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19 de abril de 2017

DESAPAIXONANTE -- EPISÓDIO 4x05: UMA CONVERSA DE ADULTOS



Vários anos atrás

Era a terceira vez de Milena no consultório. Por insistência do pai, Marcos Kerber, a jovem terapeuta conseguira encaixá-la num horário apertado na agenda, para conversar com a garota por pelo menos 20 ou 30 minutos.
Milena tinha acabado de completar 14 anos há algumas semanas, o aniversário mais amargo que ela poderia ter.
“Oi, Mile. Boa tarde!! Como tem passado?”, cumprimentou-a dra. Márcia, com notável dificuldade entre tratar a menina com delicadeza por conta da recente perda, e não parecer estar falando com uma criancinha. Adolescentes odeiam que os tratem feito crianças, ainda mais adolescentes com o emocional abalado.
Já fazia pouco mais de sete meses desde o trágico ocorrido.
“Estou bem”, respondeu a menina, mal abrindo a boca, bastante desinteressada pela sessão, mas tentando não bancar a desagradável.
“Há dois meses que não vejo você. E as novidades?”
“Não sei...”, Milena deu de ombros. “Mudei de escola, mas... isso a senhora já sabe, né?”
“Sim, falamos disso na última vez que você veio. Como vai a escola?”
“Normal”, Milena deu de ombros mais uma vez. “Vai indo bem, eu acho”.
“Está fazendo amigos lá?”
“Conheci umas meninas, elas são legais”.
“Ah, que ótimo! Isso é maravilhoso!”
“É”.
Dra. Márcia sentiu um alívio enorme. Na última vez em que conversou com a garota, Milena havia resumindo suas falas a alguns monossílabos e balbucios, praticamente comunicando-se apenas com gestos de cabeça e o irritante dar-de-ombros. Hoje ela estava mais falante e aberta. Marcos iria adorar saber disso.
Notando que a menina havia provavelmente saído às pressas de casa, a dra. Márcia arranjou numa gaveta um prendedor de cabelo e ofereceu a ela. Milena dispensou, dizendo:
“Hoje eu prefiro que o meu cabelo esteja livre. Eu ia sair sem passar a roupa, mas pelo visto meu pai passou todas elas”, ela finalizou dando de ombros de novo, avaliando as próprias vestes como se fosse um martírio estar decentemente vestida.
“Certo”, avaliou a terapeuta. “Sabe de uma coisa? Tem razão. Acho que eu preciso dar um pouco de liberdade pro meu cabelo também.”
Dra. Márcia ficou muito satisfeita ao ver Milena sorrindo, na certa aprovando que a doutora estivesse tentando manter um padrão de aproximação. No entanto, Milena tinha em mente que a terapeuta não passava de uma idiota achando que poderia enganá-la.



(Sávio)

Moro num bairro bastante tranquilo, onde os vizinhos adotam a maravilhosa postura do “cada um na sua”. É um dos enormes prazeres que eu tenho nessa vida. Afinal, quem quer morar numa vizinhança toda problemática, cheia de gente futriqueira e dada a interferir direta ou indiretamente na vida dos outros? Eu diria que é minha versão mignon do Éden.
A única vez em que uma família bastante irregular para os moldes de nosso bairro se acomodou aqui, não levou sequer um ano para eles se sentirem desconfortáveis e se mudarem. Tentavam a todo custo estabelecer contato. Até tentaram me empurrar pra namorar a filha mais velha deles que, a bem da verdade, era uma menina bonitinha, mas na época eu já namorava a Anna Munhoz, e meu coração era como um portão de ferro emperrado, só bastava Anna lá dentro. Bom, o fato de a garota ter monocelha e falar muito alto com uma voz azucrinante também deram uma contribuída para mandar pra longe quaisquer possibilidades.
Curiosamente, os anos se passaram e o bairro continua o mesmo lugar aprazível, ideal para pessoas que não fazem muita questão de interações sociais (como eu), além de quase não se ouvir falar de assaltos e outras mazelas que perturbam a ordem.
Por conta disso, decidimos Anna, Milena e eu nos afastar algumas quadras de minha casa e ir conversar numa praça pertinho daqui. Geralmente tem um parquinho instalado lá, cercado de todo tipo de atrações que vão de cama elástica até aqueles castelos infláveis com piscina de bolinhas. O local fica apinhado de famílias tentando dar uma relaxada após um dia cheio, conduzindo seus filhos a diversões a precinhos camaradas, porém repletos de alegria. Apesar da presença de incontáveis crianças, a praça tem várias áreas onde o barulho do vento funciona como um calmante natural e os berros da garotada soam longínquos.
Nossos carros ficaram estacionados em frente à minha casa, então fomos caminhando até ali. É como se tivéssemos feito um pacto de silêncio que se quebraria tão logo chegássemos lá. Ainda me sinto perturbadoramente ansioso por isso. A ideia de uma “conversa de adultos”, segundo as palavras de Milena, gera em mim uma agonia, um nervosismo pelo que pode vir a acontecer. Afinal, eu vi o bicho descontrolado que brotou de trevas inimagináveis e botou a sala dos desafios abaixo. Vulgo Milena muito-p-da-vida-sim-senhor.
No meio do conflito em que Milena e Anna vêm mantendo desde a flor da nossa juventude, eu me encontro. Como o brinquedo que serviu de pivô para uma briga antiga entre duas pessoas que poderiam ter vivido uma amizade triunfante.
E se do nada elas se desentenderem? E ser houver uma briga física? Sabe, porrada, socos, puxões de cabelo, arranhões no rosto, chutes na costela, braços decepados, corações ainda pulsantes arrancados da caixa torácica, banhados em sangue quente e... Sabia que eu devia ter maneirado ao jogar Mortal Kombat X.
Não, não, isso é dramático demais!! Que exagero descabido!! Vai ser uma conversa de adultos, uma civilizada e elegante conversa de adultos. Todos vão se entender e nós vamos sair daqui, quem sabe, de mãos dadas e cantarolando We are the world. Selado.
“Ali naquele quiosque parece legal pra gente ficar”, sugere Milena.
“Pode ser. A gente pode pedir água de coco. A água de coco desse quiosque é uma delícia”, reitero, aproveitando para ir fomentando um clima agradável.
Tudo está indo bem. Assim é que deve ser.
“Eu acho que esse negócio da água de coco ser uma delícia é meio que uma questão de sorte. Tipo, não tem como você escolher os cocos deliciosos e levar pra vender. Entendem?”, comenta Anna, e eu agradeço a Deus silenciosamente por ela também estar mantendo as good vibes. Embora esteja me contrariando.
“Tanto faz pra mim”, diz Milena.
“E se for vodca, pra você tanto faz também?”, arrisco uma piada, mas só ganho das duas uma olhada disfarçada de reprovação. “Desculpa!”
Sentamos numa mesa do quiosque um pouco afastada do balcão, mais voltada para o ar livre. Posicionados de forma que Anna e Milena ficam cara a cara. Pensando bem, acho que eu preferiria ter o coração arrancado da caixa torácica, de tanto que ele bate de um modo que me exaspera. Meu Deus!!


Milena não pede água de coco. Apenas uma água mineral comum. Talvez ela não tenha intenção de demorar. Por mais que tomar uma água de coco não demore também, pelo menos existe um acordo silencioso de que, ao pedir uma dessas, as pessoas o fazem para curtir o momento, jogar conversa fora, compartilhar as coisas da vida. Então tentam beber a água de coco aos poucos. Já com água mineral... Bom, quem pede água mineral para curtir aos poucos a companhia de alguém? Água mineral é para urgências.
Nossa, eu estou cheio das conjecturas. Disfarçando ao máximo meu desconforto. Desse jeito fica até difícil curtir a brisa que nos beija de vez em quando.
“Já faz muitos anos”, Milena inicia, parecendo tão nervosa quanto eu. Então dirijo cautelosamente os olhos para Anna e ela também está com a face inabalável. Tentando disfarçar o nervosismo, talvez?
Milena prossegue:
“Como você está, Anna?”
“Bem. E você?”, Anna responde, mas nada convincente e muito menos interessada em saber como vai Mile. Suas palavras saem secas. Até o vento sabe que ela está mentindo.
Como que lendo meus pensamentos, ela me olha. Nós sabemos que, desde aquela noite do meu aniversário, as coisas entre nós dois precisam ser resolvidas. E você acha que eu faço ideia de como resolvê-las?
Talvez ela esteja mentindo por estar achando que Milena estragou seus planos de conversar comigo de uma vez por todas sobre aquela noite. Talvez ela esteja mentindo por ter de estar aqui conversando com Milena. Talvez as duas coisas. De todo modo, os três estão envolvidos em ambas as opções.
“Eu não estou muito bem”, Milena responde. “O Sávio deve ter te falado que eu estou com uns problemas com o meu namorado, que você com certeza conhece.”
“É, eu fiquei sabendo, apesar de o Sávio e eu não nos falarmos há um certo... tempo”, outra vez o olhar de Anna me acerta como um tapa, enfatizando a palavra “tempo” de um jeito bem especial.
“Pois é”, Milena continua. “O Sávio tem me ajudado bastante e por causa dele eu descobri várias informações sobre o Ivan. Coisas que eu ainda tô digerindo, mas que eu espero poder resolver em breve. Mas também havia outras coisas pra resolver. Então, pra não ter mais de enrolar, eu gostaria que você faça uma coisa por mim”.
Anna está com o rosto impassível, mas um leve tremor em seus lábios me faz imaginar que ela também está nutrindo algum tipo de raiva, como se suas emoções estivessem frágeis e resguardadas num invólucro prestes a se romper a qualquer minuto. E eu temo.
“Milena”, Anna sorri, mais uma vez não convencendo em seu comportamento, “por que eu faria alguma coisa por você?”
“Anna, por favor!”, preciso intervir, pois minha namorada começa a complicar as engrenagens desta que poderia ser uma noite de paz e tranquilidade na terra.
“Não, Sávio!”, Milena me corta. “Ela tá certa em agir assim. É normal ela agir assim. Eu não tava esperando outra reação”.
“Ainda bem”, ressalta Anna. “Nosso histórico não é dos melhores”.
“Eu sei. E é por isso que eu quero te pedir perdão”.
Anna se engasga de leve com a água de coco. Eu não sei se entendi o que Mile acaba de dizer, portanto fico piscando como quem ouve uma revelação da qual não tem um pingo de compreensão a respeito. Essas duas mal começaram a jogar e já estão lançando sobre a mesa as cartas mais arrasadoras.
“Como é que é, Milena? Perdão?”, indago.
“Sim, Sávio”, ela confirma, no entanto ainda olhando somente para Anna. “Eu estou pedindo perdão pra você, Anna. Demorou muito tempo, mas eu reconheço que errei e que precisava fazer isso”.
Anna está processando as palavras, fitando o canudo enfiado em seu coco.
“Por que de repente você resolveu me pedir pra te perdoar?”, ela diminui o tom hostil.
“Bom, como eu disse, convidei vocês dois pra uma conversa entre adultos, e que eu precisava consertar algumas coisas. Não foi uma ideia que eu tive de repente, eu já vinha pensando nisso. Não tava esperando que fosse hoje, mas fico feliz de poder lidar logo com isso”.
Como um homem que tenta ser prático na vida, se eu governasse a mente de Anna, daria essa conversa por encerrado e perdoaria Milena. Sugeriria que nós três fôssemos embora de volta, de mãos dadas, cantarolando We are the world.
Mas algumas coisas na vida não são tão práticas e fáceis de resolver. Especialmente quando corações foram feridos e laços foram rasgados. É preciso um pouco de tempo para lidar com velhas recordações que nos fazem mal sempre que as trazemos à tona. Nem todo mundo possui maturidade para compreender que o tempo do outro é diferente do nosso, e que isso não é culpa do outro, mas de um conjunto de inúmeros fatores que prepararam o outro para lidar com as mais variadas situações.
 Uma conversa como a que estamos tendo agora serve justamente como uma ferramenta para lidar com isso da forma mais apropriada.
“Ooooolha o chuuuuurrooooos!!!!”, uma voz grita a poucos metros de nós, empurrando um carrinho onde se lê Churros D´Outro Mundo”. Rita Lina vem empurrando e berrando. Em passos graciosos, ela está usando uma espécie de uniforme branco com algumas listras amarelas, combinando com uma calça azul-hospital, arrematando o visu com uma boina preta e os cabelos presos num coque. Espere. Eu disse “combinando”? Bom, estou falando de Rita Lina, cujo senso a respeito de qualquer coisa está muito além da minha compreensão.
Algumas crianças correm até ela, esbaforidas. Um garotinho que não aparenta ter mais de dois anos quase é atropelado por uma menina maior e mais forte, que tem as bochechas vermelhas que nem um pimentão e não parece ter nenhum problema em se esgoelar.
Rita nos avista e, após vender alguns churros para a criançada, encosta o carrinho e vem até nós.
“Mas que coincidência bizarra!!”, admira-se Rita. “É alguma reunião da época do colégio?”
“Oi, Rita”, cumprimento-a, estranhamente com vontade de beijar seus pés por trazer um pouco de alívio a um momento ainda bastante tenso. Se bem que ela apareceu num momento super inconveniente. “Quer dizer que agora você vende churros?”
“Siiiimmm!! E sou eu mesma que faço. Minha mãe queria me dar uma mãozinha, mas ela não compreenderia o passo-a-passo de uma receita Valpixiana”.
Anna, que não está acostumada com Rita Lina, apenas continua bebendo sua água de coco, evitando olhar para Milena. Deve estar aproveitando a chegada de Rita para fazer uma pausa e organizar as ideias.
“Cá entre nós, esse nome ‘Churros D´Outro Mundo’ não é à toa. Eu uso um leite especial na massa”, explana Rita.
“Você não tem medo da vigilância sanitária te pegar?”, questiona Mile.
“O leite das Cucuranhas Valpixianas é indetectável. E ele parece leite comum, com o diferencial de que ele pode dar origem a praticamente qualquer comida. No caso dos churros, é só misturar o leite das cucuranhas com açúcar e colocar vinte papeis comestíveis nos quais você escreve a palavra churro. Então, está pronta sua massa para churro. Magnífico, não é?”
“Cucuranhas?”, Anna não resiste à curiosidade, franzindo as sobrancelhas.
“Elas são tipo as vacas do planeta Valpíxia, exceto pelo fato de que sabem voar e tem o dobro de tamanho de uma vaca comum. Por isso, em Valpíxia, elas provêm alimento e transporte. Bom, vou pegar uns churros pra vocês provarem. Por conta da casa. Vão ver que são mais deliciosos que churros comuns”, decide Rita.
“Ah, muito obrigado, mas eu não gosto de churro. Desculpa”, Milena dá a desculpa que eu também pensei. Só que ela foi mais rápida. Afinal, onde Rita Lina encontra cucuranhas que lhe fornecem leite?
Uma garotinha negra de trancinhas longas e óculos fundo de garrafa, trajando um vestidinho do Show da Luna corre até onde estamos, dirigindo-se a Rita.
“Senhorita, eu vim até aqui pra dizer que os seus churros são mais deliciosos que churros comuns”.
Rita sorri, visivelmente sem-graça, faz um carinho na cabeça da guria, que retribui com um sorriso banguelinha e retorna para onde estava, outra vez correndo.
“Nós acabamos de comer, Rita. Foi mal”, faço o cavalheirismo de incluir Anna na minha desculpa para fugir do quitute duvidoso, ignorando o testemunho que acabo de presenciar da garotinha.
“Ah, tudo bem. Quem sabe a gente se encontre de novo, né? Mas tem que ser logo, pois tô pensando seriamente em largar a venda de churros e começar a vender algodão doce emagrecedor. Tô com um pressentimento de que vai bombar”.
“Deixe-me adivinhar”, interrompe Milena. “Vai fazer isso usando esse tal leite das curacunhas, certo?”
“Cucuranhas!”, corrige Rita, como uma professora distinta. “Mas você acertou, é assim mesmo que eu vou fazer. Ainda não sei se dá certo, mas é só escrever ‘algodão doce emagrecedor’ e misturar ao leite. Só não sei quantos papeizinhos iriam nessa receita... Enfim, preciso ir, gente. Adorei ver vocês!! Tenham uma boa noite!!”
“Tchau, Rita!”, Milena e eu dizemos, enquanto Anna só acena simpaticamente.
“Quem é essa figura?”, Anna pergunta, após Rita seguir seu caminho e, mal dando três passos, ficando cercada de crianças sacudindo notas de dinheiro no ar, loucas pelos seus “churros mais deliciosos que churros comuns”.
“É a Rita Lina, uma antiga colega de escola”, esclareço.
“Do Santo Cristo? Não me lembro dela”.
“Engraçado é que ninguém parece se lembrar”, acrescenta Milena.
De algum jeito, a rápida aparição de Rita nos deixou mais leves, mais à vontade. Obviamente, o assunto a ser tratado aqui ainda é muito delicado, mas agora parece que estamos nos sentindo mais tranquilos para tocar nele. Ou, pelo menos, estou torcendo para estar certo.
“Você dizia...”, Anna aponta o queixo para Milena.
“Ah, sim... Bom, eu tava dizendo que decidi consertar algumas coisas na vida e uma delas era essa situação que existe entre nós desde 2002”.
“Hummm...”, Anna suga água de coco pelo canudo.
“Eu reconheço que agi mal”, Milena pronuncia essas palavras como que dando conclusão à sua fala.
Eu continuo apenas observando. Apesar de ter sido chamado para a conversa, esse momento é só das garotas.
Anna fecha os olhos, dando o que parece ser a última sugada na água de coco. Engole. Passa a língua nos lábios para tirar o excesso do líquido. A luz de um poste confere aos seus cabelos tingidos de ruivo um contorno que atrai meus olhos para a maciez de seus fios. E por um instante eu caio em mim de que ela é e sempre foi aquela Anna, a que me levou a conhecer o fundo do poço por um bom tempo na vida, aquela que emprestou sem querer o nome para a melhor coisa que eu pude empreender, que é a Agência do Negócio Nada Apaixonante. Vislumbro seu rosto, sua pele, seus cabelos e pareço não estar acreditando que, numa noite qualquer, tão próximo da minha casa, estamos juntos, e Milena também está. Olha só que coisa mais esquisita! Um encontro que nem nos meus sonhos mais alucinantes eu poderia ter previsto.
“Muito bonito da sua parte, Milena”, declara Anna.
Milena está apreensiva. Anna continua. Por alguma razão, eu sei que ela precisa continuar.
“Sabe, eu me peguei pensando várias e várias vezes como teria sido a minha vida se você não tivesse inventado de ajudar o Sávio a se desapaixonar de mim. Será que nós teríamos ficado juntos? Ou será que era o nosso destino ficar separados? Nós éramos tão jovens, não é mesmo? Nós três. Adolescentes que não sabiam nada sobre a vida, que achávamos que entendíamos de amor, amizade... Mas a gente se magoou. E, mesmo sendo adolescentes, essa mágoa não passaria apenas com o tempo. Porque ela teve um significado enorme nas nossas vidas, ela teve um peso muito grande. Ela definiu os nossos caminhos”.
Milena, assim como eu, está compreendendo a necessidade que Anna tem de falar. Portanto, adota uma postura de ouvinte plena.
“Vocês continuaram amigos, inseparáveis, quase irmãos. E eu fui colocada de lado, tendo de me virar com o que tinha, com os amigos que me restaram depois daquela fofoca sobre eu estar me envolvendo com um ‘coroa rico’, como algumas pessoas resolveram chamar na época. Eu sempre fui uma das garotas populares da escola, mas a verdade é que à noite, no meu quarto, eu não desejava outra coisa a não ser morrer. E vocês dois sabem o porquê. A Milena ouviu diretamente de mim naquela época a verdade, o porquê de ter feito o que eu fiz com o Sávio. Não foi?”
Os olhos de Milena estão começando a se encher de água. Os de Anna já estão e só agora eu reparo que uma lágrima acabara de deslizar pela maçã de sua bochecha esquerda.
“Eu pedi pra você me ajudar com o Sávio, Milena. Porque eu não tinha coragem de encarar o meu namorado com tudo aquilo que tava acontecendo. Com os abusos que eu vinha sofrendo, todos os... todos aqueles estupros. Eu sentia tanto nojo de mim, tanto nojo. Eu não sabia mais a quem recorrer. E você me chamou de mentirosa. Você disse na minha cara que não era problema seu. Você me abandonou, Milena. Você nem levou em consideração a amizade que havíamos tido anos antes daquela ocasião. Eu fui pra casa tão arrasada, você não faz ideia de que por um triz eu não fiz uma besteira contra a minha própria vida. Naquela mesma noite.”
Milena está derramando lágrimas copiosamente, mas sem fazer qualquer ruído. Apenas deixando o choro fluir livremente. O atendente do quiosque nota algo de errado em nossa mesa e, com o rosto, sinaliza para mim se estamos precisando de alguma ajuda. Balanço a cabeça dispensando-o.
Anna faz uma pausa e seus olhos ficam como comportas que se abrem num ímpeto, e ela verte seu choro como o céu verte uma chuva densa e contínua.
Eu não estou chorando. Porém, igualmente sou visitado por uma dor que nem eu sabia que dormia dentro da minha alma. Uma dor que esperou todos esses anos para se fazer notar, deixando meu coração contorcido diante da imagem de duas das mulheres que mais representam algo em todo a minha existência.
“Eu errei, Anna. Errei muito, muito feio com você. Me perdoa!”
“Você quase me matou, Milena”, Anna altera um pouco a voz, mas dá a entender que é mais parte do desabafo do que uma postura agressiva de alguém comprando briga.
“Eu sei, eu sei... “, repete Milena, entre soluços e o rosto extremamente molhado. Ela nem se dá o trabalho de enxugar as lágrimas.
Não sou capaz de ler mentes, mas tenho quase certeza de que Mile está pensando naquele nosso cliente que se suicidara tempos atrás, algo pelo que ela tomara parte da culpa e provavelmente até hoje a assombra demais.
“Por que você fez aquilo?”, insiste Anna.
O choro de ambas continua. Mas o de Milena está diminuindo, pois há um crescente desespero tomando conta de sua fisionomia.
“Diga a verdade, Milena”, Anna insiste ainda mais.
Estou com medo. Medo, não. Não consigo explicar, mas é algo menor que medo e bem maior do que curiosidade, mas que me faz sentir receio pelo que ainda há a ser dito nesta mesa.


Vários anos atrás

“Me fala da escola”, continuou a dra. Márcia. “Como tem sido sua relação com as meninas com quem você fez amizade?”
“Elas são legais”, repetiu Milena com certa pausa, pois sua real vontade era de falar “eu já disse isso, mas ok, vou repetir só pra fazer você achar que está se saindo bem fingindo que tá interessada na minha vida e não na grana do meu pai”.
“Elas sabem sobre... hã... sobre o que aconteceu?”
“Se elas sabem que a minha mãe está morta?”
Dra. Márcia percebeu que dera uma pisada na bola. Mentalmente, perdoou-se por estar há apenas três anos exercendo a profissão, era jovem demais e esse tipo de situação lhe ajudaria a não mais cometer essas pequenas gafes. Ela mais do que compreendera que Milena não tinha muito freio na hora de falar e que era uma adolescente bem direta. Devia ter usado isso como forma de manter a boa comunicação com ela.
“Isso”, Dra. Márcia limitou-se a confirmar.
“É, eu... comentei”.
Milena apresentou um leve desconforto.
“E o fato de ter contado a elas te deixa incomodada ou você acha que foi bom dividir isso com as suas amigas?”
“Acho que... Não sei. Acho que até agora tá tudo normal. Tipo, elas ficaram sentidas e com pena de mim, eu acho. Mas isso não me incomodou”.
“Você acha que alguma delas poderia, de repente, se tornar uma grande amiga com o tempo? Talvez uma melhor amiga?”
“Hummm... Duvido. Só tive uma melhor amiga até hoje, e foi a minha mãe”.
Dra. Márcia engoliu em seco, de cabeça baixa enquanto processava a informação de rasgar o peito.
“Ok. Milena, eu gostaria de perguntar mais uma coisa, e não quero que fique chateada que nem da última vez, mas eu preciso tocar nesse assunto”.
“Ok”.
“Você já está se alimentando melhor? O seu pai estava muito preocupado na última consulta”.
“Estou”.
“Está?”
“Estou!”
Dra. Márcia sustentou o olhar no rosto de Mile por um tempo. A garota a imitou. Depois, ambas desviaram os olhos quase ao mesmo tempo.
“Você tem noção do quanto o seu pai te ama, Mile?”
“Aham”.
Essa não, a menina começou a usar os balbucios. Dra. Márcia precisava apelar para algo mais significativo.
“Eu soube que a sua mãe te deu um diário há bastante tempo antes de falecer. O que pode me dizer sobre ele?”
“É um objeto onde você escreve o que aconteceu no seu dia”.
Márcia respirou fundo, em dúvida se dava graças a Deus pela garota estar demonstrando senso de humor ou se ficava aborrecida pela resposta abusada.
“Muito bem”, a terapeuta optou pela paciência. “E o que você já escreveu nele?”
Milena deu de ombros, achando a pergunta inconveniente:
“Ainda nada, mas... Bem, é um diário. Eu não poderia contar pra senhora, né?”
“Você tem toda a razão”.
“E também não acho que vou usar esse diário algum dia”.
“Hummm...”, analisou dra. Márcia, refletindo sobre o que dizer em seguida. Precisava ser mais eficiente e parecer, de fato, estar ajudando a garota. “Veja bem, Milena. Eu não acredito que um dia estaremos preparados pra esse tipo de situação. Pra morte de uma pessoa querida, principalmente se for alguém que significa o mundo inteiro pra nós. Porém, essas coisas acontecem. E elas não escolhem a quem atingir, entende? Não quero que você se martirize por ter perdido sua mãe. Olha, eu não sei qual religião você segue, mas como você acha que sua mãe se sentiria ao olhar para cá e ver a filha dela tão tristonha? Ok, eu entendo que ainda é muito recente e que você ficou traumatizada, mas que tal começar a compreender que, infelizmente, por alguma razão, sua mãe teve de partir, mas você está aqui, e você deve continuar a viver e lutar pelas coisas que quer ter e ser no futuro. Eu tenho toda a certeza que sua mãe gostaria muito disso. E você tem a seu pai. Ele vai te ajudar em tudo, com todo apoio e todo amor”.
“Eu sei”.
“Você está disposta a começar a aceitar o que aconteceu?”
“Não sei se já tô pronta”.
“Eu entendo, querida. Mas com o tempo você vai ter de se esforçar. Do contrário, você pode sofrer mais do que já está sofrendo”.
Milena podia sentir toda sua agonia voltando, mas não de uma forma devastadora como foi durante os últimos meses. Era uma agonia por não ter a mínima ideia de como proceder para alcançar o que a terapeuta lhe recomendava.
“Você pode começar se abrindo um pouco mais para as novas amizades. Obviamente, ninguém vai substituir o que a sua mãe representa pra você, mas vai ser saudável ter pessoas confiáveis por perto, pessoas com quem você pode se divertir e dividir histórias e momentos. O que você acha?”
Apesar de não ter algo contra dra. Márcia exatamente, Mile não via a hora de sair de sua presença. Estava cansada de tanta análise, queria poder “curtir” sua melancolia em paz. Era apenas uma adolescente! Não tinha de ficar fazendo planos para se curar emocionalmente. Tudo de que precisava no momento era se deitar e dormir por horas e horas, a única “atividade” que vinha lhe dando mais prazer ultimamente, porque desligava-a de toda tristeza e saudade dilacerante, pelo menos por um tempo.
“Eu posso tentar, dra. Márcia”.
“Isso!”, a alegria de Márcia ficou evidente. “E vou te dar uma sugestão: se não se sentir à vontade com alguém ainda, use o diário. Ele é seu amigo. Você vai ver como é maravilhoso escrever tudo o que você pensa e sente, sem receio de ser julgada e censurada. Você me entende, Mile?”
“Entendo”.
“Promete que vai tentar?”
“Prometo”.
Por fim, ela só disse aquilo mais para dar à psicanalista o que ela queria ouvir do que o que realmente estaria empenhada em fazer. Pelo sorriso de dra. Márcia, em poucos minutos Milena estaria liberada da consulta e poderia voltar para casa. Aquela foi a última vez em que as duas se cruzaram como médica e paciente, e a dra. Márcia nunca poderia supor que Milena só viria a tocar naquele diário muitos anos depois, inclusive atribuindo-lhe o curioso nome de Fabi.



(Sávio)

Quase sem piscar, Milena enfim revela:
“Eu não queria perder o Sávio pra você”.
Sua afirmação me enche de uma espécie de preocupação. Como assim “me perder”?
Anna também parece não entender, então Milena resolve explicar:
“Não tô falando que eu era apaixonada pelo Sávio ou qualquer coisa assim. Pelo menos não nessa época. Mas o Sávio sempre foi a única coisa mais próxima de uma família que eu tive, depois que a minha mãe morreu. E eu não queria perder isso. Então eu me recusei a te ajudar porque eu vi nisso a minha chance de ter o meu melhor amigo só pra mim. Essa é a verdade”.
“O quê?”, Anna está incrédula.
“Tudo que eu poderia querer num irmão, num amigo... Tudo que se foi quando a minha mãe morreu... Eu encontrei no Sávio. E eu fui a pessoa mais mesquinha, mais egoísta e mais cretina só pra não perder isso. Só pra não perder outra pessoa importante”.
“Mas, Mile”, eu finalmente me pronuncio. “Você não iria me perder. A nossa amizade não ia se acabar”.
“Não era assim que eu pensava”, ela me conta, olhando para baixo, envergonhada em ter de despejar todas essas verdades. “Eu era uma adolescente inconsequente. Uma garota com a mentalidade toda abalada, com sintomas de depressão e um trauma horrível pela morte da minha mãe. E embora eu tivesse um pai que me amava muito, e que me ama até hoje, ele logo encontrou outras ocupações, uma nova namorada... Eu definitivamente não tinha como raciocinar de uma forma tão madura naquele tempo. Então, meu amigo, eu também preciso que você me perdoe. Por favor!”
“Eu já perdoei você, Milena”, afirmo, com imensurável carinho.
Ela ensaia um sorriso, mas volta-se para Anna, num olhar angustiado esperando ser perdoada.
“Você sabe que não é fácil pra mim, Milena?”
“Tenho plena consciência disso”.
“Você tá me pedindo perdão do fundo do coração?”
“Do fundo do meu coração e da minha alma”.
“Você tem noção do que você fez?”
“Sim”.
“Tem noção mesmo? Você tem ideia de que, quando eu fui pedir ajuda pra você, eu ainda acreditei que existia um pouco de amizade entre nós duas?”
“Sim, Anna. Sim”.
As lágrimas de Anna estão cessando. Ela agora fica fungando de vez em quando, dando pequenos suspiros vez ou outra. Entretanto, seu rosto parece se iluminar.
“Sabe, Milena, talvez você nunca soube... Mas eu poderia ter te sacaneado uma vez, como uma vingança. Um ex-namorado seu se apaixonou por mim uma vez, e eu também gostei dele. O Enzo. Até procurei o Sávio pra me ajudar. Foi assim que eu vim parar na vida de vocês de novo. Mas o Sávio não me deixou contratar os serviços da agência, mesmo sem saber que se tratava do Enzo. Acontece que, depois de um tempo, eu mesma pulei fora. E eu sabia que ele era seu namorado e que tava querendo terminar com você pra ficar comigo. Mas eu não quis ser tão escrota”.
Já que é pra lançar as granadas da verdade, vamos lá!
Você?! Era... Era você?!”
“Era eu. Enzo chegou a dizer que era eu?”
“Ele nunca me disse!”
Posso estar enganado, mas Milena tem um ar levemente risonho agora. Como se estivesse descobrindo uma notícia maravilhosa.
“Caraca!! Então foi você que me ajudou a me livrar do Enzo?! Caraaaacaaa!!!”
Como uma pessoa que acompanha um filme e começa a juntar as peças que ajudam a entender a trama, Milena está praticamente comemorando essa recém-adquirida informação.
“Como assim se livrar?”, estranha Anna.
“Eu tava procurando uma forma de terminar com ele e não sabia como. Até que ele se apaixonou por uma outra mulher e aconteceu que foi ele quem terminou comigo. Que louco! E esse tempo todo essa mulher era você. Meu Deus!! Meu Deus!! Eu vim aqui te pedir perdão, mas pelo visto também tô te devendo um ‘muito obrigada’. Eu não acredito nisso”.
Anna está bastante perdida, olha para mim e eu também não tenho outra reação a não ser estranhar que do nada Milena tenha até se alegrado um pouco. Eu não sabia que ela queria tanto assim terminar o namoro com o Enzo.
“Muito, muito, muito obrigada, Anna. Muito obrigada mesmo. E pensar que eu te odiei por ter roubado o coração do Enzo, mesmo eu já não gostando mais dele”.
“Você já me odiava mesmo, né? Economizou ódio”.
Um silêncio se assenta conosco. Eu sei o que isto significa: que Anna precisa, enfim, resolver se perdoa ou não Milena.
“Eu acredito numa coisa, Milena. Que tudo acontece por um propósito. Todas as nossas escolhas nos levam a viver a vida de um jeito bom ou ruim. Mas a gente precisa de maturidade pra fazer as escolhas boas e certas. Então, pra eu não ter de me arrepender e ficar carregando essa mágoa pro resto da vida... Eu escolho te perdoar”.
Lentamente, um saco de peso incalculável vai sendo retirado das minhas costas. Um gosto de aflição vai dando lugar a um sabor doce de alívio. Ouvir alguém te perdoar é como anular uma dívida gigante que você pensou que nunca quitaria. E olha que eu nem sei aquele que está sendo perdoado.
Milena deve estar se sentindo da mesma maneira.
“Obrigada, Anna”.
“E mais do que isso”, adiciona Anna. “Eu quero que fique bem claro que, apesar de tudo que aconteceu, eu sempre te admirei. Você é uma mulher incrível que venceu na vida mesmo com todas as dificuldades e os traumas que você disse que passou... E eu devo confessar que, no começo, eu não dei bola pro fato do Ivan te trair com outras mulheres. Mas, sendo bastante adulta e usando de toda maturidade que eu posso nesse momento, você não merece passar por isso. Nenhuma mulher merece, na verdade. E se você precisar de mim pra alguma coisa, sei lá, pra enfrentar esse cafajeste, eu tô à disposição”.
Milena arqueia uma sobrancelha, surpresa. Ela jamais esperaria um ato de sororidade como esse vindo de alguém tão improvável. Seu coração deve estar exultante.
“Eu... eu...”, Mile gagueja. Respira fundo, então vai em frente: “Eu não sei o que dizer. Eu não sei nem mesmo como me sentir. Sério. Obrigada mesmo. Obrigada”.
“As feridas vão passar”, conforta Anna.
Anna estica o braço, a fim de tocar as mãos de Milena, que estão unidas sobre a mesa. Aproveito para dizer:
“Anna, eu... também quero te dizer uma coisa”, aviso, com a garganta um tanto seca. E a droga da água de coco já acabou.
“Você já contou pra Milena que ela é a sua constante?”
Não basta a garganta seca, agora sinto a pele do rosto queimar de vergonha. Por que Anna teve de falar algo assim tão na bucha? Que impróprio!!
“Quê?”, Milena franze o cenho.
“No dia do aniversário dele, eu ia pedi-lo em casamento. Coisa doida, né? É tão raro uma mulher fazer isso. Eu, por exemplo, nunca vi nenhuma fazer. Mas daí a gente teve uma pequena discussão porque ele tava investigando o Ivan pra você e nem foi jantar com a família e comigo. Foi aí que ele me falou que você era a constante dele. Com essas palavras”.
“Constante?”, Milena se porta claramente envergonhada. “Mas o que isso quer dizer?”
“Não sei direito”, desconversa Anna, virando-se para mim e mexendo de leve em meus cabelos. “Mas de uma coisa eu tenho certeza: você nunca fracassou ao fazer o Sávio se desapaixonar de mim, Milena. Pode até ser que ele não esteja apaixonado por você, mas ele descobriu que precisa mais de você na vida dele do que de mim. Eu tô enganada, Sávio? Não era isso que você tinha pra me dizer?”
Caramba, era? Nem eu sei mais.
“Eu...”
“Era isso sim, amor”.
Ok, a conversa agora chegou num ponto muito constrangedor para todos os envolvidos.
Não nego e nem confirmo. Só me resta o silêncio, o amigo dos que não conseguem expressar com palavras úteis e inteligíveis os sentimentos mais íntimos.
Mas uma coisa é verdade indiscutível: amo essas duas mulheres. Não como Ivan deve jurar que ama sua coleção de namoradas, Deus me livre! Mas amo Milena Kerber e amo Anna Munhoz de formas diferenciadas, de maneiras que só meu coração compreende, fazendo com que nem mesmo eu consiga alcançar tal entendimento.
“Diante disso”, conclui Anna, “devo declarar oficialmente terminado nosso namoro?”
Estremeço. Como assim? Tão repentinamente? Desse jeito tão... “prático”?
“Acho melhor eu ir, isso é assunto só pro casal”, Mile levanta-se da cadeira.
“Não, não, Milena. Por favor, fica!”, Anna intervém.
Anna Munhoz está me encarando placidamente. O rosto iluminado e o olhar com uma alegria estranha, inesperada. Como ela pode estar se sentindo bem diante da situação em que acaba de me colocar? É apenas fingimento? Não parece ser.
“Me desculpe, Anna, eu...”
“Não tem problema”, ela diz, atenciosa e compreensiva.
“Não me sinto bem tratando disso agora. Não é melhor a gente tratar disso depois?”
“Ele tem razão, Anna”, Milena se intromete, mais uma vez fazendo menção de sair. “Essa é uma conversa apenas pro casal”.
“Sávio”, Anna ignora Milena. “Seja sincero. Seja adulto! Isso aqui não é uma conversa entre adultos? Então, se você vai deixar pra tratar depois algo que pode ser decidido agora, por que não decidir logo? Você vai terminar comigo, está mais do que claro. Ficou mais do que evidente no dia do seu aniversário, meu amor. Chega de adiar. Eu quero te ver feliz. Eu quero que você seja adulto o bastante pra dizer pra mim com todas as letras que, sim, você está desapaixonado. Eu não sou mais uma criança, Sávio. Eu não tenho mais tempo pra ficar magoada com esse tipo de coisa. Nós somos adultos agora. Não seja irresponsável de iludir uma pessoa que gosta tanto de você, fazendo-a esperar por algo que pode ser resolvido hoje, que pode ser resolvido agora. Diga a verdade, meu amor”.
E, para minha surpresa, também estou chorando. E eu pensando que fosse escapar da choradeira da noite... Cadê a Rita Lina com o carrinho de churros?
“Sávio!”, Anna se vira totalmente para mim, pegando no meu rosto com as duas mãos. Milena testemunha cada detalhe da cena. “Não se preocupe comigo. Eu te amo e só quero ver você bem. Confia em mim!”
Não resisto a essa declaração e a puxo para um abraço, abrigando minha cabeça em seu ombro. E me desato a chorar feito um bebê esfomeado. Não era pra ser assim, Anna.
Tá tudo bem, meu amor”, ela me consola, também recomeçando um choro.
Abro os olhos por um instante e encontro o olhar de Milena, num misto de admiração e carinho olhando para mim e minha... hã... agora ex-namorada.
“Me desculpa, Anna”, é só o que consigo dizer. É a minha maneira de terminar com ela, sem precisar usar palavras que tragam alguma crueldade em seu significado.
“Está bem, meu amor. Está bem”.
Assim que o nosso abraço termina, Anna se levanta e faz sinal para Milena se levantar também. As duas imediatamente se abraçam, selando de vez e de maneira real o seu ato de perdão. Dessa vez eu sou a testemunha, aquele que contempla um milagre acontecendo diante de meus olhos e ainda continua confuso sem saber se tudo não passa de um sonho.
Chamo o dono do quiosque, acerto a conta e convoco as garotas para irmos embora. E, do mesmo jeito que caminhamos até a praça, marchamos de volta para casa. Em silêncio. Contudo, não é mais o silêncio angustiante pelo que a noite poderia nos trazer de ruim, mas o silêncio benevolente pelo que o futuro pode nos conceder de bom.
Será que esta foi uma noite de boas escolhas? Um coração batendo relaxado deve servir como sinal para eu entender que sim.



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