sou falha?”
Ele me encara com incredulidade e espanto. Sinto o rosto petrificado e o coração bater muito forte. Acho que é assim que as pessoas se sentem quando se encontram numa espécie de confronto com seus melhores amigos.
“Não acredito que você tá falando isso”, ele diz, balançando a cabeça em sinal de severa discordância. “Você tá se culpando pela morte do Beto, é isso?! Você tem noção do quanto isso parece ridículo? Você tem noção do tamanho da besteira que você tá falando, Milena?!”
“Ele deixou duas cartas de suicídio”.
Minhas palavras paralisam Sávio. Ele desconhece esse detalhe, já que eu estive escondendo com intenções reais de nunca mencionar. Ele me fita, no aguardo de mais informações sobre essa novidade.
“Uma carta era pra Nádia. E a outra era pra mãe dele. É claro que eu não fui autorizada a ficar com nenhuma, mesmo uma delas mencionando a gente”.
“Como assim mencionando a gente?”, Sávio demonstra medo.
“Na carta que ele deixou pra mãe dele, ele faz pedidos de perdão, diz que ama determinadas pessoas e, lá pelo final, ele diz...”, faço uma pausa porque já não posso segurar as lágrimas que eu não convidei, mas que forçaram tanto para vir à tona. “Ele diz que sente muito, mas nem a ANNA podia ajudá-lo...”
Sávio dá uma longa respirada, atordoado. Acho que agora ele foi realmente capturado pela tragédia de nosso ex-cliente.
“Meu Deus!”, ele sussurra, passando a mão pelo rosto e depois pelos cabelos.
“Como você se sente agora, Sávio? Ainda acha ridículo o que eu digo? Você não enxerga que, mesmo a gente não tendo culpa direta no que aconteceu, a ANNA falhou? EU FALHEI!!”
“Nada a ver, Milena. Isso ainda é ridículo”.
“Você não entende”, disparo, em meio às lágrimas, contra as quais eu nem luto mais. “Por mais que você seja meu sócio, a ANNA é um projeto que brotou no meu coração, é a única coisa na qual eu nunca tive a menor dúvida que eu fosse boa. Um negócio no qual eu jamais podia falhar, e pra isso eu não media esforços ou recursos. Uma coisa é ver você, Sávio, meu melhor amigo e primeiro cliente, voltando à sua antiga paixão. Outra coisa é ver alguém seguindo o mesmo caminho, mas acabar morrendo por causa disso. Será que você compreende o peso que está sobre os meus ombros agora? A falha do nosso serviço matou uma pessoa, Sávio”.
“Milena, isso não tá certo. Você tá abalada e essa notícia te desestruturou totalmente. Acho melhor encerrarmos essa conversa por aqui e, quem sabe, tentar retomar quando você estiver melhor. E tem mais: como sócio e seu amigo, te aconselho a tirar uns dias de folga. Deixa que eu me viro na empresa”.
“Como você espera que eu me recupere, Sávio? Eu já estava me sentindo mal por ver que havia gerado uma empresa baseada numa ideia falsa de ajudar as pessoas, e aí a morte do Beto foi como uma confirmação pra mim. Como você espera que eu me recupere desse trauma?”
“Milena, você quer que eu te conte por que eu desisti de me desapaixonar da Anna ou não? Apenas me escute”.
“Eu não sei se eu quero saber algo que venha da Anna”, há uma certa alteração na minha voz. “Eu não confio na sua amada namoradinha, Sávio”.
“Agora tudo faz sentido”, ele fala num tom que soa triunfante, mas que me incomoda. O que é que faz sentido? “Bem que ela me falou”.
“O que ela te falou?”, indago, ao passo que tento localizar na memória algo que poderia se encaixar no contexto. Existe um certo receio me invadindo também.
Sávio me encara com o semblante pesado. O ar em nossa volta está denso, a escuridão da noite está decididamente mais inclinada sobre nós. Aquele típico clima amistoso que sempre permeia o ambiente quando estamos juntos está dissipado. E, neste momento, é como se nenhum de nós estivesse se esforçando para recuperá-lo.
“Bom, esse não é o motivo de eu ter desistido de me desapaixonar dela, mas...”
Eu estou quase implorando para ele parar de embromar.
“É verdade que você era apaixonada por mim, Milena?”, ele finalmente pergunta.
“Como é que é?”
“É verdade que você era apaixonada por mim? E que se aproximou de mim para provar para suas amigas da escola que poderia se desapaixonar?”
“Sávio...”
“E na época a Anna era uma de suas amigas, não é? É por isso que ela sabe dessa história e pôde me contar. Eu fui uma espécie de experimento seu, só pra você se exibir e você jamais me contou, não é? Diz, Milena!! É verdade ou não?”
Perdemos totalmente o controle. Estamos falando alto, nos desentendendo. Ainda bem que a música lá fora está abafando nossa discussão. Pelo menos é o que eu espero.
“Por algum motivo, você decidiu continuar sendo minha amiga, mesmo depois de ter se desapaixonado por mim. Anos depois, eu me tornei dono de uma empresa junto com você, e você nunca teve interesse em se abrir comigo. Nunca pensou em ser honesta. Sabe, em outra época, eu teria até dado risada disso, mas agora, olhando pra sua implicância com a Anna, e o quanto você tem essa mania absurda de controle, essa doença de não aceitar as próprias falhas, eu sinceramente...”, ele engole em seco, para depois concluir: “Eu não sei mais como lidar com você”.
“Ela jurou que nunca te contaria isso”, lamento, com o olhar perdido e ainda chorando, sentindo os ombros rijos.
“Então é verdade mesmo”, Sávio constata, mas ele já sabia.
“Sávio, isso faz tantos anos”, argumento.
“Milena, não importa!”, brada ele. “Você me escondeu isso todo esse tempo, nem se deu ao trabalho de tentar me contar. Nem ligou se poderia ser importante pra mim”.
“Importante?! Mas era só uma bobagem de adolescente!”
“Bobagem coisíssima nenhuma. Você me usou pra se exibir, se aproximou de mim com interesse mesquinho e me fez virar seu amigo”.
“Você acha que eu me sinto confortável com isso? Olha eu aqui, Sávio! Mesmo depois de conseguir o que eu queria, eu não fui embora, eu descobri um amigo, eu encontrei um irmão que eu nunca tive. Seu idiota!”
Ele tenta não demonstrar, mas está profundamente ofendido.
Eu me levanto, determinada a fazer algo que, a essa altura, é a minha melhor opção:
“Eu não quero mais viver perturbada assim, Sávio”.
Ele apenas me olha, como se estivesse com medo de suas próprias reações.
“Se você quiser continuar tocando a empresa, fique à vontade. Mas eu tô fora”.
“Milena...”
“Você tem razão. Eu tenho uma mania absurda de controle e uma doença de não conseguir aceitar as próprias falhas. Mas é muito mais que isso. Eu não consigo carregar as falhas, essa que é a verdade. Sabe, Sávio, quase tudo que eu sei dessa vida eu aprendi sozinha. Infelizmente, não aprendi a ser forte como eu faço parecer. E é essa falta de força suficiente que me leva a tomar essa decisão. Eu não quero mais saber da ANNA, eu não quero mais investir tempo, saúde, dinheiro ou a minha vida nisso. Eu estou fora”.
“Você tá se precipitando. A empresa precisa de você”, seu tom de voz fica mais grave.
“Não insista”, eu digo, encarando-o o mais profundo que posso em seus olhos, tentando transmitir minha mensagem da forma mais clara. Eu realmente não quero mais estar na ANNA. E essa decisão era apenas uma questão de tempo e circunstâncias. E a maior delas veio ontem, por meio de um jovem homem que deu cabo da própria vida em seu quarto, sozinho e secretamente angustiado.
Lá fora, um clássico do No Doubt começa a tocar.
“Não acredito que tá tocando Don´t Speak!!”, exclamo, um fio de surpresa se escancara em meu olhar.
“Sim”, confirma Sávio. “Eu que fiz a playlist. E coloquei essa música porque é uma antiga que nós gostamos em comum. Achei que você ia gostar”.
Eu dou um sorriso de ternura, porém com uma seriedade preponderante.
“Você ainda se lembra da letra? Da tradução?”, suscito.
Ele assente com um movimento de cabeça. E eu arremato:
“Então não sei se eu chamo isso de coincidência ou destino, mas parece que a letra dessa música tá acontecendo agora”.
Os olhos de Sávio possuem uma luz que eu nunca vi antes. São lágrimas despontando e algo me diz que, assim como eu, ele também não vai se esforçar em contê-las.
“Não tem que ser assim, Milena”, ele faz uma última tentativa. E a primeira lágrima rola. “Você sabe que não deveria ser assim”.
Dirijo a ele o último olhar desta noite. Algo que, apesar de eu querer que pareça vazio e frio, não oculta esse turbilhão de emoções que me rasgaram o peito nos últimos dias. Meu silêncio e meus passos vagarosos rumo à saída são tudo que consigo usar como resposta agora.

You and me
We used to be together
Everyday together, always

I really feel
that I´m losing my best friend
I can´t believe this could be the end…

Pelo visto, ele preferiu ficar no quintal. Melhor assim. Não o quero me seguindo. Só quero paz, sumir daqui, ver a noite se transformar em Natal e eu poder me lamuriar em casa sossegada, sem me importar em desenhar sorrisos e falsear empatia. E que se dane se minha mente está confusa, se eu tomei decisões precipitadas, se estou sendo infantil, burra, dramática ou se estou sendo uma covarde. Eu só sei que estou fazendo exatamente o que eu quero fazer. E é isso que realmente conta.
Suicídio.
A voz da tragédia que acometeu a família de Beto volta a ecoar na minha cabeça. Os pensamentos desordenados, as ideias emaranhadas, e a pancada incessante de uma dor furiosa dentro do labirinto que está a minha alma. Certa de que estou me portando como uma mãe inconsequente, e de que abandonei meu único filho, mesmo assim estou indo para casa. E deixando meu melhor amigo para trás.


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