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6 de fevereiro de 2018

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x16: E SE...?



(Milena)


Por muito tempo na minha vida, desde que eu “aceitei” a morte da minha mãe, decidi seguir a vida dignamente e focada nos meus objetivos. Minha mãe sempre foi a maior e melhor amiga que eu poderia querer, e apenas no início da adolescência eu dei uma afastada dela, mas nada grave. Eu tava entrando naquela fase em que todo adolescente resolver virar xarope e não precisar da mãe por perto, mas no fundo era sempre ela a primeira a quem eu recorria. A decisão de continuar vivendo sempre tentando esquecer sua morte veio do tanto que esse acontecimento impactou na minha vida. Desde então, eu sei que mudei demais, a ponto de me tornar alguém cheia de reservas ao lidar com pessoas e criando cascas ao meu redor. Vesti uma armadura. Porém, como um belo plano fadado a falhar quando alguém descobrisse um ponto fraco, minha dor, outrora silenciosa, voltou com força total nos últimos tempos.
Mamãe era professora de Física, mas nos últimos dois anos de sua vida trocou as salas de aula por um cargo bem maneiro num centro de pesquisas científicas, onde auxiliava outros cientistas em coisas com as quais jamais fui familiarizada.
Perdê-la aos 13 anos revirou todo o meu universo. E justo no período em que eu mais precisei tê-la por perto. Para me dar aqueles toques de mãe, sabe. Sempre tivemos uma relação maravilhosa e eu tenho a mais plena certeza de que, se ela ainda estivesse viva, minha vida seria consideravelmente diferente do que é hoje.
Ao longo dos anos encontrei formas de mantê-la comigo, mas de modos que me trouxessem alegria, paz e confiança― ou seja, tudo que ela era capaz de me garantir. O diário que ela me dera poucos meses antes de falecer é um exemplo. Dei a ele o nome da minha mãe. Ou melhor, o apelido. Fabi. As lágrimas querem aparecer só pelo simples ato de recordar meu pai abraçando-a e beijando-a, chamando-a com a voz doce por esse apelido. Foi por vê-lo chamando assim que os amigos e colegas de trabalho dela passaram a tratá-la por Fabi também.
Outro exemplo, talvez o mais caro a mim nos últimos 17 anos, é o Sávio. O bom companheiro de viagem, o amigo mais incrível que eu poderia sonhar em ter. Percebe a semelhança? Uso para ele a mesma designação que uso para minha mãe, apesar das óbvias diferenças entre os dois. No entanto, foi no Sávio que encontrei aquele refúgio que eu achei que houvesse perdido para sempre. Mesmo eu tendo um pai amoroso, nunca foi a mesma coisa. Meu pai se casou de novo, mudou de cidade, teve outras filhas... E o Sávio sempre esteve aqui. É como se fosse uma espécie de “reencarnação emocional”.
Por conta de tudo isso, sempre procurei manter uma aparência de mais forte do que eu realmente sou. Quero dizer, eu sou tudo isso que as pessoas veem, de fato, porém eu me esforço para imprimir uma imagem um pouco mais aprimorada. Como se nunca tivesse havido a dor da ausência. Como se nunca tivesse havido a trágica sensação do luto e da mais avassaladora saudade. Ah, quanta saudade!
Sempre me orgulhei de ter as coisas sob controle. Essa foi uma das coisas que veio com o luto, com os inúmeros aprendizados que eu precisei lidar sem uma mãe por perto. Mas... eu estava preparada pro caso de perder esse controle? Os últimos acontecimentos na minha vida deixam bem claro que não.



Olívia e Pedro se sentam nas poltronas que eu aponto para eles.
“Vocês querem uma água? É só o que tem”, ofereço, comportando-me de um jeito ríspido.
Nem a pau que vou oferecer sorvete ou outra coisa gostosa para esses dois. A pessoa precisa conquistar minha confiança pra que eu lhe ofereça um sorvete. O seguro morreu de velho, e eu não pretendo vacilar com gente que eu não conheço.
“Não, não, a gente tá bem”, recusa Olívia. “Mas, se puder reconsiderar, achamos que dez minutos não vai bastar pra nossa conversa”.
“Vocês têm dez minutos!”, replico, sem a menor cogitação de ceder.
Para irritá-los, pego o celular e inicio o cronômetro.
Juliana volta da varanda, onde havia estado pensativa após Sávio e Denner saírem daqui atrás de Ivan. Ela faz um sinal de “quem são esses?” e, antes que eu responda qualquer coisa, Olívia toma a palavra, como se tivesse adivinhado a dúvida da minha prima. Bom, e a minha também.
“Bem, Milena, como já disse antes, eu sou Olívia Dantas. Meu colega Pedro Bispo e eu trabalhamos em missões secretas para departamentos governamentais, empresas e outros clientes privados. Fazemos desde investigações até busca e apreensão de objetos de interesse dos nossos clientes”.
Ela para e eu fico esperando que continue. Até agora não tô impressionada.
“Vou tomar um remédio e me deitar. Tô com dor de cabeça”, retira-se Juliana, vendo que não tem nada para ela aqui.
“Para deixar tudo às claras, saiba que eu também sou assassina profissional”, prossegue Olívia. Ok, isso sim é mais impressionante. E nada reconfortante, dadas as circunstâncias atuais. “Estamos aqui por conta de uma dessas nossas variadas funções. Mas não é a de matar”.
Ela se justifica com um sorriso meio sem-jeito, como se fosse uma pena que a melhor habilidade de seu currículo não pudesse ser aproveitada.
Pedro dá um pigarro, indicando que vai dizer algo.
“Se serve pra te dar uma tranquilizada, eu não sou assassino profissional. Apesar de que as pessoas se intimidam um pouco com a minha aparência austera. Mas isso não vem ao caso. A questão é que, no momento, fomos contratados pela sua mãe”.
Resolvo me sentar para mastigar pacientemente o que eles vão dizer. Passo os olhos rapidamente por dois vasos em forma de sereia que há na estante da sala. Se eu me emputecer com esses esquisitos, já sei ao que me agarrar. Hoje eu não me sinto nem um pouco intimidada em rachar a cabeça de quem vier tirar onda com a minha cara a respeito de um assunto tão delicado.
“Você está bem, Milena?”, observa Pedro. “Não está fazendo nenhum comentário”.
“Falem tudo o que tiverem pra falar. Comentários depois”.
“E aí? Direto ao ponto?”, ele se vira para a loira.
Ela assente, mantendo um sorriso plácido.
“Viemos de uma realidade paralela”, diz Pedro. “Um mundo, por assim dizer, com as mesmas características básicas deste em que estamos agora. Só que com algumas diferenças. Algumas ínfimas, outras totalmente discrepantes”.
Confesso que estava cogitando que esses dois tivessem sido enviados por Ivan para me azucrinar, mas agora começo a considerar a possibilidade de eles terem sido enviados pela Rita Lina. Só que não faz sentido. A Rita é doidinha, mas não teria a crueldade de aprontar uma brincadeira assim, embora tenha uma relação exuberante com o contexto das coisas que ela fala.
“Já ouviu falar na teoria dos universos paralelos, Milena? Ou dos multiversos?”, incita Olívia.
“Por alto”, digo, balançando a mão com certa indiferença.
“O que você sabe?”, ela insiste em me fazer interagir.
“Ahn... Sei lá. Já ouvi falar alguma coisa, talvez em filmes, séries... Mas eu sou péssima pra explicar esse tipo de maluquice, então aproveitem pra destrinchar tudo porque já se passaram três minutos”.
“Sabe, Milena”, é Pedro quem vai em frente, “já parou pra pensar como estaria sua vida se você não tivesse feito determinadas escolhas? Não estou falando só de escolher um pastel ao invés de uma coxinha numa padaria ou de um filme em vez de outro na Netflix, embora qualquer uma dessas coisas poderia tranquilamente exercer grande influência no futuro de alguém. Mas pense bem: se você tivesse optado por outra carreira, por outro curso universitário, será que você estaria vivendo na mesma cidade? Será que uma escolha crucial não teria determinado um rumo completamente diferente? Você poderia estar casada agora e até mesmo ser mãe”.
“Não, obrigada”, a grosseria me escapa, ante à minha animação zero em cogitar a maternidade ou o casamento. Mas mesmo assim, estou atenta a cada palavra desse arremedo de roteiro de filme sci-fi.
“Todos nós temos alguns ‘e ses’ nas nossas vidas”, segue Pedro. “São aquelas ponderações que nos vêm à mente quando analisamos nossa vida do ponto de vista em que ela está. Por exemplo: ‘e se eu tivesse ficado uma hora a mais naquele lugar, teria encontrado o grande amor da minha vida?’ ou ‘e se eu não tivesse perdido aquele ônibus que sofreu aquele terrível acidente, será que eu teria sobrevivido?’. Entende o que eu quero dizer?”
“Vocês disseram que tinham notícias da minha mãe”, agora a grosseria é de propósito, porque esse lenga-lenga tá enchendo o saco. “Olha aqui, não conheço nenhum de vocês, e tá batendo um arrependimento danado por ter deixado vocês entrarem, só pra começar um papo bizarro de ‘e se isso, e se aquilo’. Estão pensando que eu sou alguma trouxa? O que é que vocês querem? Por que não desembucham logo? Eu vi o jeito que o Denner ficou quando viu vocês. E foi muito diferente daquele dia lá na agência. Naquele dia, ele tava mais ameno, mas hoje ele tava muito irritado. Alguma coisa vocês aprontaram. Então, se vocês têm algo pra me dizer, parem de mimimi e falem logo, droga!”
Pedro demonstra decepção por ter sido interrompido na sua aulinha de o-que-quer-que-ele-esteja-tentando-explicar, e Olívia apenas testemunha minha reação.
“A minha mãe está morta!”, esbravejo. “Poxa, quem são vocês, hein? Seja lá de que inferno vieram, não é legal aparecer aleatoriamente na casa das pessoas e tocar num assunto tão sério e tão delicado. Isso não se faz. Eu vi a minha mãe no caixão. Eu vi quando fecharam a tampa do caixão. Eu vi as marcas de queimadura no rosto, no pescoço e nos braços. Eu vi quando enterraram o caixão. Eu vi!! Droga!!”
Por mais que essas lembranças me tragam dores extremas, não estou sentindo vontade de chorar.
“Não existe a menor chance de minha mãe estar viva. Eu sou uma idiota iludida que na verdade nunca aprendeu a aceitar isso e seguir em frente. Por isso que eu deixei vocês entrarem”.
Que show é esse que eu tô dando? Pai amado do céu!! Desnecessária toda essa exposição diante de pessoas com quem não tenho um pingo de intimidade. Eu costumo ser mais comedida, mas quando os nervos estão por um triz, não tem hora e nem lugar pra explodir, mesmo que isso me custe deixar meus sentimentos à mostra para estranhos.
“Tem razão, Milena”, pronuncia-se Olívia. “A sua mãe está morta mesmo. Fabiana Kerber faleceu numa explosão num centro de pesquisas científicas em Fevereiro de 1999. Nós não duvidamos disso. Também não duvidamos de que você viu as marcas de queimadura, de que viu quando fecharam o caixão e nem de quando o cobriram de terra logo depois”.
“Então o que é que vocês querem?”, provoco, a raiva tomando forma em meu olhar.
“Você olhou bem pra foto que te mostramos lá no portão, certo?”, pergunta ela.
“E daí? Montagem! Dá pra fazer qualquer coisa num photoshop da vida”.
“E por que a gente faria isso?”
“Sei lá”.
“O que faz de você tão especial pra que nós deixemos nossa missão original de lado por enquanto, só pra vir até a sua casa e te dizer que temos notícias da sua mãe? Por que a gente faria isso?”
“Missão original?!”
“Nós não viemos aqui atrás de você, Milena”, responde Pedro. “Nossa vinda do lado de lá pra cá era tão-somente uma missão de resgate. A gente só veio aqui pra levar a Rita Lina de volta pros pais dela”.
Esse negócio tá cada vez mais confuso. Como é que a Rita Lina se encaixa nessa história? Caramba! Isso explica o Denner tão zangado ante à presença deles. Ok, não explica exatamente. Mas me dá uma certa noção do motivo. Só que deixa o troço ainda mais emaranhado.
“Naquele dia que te vimos na agência, ficamos surpresos”, relata Olívia. “Eu tinha uma ideia completamente diferente da sua existência, mas ali, quando vi você, foi como presenciar um milagre. E olha que eu tenho o coração muito duro pra esse tipo de coisa”.
“É verdade, o coração dela é bem duro mesmo. Mas é pra qualquer tipo de coisa, não só pra milagres”, ressalta Pedro, parecendo realizado em poder dar essa alfinetada.
“Eu não tô entendendo nada”, resmungo.
“É simples”, diz Olívia. “Sua mãe morreu, isso é um fato. Só que ela morreu aqui. Nesta realidade. Em outra realidade, ela está viva. Ou melhor, na nossa realidade, de onde Pedro e eu viemos, ela está bem viva. E é uma mulher saudável, bem-sucedida, casada com o seu pai e nunca esteve naquela explosão no centro de pesquisas científicas. Naquele dia, a explosão aconteceu, mas sua mãe não estava lá”.
A menção ao fato de que minha mãe está viva em algum lugar e ainda por cima casada com meu pai me toca de alguma forma. É como se eu estivesse ouvindo a descrição de um desses sonhos bons que nos fazem acordar patetas e passar o dia todo aos suspiros.
Encaro-os com toda a incredulidade, tentando detectar algum fio de zombaria em seus rostos. Nada.
Olívia prossegue:
“Fabiana Kerber nos contratou para vir atrás de Rita Lina porque é amiga próxima dos pais da moça, e a Rita desapareceu há vários anos misteriosamente. Após algumas investigações, foi proposta a hipótese de que ela poderia ter vindo parar nesta realidade, de alguma maneira. Talvez tenha passado por um portal sem querer, não sabemos. E quando descobrimos que ela realmente estava aqui, tentamos nos aproximar do Denner para que ele convencesse a namorada a voltar conosco. Mas no meio do caminho as coisas não saíram como esperado. Então, quando voltamos pro hotel em que estamos hospedados, contei para sua mãe que havia visto você no mesmo dia do nosso fracasso em convencer a Rita a nos seguir. Sua mãe ficou muito esperançosa por saber disso e, para compensar o fato de que a missão de resgatar a Rita estava indo mal, propusemos um ‘presente’ para nossa chefe: um reencontro com a filha”.
Levanto da minha poltrona, cruzo os braços e franzo as sobrancelhas. Estou ficando sem ar. É informação demais para processar, num amontoado de coisas sem nexo: Rita Lina veio de outra realidade? Portal? Reencontro?
“Como é possível que a minha mãe esteja morta aqui nesta realidade e em outra esteja viva? Sendo assim, essa mulher pra quem vocês trabalham não é minha mãe. A minha morreu!”
“Veja bem”, fala Pedro, “infelizmente não somos especialistas no assunto e confesso que essa coisa de múltiplos universos é complexa e confusa, mas vou tentar colocar de outra forma pra você. Tem uma folha de papel?”
“Vocês só tem três minutos”, ignoro-o, espiando o cronômetro e ficando cada vez mais cheia dessa conversa.
“Droga!”, ele pragueja, estalando os dedos como quem pensa em algum jeito rápido de resolver a situação. “Bom, vou tentar resumir. Imagine uma folha de papel: ela tem dois lados, certo? Vamos dizer que cada lado representaria uma dimensão. É mais ou menos assim que trabalha o conceito de universos paralelos, eles não coexistem na mesma dimensão. No entanto, ainda usando a analogia da folha de papel, o que há de um lado também há de outro, ou seja, existe uma versão de mim, de você e de seus amigos em cada um desses lados, tá entendendo? Com os mesmos nomes, mesmas características, enfim. Porém, algumas atitudes que tomamos em um universo não são as mesmas que tomamos em outro, causando assim essas disparidades que estamos expondo pra você. Neste universo, você é uma psicóloga que em algum momento da vida abriu uma agência de desapaixonamento com seu amigo. Mas, em outra realidade, você, a mesma Milena, rejeitou essa ideia e preferiu desenvolver um trabalho um pouco mais tradicional. Então, voltamos ao exemplo do ‘e se’. Todo ‘e se’ é uma hipótese que se desenha na mente de uma pessoa, uma opção que poderia ter acontecido e a realidade paralela nada mais é do que essas hipóteses tomando forma, se concretizando. Em todos os universos em que uma pessoa existe, ela se depara com duas ou mais opções a respeito de uma determinada decisão. Em um universo, ela escolhe a opção A, em outro ela escolhe a opção B, e assim vai. Mas vai haver decisões que serão as mesmas em todos os universos”.
“Então, segundo isso que você tá me falando, não existem só dois universos. Existem mais".
“Sim!”, ele sorri feito um professor contente com uma aluna que está acompanhando o raciocínio. “E continuando a usar a tal folha de papel como exemplo, se você dobrá-la ao meio, agora você tem quatro dimensões. E se dobrá-la de novo, terá oito! Não é o máximo? Cada novo desdobramento dramático da nossa vida dá origem a uma nova realidade paralela. Bom, não que isso seja uma regra, pois como eu disse, não sou nenhum especialista. Mas agora você já tem uma noção melhor”.
“Minha cabeça tá toda bugada”, volto a me sentar, me afundando na poltrona, abraçando uma almofada.
Então, me dou conta de um detalhe.
 “Se existe uma Milena aqui e em vários outros universos, por que vocês estão querendo promover um reencontro entre mim e a minha mãe? Tipo, por que eu especificamente? Qual é o problema das ‘outras Milenas’?”, indago, com ar de brincadeira.
“Aí é que está, Milena”, Olívia suspira. “No dia da explosão no centro de pesquisas, lá em 1999, você saiu da escola e foi pro trabalho da sua mãe, pra fazer uma surpresa pra ela, não foi?”
“É... Sim, foi isso que aconteceu. Lá na sua realidade aconteceu assim também?”
“De certo modo”, afirma ela, seus olhos azuis penetrando minha alma com ímpeto, ao mesmo tempo em que suas palavras tentam ser cuidadosas. “Porém, Milena, alguns detalhes mudaram o destino por inteiro. Na nossa realidade, sua mãe saiu mais cedo do centro de pesquisas. Mas ela não sabia que você estava indo até lá pra encontrá-la. E você foi”.
“Ai, meu Deus...”, murmuro, antevendo o horror. Já sei o que Olívia vai dizer.
“Na nossa realidade, Milena”, segue ela, dando um tom adocicado à voz, talvez para amenizar o impacto do que vem a seguir, “quem morreu naquela explosão foi você”.
E então me sinto coberta repentinamente por um véu de puras trevas. Mas ainda não faz o menor sentido. Por que estou me importando com essas informações? Será que eu estou comprando toda essa história absurda?
“Quer saber por que a Olívia disse que te ver foi como um milagre?”, instiga Pedro, tirando o chapéu e revelando um careca lustrosa. “Nós já visitamos todas as outras realidades possíveis, já investigamos tudo. Esta é a única realidade em que você está viva, Milena. É por isso que tanto nós quanto sua mãe ficamos surpresos ao saber disso. É por essa razão que nós queremos te dar a chance de falar com ela de novo. Porque sabemos da sua solidão. Nós sabemos da sua dor. Porque a sua dor é a mesma da Fabi”.
“Agora”, levanta-se Olívia, pegando a bolsa na mesa de centro e tirando de dentro uma espécie de aparelhinho que não reconheço, “se pudermos provar nossas palavras, gostaríamos de usar sua TV”.


(Sávio)

Desde que saímos da casa da Mile, Denner e eu não estamos trocando praticamente qualquer palavra. O silêncio impera no carro. Minha tensão em ir atrás do Ivan, esse maldito assassino, deixa o meu corpo em total estado de apreensão. Parece que a qualquer momento vou entrar em combustão espontânea.
“Será que o Sávio quer que eu coloque uma música? Sei lá, músicas são uma boa pedida até pra momentos tensos”, diz Denner, de um jeito meio estranho, convenhamos.
“Isso foi um pensamento oral?”
“Ah!”, surpreende-se ele. “Pois é, desculpa, eu...”
“Não, tá tudo bem”, tento manter um tom de voz controlado. “Pelo menos você pensa em coisas legais. Se os meus pensamentos vazassem, o ambiente ia ficar contaminado com essa obsessão de matar o Ivan. Eu nunca quis matar tanto uma pessoa na minha vida!”
“É”, ele concorda, sem muita convicção. “Mas eu não sou muito feliz com essa coisa de falar e achar que era só um pensamento na minha mente. Me sinto meio exposto, sabe... Bom, mas e aí? Posso colocar uma musiquinha?”
“Coloca aí”.
“Tô sem pendrive”, lamenta ele. “Bora ver se tem alguma coisa bacana no rádio”.
O sol já vai se pondo quando Denner encontra alguma estação tocando “New Born”, do Muse. Grande pedida! Uma melodia que começa ponderada, delicada, mas que depois explode em velocidade e certa agressividade. É como minha alma se sente rumo ao acerto de contas com aquele patife; controlada no momento, mas cheia de ira a se revelar. Eu vou te matar, Ivan!
“Não quero parecer um chato aqui”, diz Denner, “mas você não devia ter ligado pra polícia e compartilhado esse endereço que conseguiu? Você tá com o braço ruim, e eu vou ser bem sincero: nunca fui um cara de me meter em briga, então existe uma grande possibilidade de eu não ser útil nisso tudo. Já a polícia...”
“Eu vou chamar a polícia sim, mas só quando eu estiver quase entrando na casa. Quero ter tempo de dar uma boa surra nele antes”.
“Sávio, como você pode estar tão confiante? Que parte você não entendeu de ‘seu braço tá ruim’?”, protesta Denner. “O Ivan tem vantagem sobre você, chefe. E eu já tô dizendo que eu sou péssimo em bater em alguém, portanto, você tem que elaborar um plano melhor”.
“Você não precisa se preocupar com isso, Denner”, retruco, começando a perder a paciência com ele. “Não precisa ser bom de briga. Se quiser, pode só tacar alguma coisa dura e pesada na cabeça dele. Ou nas costelas, sei lá. Não precisa ir pro mano a mano. Deixa que eu me viro com isso. Eu sei que o meu braço tá uma bosta, mas não tem nada que me faça desistir desse confronto. E você tem que parar de ser cagão, mano! Se estivessem fazendo algum mal pra Rita Lina, você ia ficar parado só porque não sabe brigar?”
Denner assente, finalmente se rendendo aos meus argumentos.
“É, olhando por esse lado... Eu realmente daria um jeito de revidar”.
“Essa é a palavra, Denner. Revidar. Agora você tá entendendo o propósito da coisa toda. Esse desgraçado acabou com a vida da Milena e matou a Anna. É meu dever ir atrás dele e revidar. É uma questão de honra. E mesmo fazendo isso, ainda é pouco. Esse cara merece ser apagado do planeta”.
Denner reduz a velocidade.
“De acordo com o endereço, a casa fica nesse quarteirão”, anuncia ele.
Depois de quase uma hora nessa jornada, enfim encontramos o covil do satanás.


Estacionamos alguns metros antes da casa de fato. A vizinhança é muito quieta e a rua é pouquíssimo movimentada, mesmo sendo um horário típico em que as pessoas estão retornando do trabalho. Só agora me dou conta que eu deveria ter trazido uma arma. Em seguida, me dou conta de que eu sequer tenho uma em casa. Acho que estou levando essa sede de vingança além dos limites.
Avançamos pela rua em passos curtos, silenciosos, sem chamar a menor atenção. Já são pouco mais de seis da tarde. Rajadas de vento frio se espalham, fazendo as folhas das árvores dançarem, ao mesmo tempo em que dão o tom necessário para a ocasião. A sombra que se assenta conforme vai anoitecendo prepara o cenário ideal.
Vejo uma coisa no chão e detenho o passo, abruptamente.
“Sávio?”, Denner também para.
Agacho-me e recolho uma pedra pouco maior do que a extensão da minha mão totalmente aberta. Sorrio, mesmo meu coração me condenando pela ideia terrível que se passa na minha cabeça.
Denner me olha, cobrando uma explicação, mas logo seu semblante muda ao perceber o que eu tenho em mente.
“Você já pintou uma pedra, Denner?”, pergunto, com um sorriso que beira a psicopatia. “Essa aqui eu vou pintar de vermelho. Sabe de onde eu vou tirar esse vermelho, né?”
“Por favor, Sávio!”, ele estende a mão para que eu lhe entregue a pedra. “Você já tá saindo muito de controle. Me dá isso!”
“Vou arrebentar a cabeça daquele escroto com isso aqui, Denner. E a pedra vai ficar vermelhinha de sangue”, levanto-me e guardo a pedra debaixo da camisa, prendendo-a à calça, ignorando totalmente a tentativa de Denner em me dissuadir.
“Droga!”, irrita-se ele. “Bom, parece que eu deveria encontrar uma pedra pra mim também, né?”
Dá até vontade de rir, mas a raiva é tanta que qualquer outro sentimento é mero coadjuvante. Então, determinado, sigo em frente. Denner não vê outra opção a não ser continuar, sem pedra ou qualquer outra arma improvisada.
Há um Jeep renegade cor de vinho na garagem. Aparentemente, não há ninguém na casa. Entretanto, sendo um cara cujo cérebro só é usado para maquinações malignas, Ivan sabe que um bom esconderijo exige que seus habitantes atraiam pouca ou nenhuma atenção. Se eu fosse um assassino provavelmente já descoberto da minha culpa, não veria o menor problema em passar um tempão em casa preso a uma rotina que não me permitisse sair ou interagir com os vizinhos. Se bem que... É como se o quarteirão inteiro fosse de assassinos escondidos sob tetos que não despertam suspeitas. Nunca vi um bairro tão tranquilo. Em outras circunstâncias, eu com certeza tentaria procurar uma casa por aqui, mas no momento eu tenho uma missão mais importante.
A residência é de madeira. Lembra um pouco aquelas casas americanas que vemos em filmes; tem dois andares e um pequeno jardim em frente. Porém, há um muro e um portão. Cuidadosamente, Denner e eu pulamos o muro. Graças a Deus nada de cachorros para nos denunciar. E o silêncio continua.
Ivan está tão empenhado em se manter oculto que as luzes da frente nem mesmo estão acesas. Mas isso é muito bom. Me dá ainda mais facilidade para continuar com minha invasão e não ser pego.
“Eu vou pelos lados até chegar aos fundos”, sibilo para Denner.
Ele balança a cabeça concordando e sinaliza que vai continuar lá pela frente.
Sigo meu caminho, pego o lado esquerdo da casa, aguçando meus ouvidos para tentar escutar algum ruído que possa me comprometer ou mesmo me ajudar a chegar ao meu alvo. Há uma luz acesa num dos cômodos do fundo, escapando por uma janelinha à frente. Ouço o barulho de colher batendo em panela. Ivan deve estar provavelmente preparando o jantar na cozinha. Excelente! Nada melhor do que surpreender uma pessoa em pleno momento de refeição, porque assim, além de quebrar sua cabeça com uma pedra, ainda consigo arruinar uma ocasião tão importante. Eu e essa minha mania doentia de conseguir fazer piada em momentos inapropriados...
Alcanço o quintal. Pouco espaçoso, mas muito confortável pelo que avalio. A porta da cozinha, que dá imediatamente para o quintal, está aberta. A lâmpada aqui fora tem uma luz relativamente fraca, então não preciso me preocupar com a exposição. Um vulto vai de um lado a outro na cozinha, e eu não consegui acompanhá-lo direito porque estou escondido atrás de um lençol estirado no varal. Mas deu pra ver muito bem que é o cretino.
Mentalizo a posição da pedra dentro da minha calça, ao passo em que também programo na mente o movimento certo para tirá-la de lá numa agilidade considerável para atacá-lo antes que ele consiga investir contra mim.
O corpo negro e sem camisa de Ivan surge diante de meus olhos. Ele está de costas, segurando o que talvez seja a panela que ouvi ainda há pouco, assobiando. Está realmente levando uma vida normal, enquanto deixou para trás pessoas devastadas com perdas irreparáveis. Um cara desses não merece perdão.
Aos poucos vou saindo do esconderijo, mas ainda não vou usar a pedra. Quero socar a cara dele primeiro, dar chutes, agredi-lo o quanto eu puder, com a carga mais violenta que eu puder (se possível, deixar seus braços em condições deploráveis também) antes de poder olhar nos olhos dele enquanto lhe parto a cabeça e assisto o sangue deixando sua cara ainda mais imunda do que já é.
A primeira ideia brilhante que tive, ainda no carro, e que eu não esperava que fosse ter a chance tão linda de pôr em prática, é chegar dando logo uma voadora nas costas do pilantra. E é assim que eu entro, pegando um pouquinho de impulso ainda do quintal. Só não dá muito certo de acertar as costas porque, assim que eu me encaminho para o interior da cozinha, Ivan se vira para minha direção e minha voadora pega entre as costas e as costelas.
Minha fúria é tão vigorosa que o corpo do filho da mãe é atirado contra uma parede com várias panelas penduradas, fazendo-as balançarem.
“Te achei, filho da puta!”, esbravejo, com a voz gutural. O coração pulsa num ritmo inacreditável.
Ele faz uma careta de dor e arregala os olhos totalmente surpreso em ver meu rosto.
No entanto, como eu não sou um personagem dos Cavaleiros do Zodíaco, não tô aqui pra ficar de papinho e já parto pra cima. Começo a dar socos em lugares aleatórios, mas me esforçando para manter a região do rosto e das costelas. Só que acerto poucos; o safado começa a se esquivar colocando o braço na frente, e isso me lembra que apenas um dos meus braços está em condições de executar os golpes, mas que se dane! O braço ferrado começa a latejar, mas a adrenalina é incrivelmente maior.
Ivan me empurra com muita força, o que lhe dá tempo de se levantar. A panela que ele segurava quando eu cheguei está no chão. A sopa que ela continha está toda esparramada.
Quando noto que ele está tentando encontrar algo para usar contra mim, volto a avançar em sua direção. Com o braço bom, consigo acertar um murro em seu peito, só que não aplico muita força, então é praticamente inútil.
Volto a desferir um soco, que desta vez acerta o ar, graças ao reflexo dele em desviar para o lado certo. Em contrapartida, Ivan me dá um soco bem no estômago. Gemo de imediato, mas não posso gastar tempo para experimentar qualquer dor, então me concentro em revidar. Ele me acerta um chute na altura da virilha, mas não tem muita sorte com a força do golpe, então só faz incomodar um pouco.
Vendo que um dos meus braços está com um imobilizador, Ivan decide enfiar um soco bem em cima, mas sou mais rápido e o afasto com um empurrão. Então ele se atira contra meu corpo com um chute pouco acima do joelho. Dessa vez, não consigo me equilibrar. E ele se aproveita disso e se senta sobre meu peito e imobiliza o único braço com o qual eu posso contar de verdade.
Respirando sôfrego, ele me encara com os olhos mais diabólicos e alucinados, e o suor escorrendo pela cara. Devolvo com um olhar ávido por querer liquidar com a raça dele. Estou arfante, com os dentes cerrados e tentando me mexer para voltar a brigar. Mas agora o desgraçado tá com vantagem sobre mim. Como é que eu pude ter sido tão fraco e permitir isso?


(Milena)


Olívia escolhe um canal onde tudo que se tem é estática e chiado. Após plugar numa entrada USB o aparelho desconhecido que trouxera em sua bolsa, ela posiciona uma micro-câmera na parte superior da TV. Depois, ela e Pedro ficam diante do objeto aguardando algo acontecer.
“Falta menos de um minuto agora”, digo, mais para manter a implicância do que por estar realmente me importando com o tempo.
De repente, na tela, aparece uma logo de uma empresa que eu conheço muito bem: TechnoCorp. A empresa da minha ex-cliente, Aurora Souto. Que estranho! É a primeira coisa familiar no meio dessa enxurrada toda de informações insólitas que eles me empurraram até agora.
“Por que tá aparecendo a logo da TechnoCorp?”
“Você conhece?”, Pedro pergunta, meio retoricamente, com ar de satisfação. “Essa foi a empresa que desenvolveu a tecnologia que possibilita a comunicação entre o lado daqui e o lado de lá”.
“Hum, entendi, É como uma mistura de Skype com mesa branca”, brinco.
“O problema é que a tecnologia ainda não tá avançada o bastante, aí a conexão não dura mais de três minutos”, queixa-se Pedro.
Olívia se mantém alheia a mim. Sua atenção está toda voltada para a tela da televisão. Após quase quinze segundos, o nome da empresa de Aurora some da tela, dando lugar a uma imagem do que parece ser um escritório com uma ótima iluminação. Há uma estante de livros atrás de uma escrivaninha.
“Está preparada?”, finalmente Olívia se volta para mim.
“Para o quê, exatamente?”
“Você vai falar com a sua mãe agora”, diz ela, estranhamente muito simpática.
“O quê?”, tento parecer não muito chocada.
Pedro se aproxima de mim e toca meu ombro, com delicadeza. Não sei dizer a razão, mas tá começando a dar um nó na garganta, só que não era pra esse nó estar aqui. De repente, percebo o estado em que minhas mãos se encontram: suadas e geladas. Semelhantemente a uma adolescente que enfim descolou a chance de falar com o crush, me sinto como se estivesse prestes a ter a chance da minha vida para algo que eu vinha desejando muito. Isso é loucura demais. É loucura demais!
E é quando ela surge na tela, de cabeça levemente abaixada, caminhando em direção ao centro da tela, onde está a escrivaninha. Tem os cabelos como se fossem castanhos muito escuros. Está bem arrumada, com uma blusa branca muito bonita. Uma mulher com aparência entre 50, não mais que 54 anos. Uma mulher de beleza notável.
Ela procura se sentar de maneira bem acomodada à escrivaninha, onde pousa os braços para se sentir mais confortável. E aí ergue o rosto para encarar a câmera do tal dispositivo.
“Meu Deus!”, suspiro, contemplando a visão mais inimaginável de toda a minha vida.
Essa mulher do outro lado da tela é simplesmente idêntica à figura que eu imaginava da minha mãe quando ela chegasse a essa idade.
“Milena”, ela diz, também visivelmente comovida.
A sala da minha casa ganha uma atmosfera nova. É como se o mundo inteiro coubesse aqui dentro, mas ao mesmo tempo fosse pequenininho. Não há Pedro e Olívia. Nem Juliana deitada no quarto. Não há Sávio e Denner indo à caça de Ivan. Não há nada. Eu estou diante de um momento que parece mágico, que parece uma alucinação de tão insano. Bastou ela dizer uma só palavra. Uma só! Meu nome. Uma palavra foi o suficiente para eu começar a deixar as lágrimas rolarem. A voz é a mesma. O olhar carinhoso. O jeito de sorrir e de se dirigir a mim. Meu Deus! Meu Deus!
“Mãe...”, mal sai a palavra, estrangulada pela emoção e pela reviravolta que tá dando na minha cabeça nesse exato momento. Minhas mãos tremem e meus pés estão prestes a me deixar fora do chão. E o coração, se remexendo desesperado aqui, nem se fala...
Uma leveza inesperada me cerca. Meu coração é massageado por um calor tão bem-vindo, um calor que me enche daquela saudade de tempos antigos. Um calor que eu havia esquecido como era. Que eu sei que tentara substituir de outras maneiras, mas que nunca tivera êxito real.
“Mas... mas como?”, gaguejo, ainda sem conseguir entender a dimensão de tamanha maravilha.
Ando lentamente até a tela, com a mão levemente esticada. Feito uma menina boboca, deslizo os dedos pela tela da televisão, como se isso pudesse me fazer sentir o toque da pele de minha mãe, e comprovar que essa mulher é de verdade, não é uma ilusão, não é uma pegadinha sem graça. Mas como é possível?
“Filha, eu tô com tanta saudade de você. Eu te procurei tanto”, confessa ela, embargada pela emoção, e rapidamente se levantando de seu lugar para repetir o mesmo gesto que eu.
“Minha mãe”, é só o que consigo balbuciar, a voz levemente trêmula. “Minha mãezinha! Minha mãezinha! Você tá viva, minha mãezinha. Você tá viva! Ai, meu Deus!”
Ouço um som de choro discreto vindo de trás de mim. Não sei se é Pedro ou Olívia, mas é certo que a emoção aqui está incontrolável.
“Eu estou viva sim, meu amor!”, ela confirma, e ri porque sou apenas uma garota que, mesmo adulta, ainda sou capaz de ser tão boba.
Ambas estamos próximas de nossos respectivos monitores. Palavras não conseguem ser suficientes. Tudo o que fazemos é chorar. E rir. E depois chorar de novo. A última coisa que eu podia imaginar nessa vida, mas também a que eu mais ansiei com o coração mais cheio de ardor. Poder saber que ela existe além das páginas daquele diário e das minhas noites angustiantes em que sua falta machucou mais do que tudo, e eu lutava para dormir e ter fé nos dias vindouros. Minha mãe está viva. Minha mãe está viva.
Então me ajoelho e fico admirando cada detalhe do seu rosto lindo, porque se eu só tenho três minutos, é primordial que eu aproveite apreciando aquela que sempre foi a minha verdadeira razão de viver.
“Meu Deus, eu sinto tanto a sua falta!”, me despejo em lágrimas, que jorram de uma fonte infinita na minha alma.
“Você tá tão linda!”, elogia ela, também mesclando entre falar e chorar.
Eu rio, como sempre ri quando ela me elogiava e eu não dava crédito. Sussurro um “obrigada” meio tímido, assinalado com um sorriso igualmente contido.
“Você está bem, meu amor?”, pergunta ela.
Confirmo com a cabeça, ainda imersa na visão à minha frente.
“E a senhora?”
“Eu estou muito bem, minha filha. E com certeza estou muito melhor agora podendo ver você de novo. Eu nunca te esqueci, Milena. Faz tanto tempo que eu sonhava em te ver de novo”.
“A senhora não tem ideia do tanto que eu me sinto sozinha. Eu nunca lhe esqueci também. Nunca”, desabafo, mesmo sabendo que é a primeira vez que falo com ela em anos. Contudo, é como se nunca tivéssemos nos separado. A relação de cumplicidade está intacta. Pode até ser minha mãe de um universo alternativo, mas é definitivamente a mesmíssima pessoa.
Trocamos mais algumas palavras, informações extremamente triviais, mas com um significado gigantesco. Mesmo tendo de nos despedir porque o aparelho vai se desconectar, nós duas estamos dividindo uma alegria tão imensurável que isso nem chega a ser um problema.
“Se cuida, Mile! Eu te amo muito e tô com muita, muita saudade”, despede-se.
“Eu também morro de saudade, mãe. Se cuida também!”
Ela não se afasta da câmera até a tela ficar toda preta. E eu permaneço olhando para a tela, com cara de idiota, mas uma idiota plenamente feliz. Caramba, eu falei com a minha mãe! O quão maravilhosamente louco isso pode ser?
Não sei quanto tempo se passa até que eu me vire para encarar Pedro e Olívia, enquanto enxugo o rosto com as mãos.
“Acredita em nós agora?”, Olívia pergunta, com um sorriso sincero.
Sorrio de volta, balançando a cabeça por conta da contradição disso ter sido tão bizarro porém tão fantástico.
“Ainda tô sem entender nada, mas acredito!”
Caminho até eles e puxo os dois para um abraço em conjunto. Estranham no início, mas logo se rendem. E aí eu percebo que o choro que eu ouvira pouco tempo atrás não foi apenas de um deles, mas dos dois. Queria que o Denner estivesse presenciando isto, ele provavelmente cairia pra trás ao descobrir que Pedro e Olívia têm coração.


(Sávio)


“É assim que você me retribui por eu ter tido pena de você, seu merda?”, cospe Ivan com todo ódio. “Você teve sorte de eu não ter mandado eles te matarem, isso sim”.
“Seu... Filho da...”, a perna dele sobre meu peito começa a me sufocar.
“Como é que você tem a audácia de vir me enfrentar, hein?”
“Você... Matou... Aaah... Você matou a... Anna...”, digo, com dificuldade.
“Anna?!”, ele se faz de desentendido, então pega o meu braço danificado, inclina pra cima e depois joga com tudo contra o assoalho.
Vejo estrelas e urro de dor.
“Eu não matei a Anna, idiota. Droga, foi por isso que você veio aqui?”
Não respondo, apenas tento disfarçar a dor.
“Como você me achou?”
“Vai se foder!”, encontro fôlego e cuspo a frase de uma só vez.
“Como foi que você me achou, Sávio? Hein?”
O olhar demoníaco se transforma em um olhar de quem está se dando conta de algo. De repente, tudo fica claro na mente dele. Ora, a única solução viável para o enigma de como cheguei aqui é absurdamente óbvia.
“Juliana”, diz ele, como se estivesse se deliciando com a pronúncia do nome. “Eu quero ela de volta, Sávio. Cadê ela? Eu quero recuperar a minha namorada. A coleção já tá muito desfalcada”.
“Eu vou... acabar com vo... com... você, Ivan”, ameaço, mais para manter a classe do que outra coisa. Não posso me deixar humilhar assim.
“Me fala onde a Juliana tá, senão eu vou fazer mais do que machucar esse seu braço todo bichado”, sua ameaça é muito mais intimidadora, não só porque estou sob seu domínio, mas porque esse homem parece estar possuído. Ou então só está sendo quem sempre foi e resolveu largar as atuações de bom moço. Sua cólera é genuína.
Ele força a perna ainda mais contra meu pescoço, enquanto pressiona um dos braços contra o meu braço doente. Tento me mexer de todo jeito para tirá-lo de cima de mim, mas acaba que com isso só estou desperdiçando a pouca energia que tenho.
“Por que você foi se meter comigo, hein? Por que não ficou na sua? Quer morrer, Sávio? Quer morrer? Então eu vou te matar!”, vocifera ele, e a saliva raivosa goteja contra meu rosto, e eu me mantenho resistente.
Ivan imprime mais força contra meu pescoço e contra meu braço.
“Aaaaaaaaaaaiiiii!!!!”, ele grita e se afasta. O som de algo atingindo e surrando sua pele ecoa retumbante.
Quase sem força nenhuma, me movo com o máximo de habilidade para me levantar e o empurro. Ele cede. Mas é atingido de novo.
Quando consigo entender o que está acontecendo, vejo Denner com uma longa mangueira de jardim azul enrolada na mão, mas com alcance suficiente para usá-la como um chicote. Ele deu umas boas mangueiradas nas costas nuas de Ivan.
“Foi o que eu consegui encontrar, Sávio”, desculpa-se ele.
“Você é ótimo!”, parabenizo sorrindo e com o polegar pra cima. Eu amo esse cara!
Num milésimo de segundo que Ivan se distrai outra vez buscando com o olhar por uma faca ou algo que lhe sirva de arma, aproveito para lhe dar uma rasteira. Com ele no chão, vou logo matar minha vontade de usar a pedra. Não posso errar um único movimento sequer, tenho de ser preciso pra realizar tudo com sucesso.
Acerto um soco bem no nariz dele, que sangra. Ele estava tentando se reerguer antes disso, e agora está tombado. Enquanto ele faz um pequeno esforço para se levantar de novo, apanho a pedra e, com a boca aberta como quem vai degustar um pomposo banquete, sinto o calor da maldade no ato que vou cometer, além de experimentar um prazer que vai crescendo. É quando escuto Denner falar, sem mais nem menos:
“Logo isso acaba e a gente vai tranquilizar a Milena e a Juliana”.
E tudo acontece em menos de dois segundos. Troco um olhar com o Denner, confuso pelo que ele acaba de dizer, mas ele me olha com tanta inocência que entendo que ele teve outro de seus pensamentos orais. Mas não tenho tempo de avisá-lo que o pensamento vazou. E, então, um tiro do mais absoluto nada atravessa a cabeça do meu amigo. Em cheio.
O elemento-surpresa com o qual ninguém contou. Valéria, uma das namoradas de Ivan, aparece ainda com a arma empunhada contra o corpo de Denner, fumaça saindo do cano, enquanto meu funcionário desaba inerte feito um saco vazio.
“DEEENNEERRRR!!!”, grito, desesperado, a pedra caindo de minha mão e uma sensação pesada de terror me inebriando.
Valéria aponta o revólver para mim também, o olhar mais carregado do que o de Ivan. Mas ele me derruba antes dela atentar contra minha vida. Ele agora está de posse da pedra e, antes de usá-la para barbarizar contra mim, meu olhar se depara com a aterradora visão de Denner sangrando sobre o chão sujo de sopa, sem demonstrar o menor sinal de vida. Ele se foi. E agora sou eu quem vai também.
Entretanto, ouço as sirenes de polícia ao longe. Denner com certeza ligara para eles antes de entrar na casa e salvar a minha vida.
Ivan se toca do perigo de ser pego na mesma hora. Então ele se levanta, me dá um chute vigoroso na barriga e se volta para a namorada/cúmplice:
“Vamos pegar o carro e fugir. Rápido!”
“Mas, negão, esse cara tem que morrer!”
“Não, Valéria!! Você já matou dois. Chega! Vamos embora, corre! Eu sei onde a Juliana tá. Rápido!”, ele ordena e ao mesmo vai empurrando a namorada para ambos se mandarem depressa.
Tremendo e com os olhos esbugalhados, percebo que não consigo me levantar. O ar me falta, o corpo está praticamente imprestável. A barriga dói insuportavelmente, e o braço com o imobilizador parece totalmente podre depois de ter sido forçado e agredido além da conta. O som das sirenes persiste, aproximando-se cada vez mais. Mas, infelizmente, há tempo suficiente para Ivan e Valéria fugirem.
Com o mínimo de energia que me resta, me arrasto pelo piso emporcalhado de sangue e pedaços de frango e macarrão, até Denner. Seus olhos ainda estão abertos, mas não piscam, nem demonstram qualquer expressão, não emitem qualquer mensagem. Mesmo sabendo que é inútil, tento sentir sua respiração, mas é claro que ela já desfaleceu. Apoio a cabeça sobre seu corpo morto, me deixando invadir pelo remorso e mergulho em um choro desconsolado e sem fim.




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