O q vc tá procurando? Digite aqui

12 de maio de 2017

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x07: HOJE NÃO



(Denner)

Enojado, afasto-me da soleira da porta do banheiro-cativeiro. A cabeça rodopia sem pena. O que eu acabei de ver?
“Vamos lá pra sala conversar”, Olívia diz, enquanto fecha a porta.
Eu não respondo, mas por dentro estou agradecendo pela sugestão.
Durante os segundos em que Olívia fecha a porta, ainda consigo ouvir os grunhidos das duas pessoas idênticas à dupla misteriosa que anda me enchendo de preocupação.
Sento-me numa cadeira de estofado e encosto brancos, tentando processar o emaranhado de pensamentos que chovem na minha mente e a deixam alagada.
“O que... o que...”, gaguejo, paro pra respirar. “O que foi isso? Aquelas pessoas são iguaizinhas a vocês. Como pode? São tipo uns sósias? Irmãos gêmeos, sei lá?”
“Calma, querido!”, preocupa-se Pedro. “Esse choque inicial é normal, mas a gente vai te explicar”.
“Elas não são nossas sósias, nem ‘iguaizinhas’ a nós”, fala Olívia. “Tecnicamente, elas são nós. A explicação não é simples, mas se você prestar atenção, vai dar pra entender”.
“Como assim elas são vocês?!”, principio um surto, meneando a cabeça pra lá e pra cá. “Vocês estão aqui comigo, de pé bem na minha frente, não estão amarrados, não tem nenhuma mordaça na boca de vocês. Aquelas pessoas ali... Caraca!! Elas foram sequestradas. Tem uma mordaça na boca de cada um. Vocês raptaram aquelas pessoas.  E do jeito que elas estavam com uns olhões esbugalhados de susto, tenho certeza que elas queriam minha ajuda”.
“Escuta, Denner, a gente teve que fazer isso”, diz Pedro. “Quando Olívia e eu viemos pra cá, acabamos nos deparando com as nossas versões deste mundo que, curiosamente, também se conhecem e mantêm uma certa... hum... amizade. Sim, eu sei, desprezível e improvável, não é? O problema é que eles também estão por dentro de coisas como universos paralelos e outros assuntos que a maioria das pessoas considera fantasiosos”.
“E quando eles perceberam que estávamos por perto”, Olívia continua contando, “rapidamente vimos que isso poderia nos meter em alguma enrascada indesejável. Não estamos aqui pra lidar com esse tipo de coisa, então não poderíamos deixá-los nos atrapalharem”.
“E aí sequestraram eles”, concluo. “Quero dizer, sequestraram a si mesmos”.
“Olhando por esse lado, soa até divertido”, ela comenta, com as sobrancelhas levantadas.
“Detesto admitir, mas não é que você tem razão?”, Pedro se diverte.
“As curiosas maravilhas de transitar entre os universos”, deleita-se Olívia.
“Com licença”, digo. “Acho que as explicações ainda não acabaram, né?”
“Ah, é verdade, querido”, diz Pedro. “Bom, tivemos que sequestrá-los, como você já entendeu, mas assim que terminarmos a nossa missão, vamos soltá-los. Fomos instruídos a simplesmente fazer nosso trabalho e ir embora, ou seja, o foco aqui não é trazer à humanidade a revelação de que a teoria de múltiplos universos está correta”.
“O que seria um grande desperdício, pois esse tipo de informação é precioso. Todo conhecimento é bem-vindo e libertador”, filosofa Olívia.
“Então vocês estão dizendo que existe mais de um universo, além do nosso?”
Eles riem, porém não de escárnio. É como se eu fosse um bebê aprendendo a andar.
“Engraçado”, comenta Olívia. “Quando você diz ‘nosso’, automaticamente está excluindo a mim e ao Pedro, enquanto que, pra nós, este universo é que é o ‘outro’, sabe? Como eu falei antes, são as maravilhas de se transitar entre os universos. Claro que existem vários pontos negativos imperdoáveis. Por exemplo: como pode o David Bowie estar morto aqui?”
“Como pode a Joelma ser a presidente do Brasil no seu universo?”, retruco.
“Mas que audácia!”, ofende-se Pedro. “Pois fique sabendo que do lado de lá, a Joelma é uma mulher extremamente elegante e fina”.
“Detesto admitir, Denner, mas o Pedro tá certo. Apesar de eu não concordar com algumas medidas que ela vêm adotando pelo país... Mas a Joelma do seu mundo, nossa! Não deu pra engolir uma mulher que eu conheço como tão séria e culta rebolando a bunda daquele jeito, naqueles trajes questionáveis e com aquela música infernal”.
“Ah, a música até que era gostosinha”, opina Pedro. “E aquele bate-cabelo dela é um arraso, vamos combinar”.
“Tá, tá, tá. Isso não é o importante aqui”, desconverso, e sei que meu estado de choque ainda está evidente.
“Então, Denner? Acredita na gente?”, instiga Pedro.
“No momento, acho que sim”, suspiro com certa hesitação. “Que outra explicação existe pra isso? E ultimamente só têm acontecido coisas doidas comigo, então... sim, eu acredito”.
Então, como um clarão ofuscante, dou-me conta de um fato:
“Se vocês vieram de um universo paralelo, então a Rita Lina, a minha amada namorada Rita Lina, é de lá? Essa é a casa dela, que vocês tanto falam?”
Ambos assentem com um breve gesto de cabeça.
“E estão esperando o quê pra começar a explicar? Se ela é de lá, como é que ela tá aqui?”
“Bom, Denner”, Olívia assume a explicação, “nós até podemos te explicar essa parte, só que de uma forma indireta. Tudo que eu posso te adiantar agora é que não sabemos exatamente como ela veio parar aqui”.
“Ah, essa é boa”, gracejo. “Então quer dizer que até vocês também têm dúvidas sobre essa missão?”
“A missão não precisa dessa informação”, replica Pedro.
“Assim como a nossa contratante nos autorizou a te mostrar o que havia naquele banheiro, ela também nos deu outra ordem: nós vamos atrás dos pais da sua namorada e dar um jeito de convencê-los a nos entregar a Rita. Então, se você quiser saber da verdade, fique à vontade pra ir com a gente. Lá você vai ouvir tudo. Mas a partir desse momento, não precisamos mais de você”.
“Não te dá um alívio, Denner?”, indaga Pedro, extremamente alegre. “E a gente nem vai ter de te matar!”
No momento, não estou preocupado com isso. Agora que sei do que sei (apesar de haver mais perguntas quanto mais eu penso que sei de alguma coisa), Rita Lina é a única coisa que me importa, mais até do que a minha própria vida. Por mais que eles não precisem mais me matar, os problemas estão longe de terminar. Preciso descobrir um jeito de impedi-los.
Penso tudo isso controlando até as batidas do coração. Um pensamento oral vazando agora seria meu fim.



(Milena)


Por que uma pessoa se mete na vida de outra com as intenções mais coloridas e românticas possíveis, só para destruir tudo que foi construído, sem a menor piedade? O que há na mente de uma pessoa que pratica esse tipo de ato tão deliberadamente que te faz questionar se há qualquer resquício de empatia em tal indivíduo?
Quem Ivan Castro é? O que Ivan Castro é? Um psicopata? Sociopata? Apenas um safado que não consegue segurar o pinto dentro das calças e precisa seguir cada rastro de feromônio que se alastra pelo ar? Sempre se ouviu dizer que os homens são todos iguais, mas Ivan conseguiu se superar a todas as referências de canalhice das quais eu já tomei conhecimento.
“Tá pensativa hoje, hein”, comenta o pilantra, aproveitando o aconchego do meu sofá.
Eu sorrio, nota dez em simpatia e amabilidade. Me aninho em seus braços enquanto vemos uma comédia romântica na Netflix. A hora está se aproximando.
“Quero um pouco de vinho”, levanto-me. “Bebe comigo?”
“Claro, amor”.
Mas é claro que ele bebe. Ele é o cavalheiro perfeito que não deixa sua dama beber sozinha.
Ele continua fingindo que curte o filme, apenas para me agradar. Enquanto busco a bebida, me pergunto quantas outras coisas ele fingiu só para me manter no seu engodo,  e me fazendo crer piamente que ele fosse o namorado mais primoroso do mundo. Rita Lina tinha razão: esse desgraçado tem um cérebro formidável, lindo. Mas seus dias de ter tudo sob controle estão findando.
“Amor”, eu lhe estendo um copo com três dedos de vinho.
“Tá bem geladinho, deve estar uma delícia”.
“Guardei pra ocasião certa”, declaro, dando uma piscadela. “Não acredito que ela vai voltar pra esse cara”, comento, dando uma de revoltadinha pelo andar do enredo do filme, que eu já deixei de prestar a devida atenção há um bom tempo.
“É assim mesmo”, responde Ivan, dando um generoso gole no vinho. “Esses filmes precisam mostrar que o amor têm de vencer no final”.
“Ai, sério? Eu não desejo uma história de amor dessas nem pros meus inimigos. O cara sacaneou a menina o filme quase todo”.
“É só um filme, amor”.
“Hum”, resmungo. “Se um cara mentisse desse jeito assim pra mim, mandava passear. Ainda bem que eu tenho você. Amor, a gente nem brindou”.
Ele ri sem-graça (ou da minha cara, o que é mais provável), me beija suavemente. Na certa, está pensando em como eu sou otária e ingênua, que ele está me usando como um fantoche bobão. Será que em nenhum momento bate um remorso? Mesmo que seja um remorso de gente escrota, que vem e passa mais rápido que uma brisa. Pelo menos, seria algo que o aproximaria de um humano normal, certo?
“Um brinde a nós dois”, ele diz, usando uma entonação que, em outras circunstâncias, me derreteria toda. No entanto, hoje tenho a mais clara certeza de que não passa de um truque. Malditos vampiros emocionais como Ivan Castro!
“Um brinde a nós dois”, repito, com a serenidade no olhar de quem já trocou o status de “enganada” no Facebook do meu coração. Esse pensamento tosco dá até vontade de rir, mas é melhor continuar o jogo da Milena bestinha.
Copo com copo. Está brindado. Cada um bebe o restante que há de seus respectivos conteúdos. De algum modo, ele tá sacando que existe algo brilhando diferente no meu olhar. Como se eu fosse uma Milena diferente. Iluminada, talvez. Esclarecida. Em pleno processo de desapaixonamento.
“Hoje você tá um pouco mais romântica. Tem alguma coisa aí. O que foi que aconteceu?”
“Você acha?”
“Tá mais apaixonada por mim, é?”
Aproveito e finjo um riso tímido, mas por dentro estou gargalhando feito uma louca pela insistência dele em se achar irresistível. Quando você descobre a verdade sobre uma pessoa, ela se transforma em alguém praticamente diferente diante de seus olhos. È como se toda a beleza, todo o encanto e todo o charme que me ganharam tivessem se dissipado tão logo a máscara caiu. Um pano que cai revelando o homem por trás da cortina, tal qual Dorothy ao encontrar o mágico de Oz. Não que Ivan tenha deixado de ser um gato, porém o poder e relevância que isso costumava ter sobre minhas percepções a seu respeito agora é fraco e vai ficando cada vez mais fraco. Inofensivo. É como uma fruta que perdeu o sabor e a suculência.
“Tá sentindo soninho, meu bem?”, do nada, pergunto.
“O quê? Como... Como é que você sabe que...”, ele começa a ficar zonzo, a língua se enrola, o olhar vai ficando anuviado.
“Agora você vai dormir”.
“Dormir? Não, eu não quero dorm... Eu não tô entend... eu... o que tá...”
“Quando você acordar, seu filho de uma puta, a gente vai ter uma conversinha bem séria”.
“Milena...”
Ele desaba no sofá, mal teve tempo de processar minhas últimas palavras. Tive dúvida se exagerei no calmante, mas acho que a dose que pus no vinho foi apenas grande para acelerar que ele apagasse.
Preciso me apressar.
Daqui a algumas horas, Ivan Castro vai ter de lidar com um confronto que vai fazê-lo se arrepender de ter me conhecido.


(Denner)

O telefone toca. Número desconhecido.
“Alô!”, atendo, com uma nota de suspeita na voz. É a primeira vez que percebo, mas acho que sempre faço isso quando o número é desconhecido.
“Alô. Senhor Denner Corrêa, aqui é Bóris, mordomo do escritor best-seller Hektor Casanova. O patrão manda perguntar se tem novidades sobre o caso dele.”
Estou na minha sala, na ANNA, e Sávio está presente, me olhando enquanto me aguarda terminar de responder ao telefonema.
“Bóris? Ah, oi. Que estranho! Por que o seu patrão não ligou ele mesmo?”
“O patrão está ocupado escrevendo a avassaladora cena da morte de Rebecca Vasconcelos pelas mãos de Alfredo Barbosa. Porém, ele me deu total aval para lidar com quaisquer novidades sobre o caso dele, caso o senhor tenha algo a dizer”.
“O quê?!”
“O patrão me deu total aval para...”
“Não, não, não! É que você acabou de me dar um mega spoiler sobre o próximo livro dos Detetives da Noite, Bóris, só isso”, explico, irônico e disfarçadamente irado. Sujeitinho cretino duma figa! E eu nem sonhava que o Heitor Barbosa pudesse matar alguém, um homem tão pacato e distinto. Bom, certamente não deve ter matado Rebecca com a mesma frieza com que Bóris matou minhas expectativas pelo próximo volume da série.
Sávio está com ar risonho, decerto tentando imaginar o que se passa na ligação.
“Diga ao Hektor que ainda não consegui resolver a situação dele, tá? Eu tô tendo de reler toda a série Detetives da Noite pra ver se consigo detectar algo que ajude no caso”.
“Hummm...”
“Algum problema, Bóris?”
“O senhor gosta de lambada, senhor Denner?”
“Oi?”
“Oi, tudo bem? Perguntei se o senhor gosta de lambada”.
“Ahn... Eu... Não sei, nunca parei pra pensar sobre isso... Lambada, que você diz, é a música?”
“Isso mesmo, a música”.
Desencosto o telefone do ouvido e olho para Sávio com olhar de total confusão. Ele devolve dando de ombros.
“Olha, Bóris, não sei te responder, sinceramente. Mas por que a pergunta? Hektor te pediu pra perguntar, foi?”
“Não”, ele começa a cochichar, dando um rumo inesperado de segredo à conversa. “Mas logo o senhor entenderá a natureza da minha pergunta. A propósito, como estava a torta de cereja?”
É melhor eu dar um jeito de encerrar logo essa ligação, pois estou com medo de que ele prossiga com essas perguntas absurdas. E do jeito que o anão não tem o menor filtro para spoilers, preciso me prevenir antes que me jogue mais uma bomba que estrague minha experiência de leitura.
“A torta estava deliciosa, Bóris. E o café também. Dê meus parabéns à sua irmã. Preciso desligar, tô com um cliente precisando de mim. Tchau!”
“Darei os parabéns a ela, Sr. Denner Corrêa. Pode deixar. Mas o senhor ainda não viu do que essa torta é capaz. Até breve!”
Desligo, um pouco chateado. Chega de enigmas, droga!
“Dá pra acreditar nisso, Sávio?”
“Quem é esse tal de Bóris?”
“É um anão que trabalha de mordomo na casa do Hektor, o meu escritor favorito que agora é nosso cliente. Além de me dar um baita spoiler do próximo livro que o patrão dele ainda tá escrevendo, ficou me enchendo o saco com umas perguntas bizarras. Cara, tô cansado de ficar cercado de gente doida, viu?”
“Denner, eu não entendo como você foi pegar o caso desse homem. O cara tá apaixonado pela personagem que ele mesmo escreveu. Você já parou pra analisar que viagem? Se esquizofrenia e egocentrismo se casassem, essa paixão seria o filho deles”.
“Eu não sei, Sávio. Perdi o controle da normalidade dos meus dias. Tô com medo das decisões que eu penso em tomar”.
“Não fica assim, Denner. Não sei se serve de consolo, mas você não é muito normal também”.
“É”, sou obrigado a concordar. Mas será que devo agradecer? Tá tudo tão confuso...
“Mas e aí? Continua me falando dos tais Pedro e Olívia”.
Antes de Bóris me interromper, eu estava contando para o meu chefe todas as coisas que têm me acontecido desde que conheci Pedro e Olívia. Um tanto receoso, já que eles podem até parecer (veja bem, parecer) legais, mas há algo de perigoso neles.
“E eu vi, Sávio, num banheiro meio desativado do apartamento deles, a coisa mais esquisita e inexplicável da minha vida. Pedro e Olívia abriram a porta e me mostraram Pedro e Olívia sentados no chão, amarrados e amordaçados. Você tá entendendo? Pois eu não tô entendendo é nada. Tipo, será que essa coisa de universos paralelos é mesmo possível?”
Sávio prefere se manter quieto. Espero que não esteja me julgando, afinal ele mesmo afirmara que eu não sou muito normal.
“Se eles estão ameaçando você e a Rita, por que você não liga pra polícia?”
“Não sei”, declaro, sem a menor intenção de mudar a situação. “Eu queria poder resolver isso sozinho. Ou melhor, sem envolvimento de polícia, sem me encrencar, entendeu?”
“Sem se encrencar?”, repete Sávio, e eu não sei se ele está juntando as peças. “O que você quer dizer com isso?”. Confirmado: Sávio não está juntando as peças.
Sem dizer palavra, encaro meu chefe com meus olhos aterrorizados e preocupados. Sou um homem em choque, pronto a tomar qualquer decisão descabida em nome da mulher que ama e, talvez, pra manter a própria sanidade.
“Se eu pudesse”, começo a esclarecer, “eu daria um jeito de sumir com esses dois. Eles não podem levar a Rita Lina embora. E algo me diz que se eles não conseguirem o que querem, vão acabar apelado pra alguma forma de violência e a coisa não vai cheirar bem. Então, Sávio, a única alternativa que passa pela minha cabeça é... matá-los”.
“Ok, ok! Agora sim eu acredito”.
“Acredita? Na história dos universos paralelos? Graças a Deus! Pensei que você tava me achando um idiota”.
“Não!”, exclama Sávio. “Eu sou um nerd, Denner. Nunca duvidei desse tipo de coisa. Eu sempre imaginei como seria uma outra versão de mim por aí, o que essa versão estaria fazendo, se leva a mesma vida que eu... Será que curte as mesmas coisas que eu? Mas eu não tava me referindo a isso. O que eu acredito agora é que você perdeu o controle das suas decisões, isso sim. Esquece essa ideia, você não vai matar ninguém”.
“Mas eu preciso fazer alguma coisa!”, insisto.
“É, mas não cometer um crime, né? Tirar uma vida, já pensou?”
“No caso, duas”.
“Quanto mais vidas, mais tempo de cadeia, meu amigo”.
Com o jeito que Sávio me olha, notavelmente consegui (embora sem querer) arrastá-lo para a minha preocupação.
“Vou pensar em algo pra te ajudar, Denner. Te juro.”
“Obrigado”, agradeço com resignação, mas sem aquele alívio que percorre a alma quando se encontra a solução de um problema.
Sávio está certo. Minha compreensão dos fatos andava tão turva que eu não me dei conta do tamanho da burrada que seria se eu matasse Pedro e Olívia. Mesmo eles nunca tendo descartado que poderiam me matar. Entretanto, eu não sou eles. Já existem versões demais desses dois. E eu não teria capacidade e nem habilidade para liquidar com alguém. Alfredo Barbosa, de Detetives da Noite, também sempre se passou por alguém incapaz de tal ato. Devo esperar sair o livro para, de repente, pegar umas dicas?
Está mais do que claro que eu preciso manter os pés no chão, focar no mundo real e lidar com as responsabilidades. Eu só preciso encontrar a melhor solução para essa questão adversa. Mas o que fazer?
Olho para a escrivaninha, o volume III de Detetives da Noite marcado na página 58. Só para me lembrar que ainda tem mais esse abacaxi pra resolver.



(Milena)

Ele acorda. Aos poucos, não de supetão. Deve estar se sentindo despertando de uma ressaca desgraçada e injusta, afinal, que sacanagem ficar de ressaca sem nem ter bebido tanto!
Sou a primeira visão que ele tem quando sua consciência vai se expandindo. Quem o vê desse jeito, indefeso e frágil, preso por algemas a uma cadeira certamente desconfortável, pode até imaginar que se trata de um santo pego sem culpa.
“Milena?”
Sua primeira reação é típica e óbvia de quem foi dopado e trazido para um local ermo, mas ao invés de se deparar com sequestradores mal-encarados, dá de cara com a namorada. Melhor dizendo, com uma delas. Sentada numa cadeira melhorzinha, um copo de chá gelado de pêssego na mão.
“Ivan”, respondo, cortês, sem disfarçar o sorrisinho de prazer.
“O que é que tá acontecendo? Onde eu tô?”
Ele move os braços, numa tentativa ridícula de confirmar se realmente está preso.
“Desculpa o espetáculo e todo esse drama de algemas, mas... achei que era a sua cara”.
“Minha cara?”
“Sabe, Ivan”, introduzo, inclinando-me um pouco para a frente, “você provou pra mim que o meu lema sempre esteve certo. Todo mundo pode ser desapaixonante. Até hoje não conheci uma viva alma que me convencesse do contrário. Quase você conseguiu, mas nem mesmo você escapou. E sabe o que eu penso com tudo isso? Que fica cada vez mais difícil encontrar alguém que não seja”.
“Amor, você pode me explicar do que se trata tudo isso?”
“Às vezes a gente não se atenta pras coisas que estão na nossa cara, mas é que elas estão tão camufladas em meio a evidências que a gente alimenta. A gente insiste em fazer vista grossa pra alguns pontos que não harmonizam com a imagem completa, e é nesses pontos que mora o perigo, porque a gente não vigia, achando que os outros aspectos compensam essas pequenas coisas. E o irônico nisso tudo é que eu sempre soube disso, mas só agora eu vim experimentar na pele essa informação. O fato de você não ter redes sociais, não gostar de que eu poste fotos nossas nas minhas redes, embora pra um homem como você seria completamente normal ter conta no Facebook ou no Instagram. Mas não! Você não pode se expor. Você não pode deixar rastros tão estúpidos que estragariam essa vida que você adora levar. Ivan Castro! Um homem meticuloso e preocupado com os detalhes. Parabéns! Você quase conseguiu”.
“O que é isso, Milena?”, para alguém que estava semi-zonzo, agora está sério até demais.
“Não se faz de bobo pra cima de mim, Ivan. Aja como homem, seja maduro. Essa sua malandragem já não é mais segredo. E você sabe do que eu tô falando. Então, pode cortar o papo furado!”
“Amor”, ele volta a adotar um comportamento mais terno, “o que foi que te falaram? Hein? Me viram com alguma outra pessoa, foi isso? Calma, eu posso te explicar. Não precisava você ter me trazido pra... Que lugar é esse?”
“É um lugar bem longe da zona urbana. E isso aqui é um antigo galpão. Eu não te falei que tava dando espetáculo? Pois é! Nada menos para o maior enganador de todos os tempos. Talvez você sentiu falta de um palco enquanto me fazia de trouxa e me vendia suas historinhas, então olha ao seu redor: esse galpão é grande o bastante pra você? Finge que esse aqui é seu palco. Mas com uma diferença: agora eu sei que você é um ator, meu querido”.
“E essas algemas? E por que me trazer aqui? A gente tava na sua casa, não tava? Por que não me chamou pra conversar lá?”
Respondo com um fiapo de sorriso. Numa mesinha à minha frente há um controle remoto, que liga a TV atrás de mim. Há um pendrive conectado à televisão. Viro-me para o aparelho, seleciono a função de vídeo, escolho o arquivo e deixo no ponto de apertar o play.
“Eu não quero mais conversinhas fiadas, Ivan. Depois que você terminar de ver esse vídeo, eu não quero mais que você finja que não fez o que você fez. Eu quero conversar com um homem de verdade. Quero dizer, pelo menos um homem que assume suas merdas, mesmo eu sabendo que depois vai continuar dando um jeito de se safar. Quando você terminar de assistir a esse vídeo, Ivan, eu quero que você me respeite da maneira que você jamais me respeitou”.
Ivan se cala. Engole em seco. Seu semblante inicia um processo de desabamento, ciente de que foi pego.
Dou play no vídeo.


Pouco menos de meia hora depois, o vídeo termina. Desligo a televisão, volto a me sentar, desta vez com as pernas cruzadas e o corpo contra o encosto da cadeira. O chá gelado indefectível na mão, infelizmente já não tão gelado assim.
“Me perdoe”, murmura ele.
Não respondo. Vamos deixar o animal acossado se desvencilhar da armadilha. Ou se acossar mais ainda.
“O que eu fiz não foi nada legal. Foi um erro. Um grande erro”.
Continuo só analisando.
“Como você descobriu isso? Foi você quem gravou esse vídeo?”
Essa é a preocupação do cafajeste?
“Eu estou envergonhado”, afirma Ivan, todo solene.
De fato, a metáfora sobre isso aqui ser um palco cai bem, porque o danado é bem convincente. Se eu me descuidar, acabo caindo na história de que ele está morto de vergonha. Se bem que... vergonha e arrependimento não são sinônimos, né?
“Você pode, por favor, falar comigo? Milena?”
“Eu quero saber o porquê”.
“Milena...”
“Eu estava contando os dias por esse momento. Eu não vou perder o gostinho de ter chegado até aqui. Eu quero saber o porquê.”
“Amor...”
“Milena. O meu nome é Milena. A partir de hoje, sou simplesmente Milena pra você. E você tá com sorte de eu permitir que você pronuncie o meu nome”.
“Isso parece coisa de adolescente”, ele me critica.
“É mesmo? E é assim que você acha que vai me fazer desistir de arrancar de você a verdade? Que eu vou tirar suas algemas e deixar você ir embora livre pra voltar a sacanear outras mulheres?”
“Amor...”
“MILENA!!!!”
Vejo um tremor em seus lábios. Gritei com ele e o orgulho do bonitão ficou feridinho, tenho certeza. Ele se recompõe, volta a falar:
“Milena, essas outras mulheres que apareceram nesse vídeo... Eu posso explicar cada história e como eu fui me envolvendo com elas. Eu não as amo tanto quanto amo você. Por você eu sou capaz de mudar, de verdade. Se eu puder ter mais uma chance, por favor. Eu sei que eu posso te provar o que eu tô dizendo. As pessoas falham, não é? Infelizmente essa é a minha falha, eu cometi um erro gigantesco. Mas me dá essa chance pra consertar. Caramba, a gente tem vivido tanta coisa bacana, não tem?”
Relaxo os ombros, amoleço o corpo. Quase deixo o copo de chá despencar da mão. Penso sobre o que ele está dizendo. Esse florescimento de novas promessas, o doce tom de voz investido para fazer dançar na minha cabeça todas essas palavras...
“E quanto a elas, Ivan? Algumas delas são suas namoradas há anos! Eu sou a mais recente. Como é que você pode me amar mais do que ama a Ágata ou a Valéria ou qualquer uma das outras?”
“Não é pelo tempo que você tá com alguém que te faz amar essa pessoa”.
“Difícil de acreditar em você”.
“Nenhuma delas é você, Milena”.
“Não adianta tentar me enganar”.
“Enganar?! Por acaso você não vê nos meus olhos toda vez que eu digo que te amo? Todas as vezes em que estamos juntos? Não consegue perceber no meu toque, no meu carinho, todas as vezes em que a gente faz amor? Qual é, Milena, eu sei que você sente aí no seu coração que tudo isso é verdade. Que apesar de ter errado feio, eu sou um homem que pode te fazer feliz, que tem feito você feliz, pra ser mais exato”.
“Você me traiu. Eu não merecia isso. Nem as outras”.
“Eu sei, Milena. Mas eu... Nossa!!”, ele suspira. “Eu te prometo pela minha vida que eu vou consertar essa burrice. Vamos! Por favor! Eu mereço ser perdoado, Milena”.
Tento não piscar para não perder um só movimento, uma só frase. Ivan é sedutor, hipnótico, cativante. Não é recomendável enfrentá-lo sem ter cortado totalmente os laços afetivos com ele, do jeito que eu estou fazendo aqui. No entanto...Tudo que chega a mim são palavras vazias, com a agilidade de uma faca cega. Meu coração está aprendendo a se blindar.
“Quer saber, Ivan? Hoje não!”
Ele deixa escapar um olhar de surpresa quando me vê levantar.
“Meninas!”, eu me viro para trás e grito. Mas imediatamente me torno para observar sua reação, porque por essa ele certamente não estava esperando.
Do lado mais escuro do galpão elas vêm, lado a lado, exibindo fisionomias que variam entre indignação, tristeza e nervosismo. Fico alternando entre olhá-las se aproximando e acompanhar a cara de Ivan cada vez mais embasbacada pelo que se configura diante de seus olhos incrédulos. Quero vê-lo tentando se explicar e argumentar para seis mulheres traídas juntas.
“Gostou?”, provoco. “Seu time de namoradas tá completo agora”.



Nenhum comentário: