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9 de fevereiro de 2018

DESAPAIXONANTE --- EPISÓDIO 4x17: UM GRANDE EXEMPLO DE MULHER




(Sávio)


Abro os olhos, desperto com assombro. A cabeça gira. Meu olhar turvo tem dificuldade pra ir se acostumando ao ambiente, e eu levo vários segundos para recobrar a consciência. O cheiro de frango, suor e sangue me trazem à tona para a perturbadora verdade: estou na cozinha de Ivan Castro, estirado sobre o chão duro e imundo. Tudo em desordem.
Sinto Denner próximo à minha cabeça. Depois de tanto chorar por ter perdido meu amigo, eu devo ter sucumbido ao cansaço da briga de minutos atrás. Espera aí. Minutos? Caramba, quanto tempo faz que estou assim? Por quanto tempo apaguei?
Vou me levantando com dificuldade. Tateio os bolsos da calça em busca do meu celular. O aparelho está com a tela terrivelmente trincada, mas ainda dá pra ver o relógio no canto superior: são seis e cinquenta e oito. Pelos meus cálculos, devo ter ficado fora de mim por uns trinta minutos.
Logo, outro detalhe me salta à memória: onde estão os policiais?
Eu ouvi as sirenes ainda durante a luta. Sei que ouvi.
É, parece que eu me enganei. As sirenes com certeza foram reais, mas não era pra cá que estavam vindo. De qualquer forma, foi esse barulho ao longe que roubou a chance de Ivan acabar comigo.
Olho para minha esquerda, o corpo de Denner imóvel. Ambos estamos encharcados pelo seu sangue. Estou confuso e com medo. Perdido.
Ivan deve ter ido atrás da Milena. Ouviu o último pensamento oral do Denner e sacou que é com a Mile que a Juliana tá.
Pego o celular, no afã desesperado de fazer alguma coisa, mas a bateria tá quase morrendo. Não vai aguentar sequer fazer uma ligação. A agonia deixa meu peito gelado, necessito fazer alguma coisa rápido. Do jeito que aquele cara tá cheio de ódio e anda com uma cúmplice fatal, só Deus sabe as consequências que podem existir agora que as coisas chegaram a esse ponto.
Então, percebo um volume num dos bolsos de Denner. É minha única saída. Tomara que a carga da bateria seja suficiente.


(Milena)


“Quê? O David Bowie ainda tá vivo do lado de lá?! Não brinca!”
Estou me divertindo horrores trocando uma ideia com Pedro e Olívia e fazendo comparações entre as duas realidades.
“Que coisa!”, me surpreendo. “A minha mãe está viva, lá meus pais ainda estão juntos, vocês têm o David Bowie e ainda por cima a tecnologia de vocês é superior. Tô quase me mudando pra lá”.
Nós três rimos com meu comentário, enquanto saboreamos uma segunda porção de sorvete.
“Todavia”, contraria Pedro, “aqui vocês têm uma diva chamada Lady Gaga que lacra muito! Não sei o que essa mulher tá fazendo da vida do lado de lá, mas provavelmente não tá seguindo carreira na música, porque jamais ouvimos falar dela. Ah! E também tem a Anitta, que eu acho um arraso. Pena que do lado de lá ela canta música gospel”.
“Pois é, né? Não consigo imaginar o mundo do pop sem a Lady Gaga ou a Anitta sem rebolar a bunda”.
Noto que Olívia está muito calada.
“Tá tudo bem?”, pergunto olhando diretamente para ela.
“Aham! Eu só não tenho muita paciência pra lidar com o Pedro quando ele começa a usar essa linguagem que aprendeu do lado daqui. Tudo pra ele é ‘lacre’.”
“Beijinho no ombro, queridinha”, desdenha ele, realmente fazendo o gesto popularizado pelo funk brasileiro.
Mais uma vez nos pegamos rindo.
“Mas, sabe, Olívia, acho que não é só isso”, insisto.
Olívia me encara. Dá pra ver em seu olhar que realmente há mais alguma coisa.
“É, tem razão”, admite. “Tô pensando em mais coisas. Por exemplo, na possibilidade de você ir embora com a gente.”
Pedro arregala os olhos, mas não de surpresa. É mais como se ela tivesse dito algo brilhante.
“Ir embora?”, digo. “Você quer dizer, ‘ir embora pro lado de lá’, é isso?”
“Isso mesmo”.
“Seria muito bizarro”.
“Seria? Mas o que você tem a perder aqui? Não iria gerar nenhum transtorno. É só dizer pro seu pai e pros seus amigos que você tá se mudando pra outro país ou algo do tipo. Não teria de explicar que vai deixar de existir da maneira que todo mundo já tá acostumado”.
Suspiro, pela primeira vez considerando a hipótese desde que pude ver minha mãe de novo. Pensando no impensável.
“Não sei... Eu tenho uma vida aqui. Quero dizer, a minha vida é essa que eu vivo aqui, neste lugar, nesta realidade. Sei lá, parece que seria meio covarde da minha parte simplesmente fugir dos problemas. E eu não sou o tipo de pessoa que foge de problemas, não importa o quanto eles me machuquem”.
“Não gostaria de ficar com a sua família pra sempre?”, interessa-se Pedro, lambendo sua colher suja de chocolate.
“Isso seria maravilhoso”, considero. “Mas não me vejo indo embora daqui. Eu estive lutando esse tempo todo pra me manter viva, sabe. Em meio a tanta coisa. Meu campo de batalha é aqui”.
A campainha toca. Caminho até a porta, dou uma espiada e exclamo:
“Rita Lina!”
Volto-me para meus visitantes, faço um sinal para que esperem até que eu vá abrir o portão para a recém-chegada.  
Rita está vestindo uma capa de chuva preta dessas de motoqueiro e carregando uma sacola com o que eu acredito que sejam roupas e um par de sapatos, além de portar um capacete sob o outro braço.
“Desculpa o atraso”, Rita diz quando adentra minha casa, “mas é que eu tive que fazer uma entrega bastante longe”.
“Você tá trabalhando de motoboy?”, indago, surpresa.
Motogirl, na verdade”, ela dá uma longa respirada, cansada. “Eu entrego mensagens de som, sabe. A empresa em que eu trabalho achou que fosse menos constrangedor para aqueles que vão receber as mensagens se o serviço fosse de moto em vez de carro, além de nada de balões e sem Roberto Carlos de fundo, e tá dando certo. E as pessoas mandam entregar mensagens de tudo que você imaginar: homenagem romântica, aniversário, casamento e teve até uma cliente que mandou a real pro cara dizendo que o sexo na noite passada tinha sido enfadonho e que ela preferia ter assistido à programação da Rede Vida”.
“Uau! Deve ser mesmo emocionante. E por que a capa de chuva? Só vai chover lá pra Dezembro”.
“Pois é, minha mãe perguntou o mesmo. É que eu fiquei muito mal acostumada com o clima Valpixiano, então eu gosto de andar prevenida. Lá é do tipo que cai neve de manhã e pela tarde vem um solzão de matar. Bom, mas enfim cheguei. Ah, e como vou me arrumar aqui, já trouxe as roupas e os sapatos”, ela ergue a sacola de leve.
Rita está se referindo ao “trato” que Juliana e eu vamos dar nela, porque Denner vai levá-la pra sair e ela quer estar nos trinques. Nada mais justo.
“Senta aí”, digo. “Vou chamar minha prima”.
O semblante animado de Rita se desestabiliza assim que põe os olhos em Olívia e Pedro. Os dois parecem reconhecer que ela tem razão em lhes lançar um olhar furioso, então se encolhem em suas poltronas.
“O que vocês estão fazendo aqui?”, questiona ela, enervando-se.
“Viemos falar com a Milena”, responde Olívia.
“Meus pais me contaram tudo daquele dia”, diz Rita, e depois se volta para mim, em contestação: “Você sabia que esses dois estavam querendo me roubar da minha família, Milena?”
“Calma, Rita, eu posso explicar”, digo.
Somos interrompidos pela música do The Verve saindo do meu celular. Alcanço o aparelho, mas não reconheço o número. Cogito não atender.
“Denner?”, Rita espia  no identificador de chamadas enquanto seguro a tela do meu telefone e estudo se recuso ou não a ligação.
Como ela reconheceu quem é, atendo, apesar de ser muito estranho. Mas pro Denner estar me ligando, alguma merda muito grande aconteceu.
“Oi”, minha voz quase não sai, porque o coração tão apertado a abafa.
“Milena! Que bom que você atendeu!”
“Sávio?”, a voz volta, mas o coração ainda tá apertado.
Ao meu lado, Rita está com o rosto muito sério, interessada em saber o que está se sucedendo.
“Milena, por favor, você precisa fugir”, Sávio fala como quem implora, e há um quê de agonia em seu timbre, o que me assusta.
“Peraí, Sávio, fica calmo! Me explica o que foi que aconteceu”.
“É o Ivan. Ele tá indo atrás de você e da Juliana. Você tem que dar o fora da sua casa, vai pra um lugar seguro e depois chama a polícia, sei lá. Mas foge. Ele tá com a Valéria e ela é ainda pior que ele. Eles podem tentar te matar, você e ela estão correndo muito perigo. Foge, Mile! Rápido! Não dá pra explicar nada agora, só foge!”
E ele desliga.
“Meu Deus!”, sussurro, sentindo o ar pesar.
“O que foi?”, Rita se angustia.
“A gente precisa sair daqui agora”, disparo.
“Peraí, mas o que é que tá acontecendo? Era o Sávio? Por que ele ligou do celular do Denner?”
“Eu não sei, Rita, só sei que a gente tem que sair daqui”, praticamente corro até o quarto em que Juliana está descansando e abro a porta com tudo.
“Oi, meninas, tudo bom?”, ela está tagarelando de frente para a câmera frontal do celular quando se espanta ao me ver. “Milena! Que susto! Eu tava fazendo snaps”.
“Rápido, Ju! A gente precisa dar o fora daqui agora!”
“O que foi?”
“Te explico no carro, vem logo!”, sou incisiva para não dar margens à “por quês” e outras perguntas. Nem mesmo eu sei exatamente o porquê.
Meio atordoada, ela sai catando alguma coisa que ache que possa precisar nessa fuga repentina. Rita, no meu encalço, insiste:
“Aconteceu alguma coisa com o Denner, Milena? O Sávio comentou algo?”
“Não sei, Rita. Você viu, a ligação foi muito rápida, ele só teve tempo de me mandar fugir”.
“Fugir por quê? Onde eles estavam?”
“Sávio foi atrás do Ivan e o Denner foi junto”, explico apressadamente, enquanto fuço no meio dos objetos da estante da sala à procura da chave do carro.
“A gente pode ajudar”, pronuncia-se Pedro. “A gente pode ir pra minha casa. Quero dizer, pra casa do Pedro desta realidade. De certa forma, é minha”.
“Ótimo!”, concordo, comemorando mentalmente que enfim encontrei a chave do carro.
“Você vai com eles?!”, Rita tenta se opor.
“Desculpa, Rita, mas você vai ter que confiar neles. E pra isso, vai ter que confiar em mim”, decreto.
Ela hesita um instante e, embora contrariada, deixa de teimar. Pedro e Olívia saem na frente para que possam pegar seu veículo e conduzir o caminho.
No meu carro, entramos Ju e eu no banco da frente, Rita Lina no banco de trás. A moto na qual Rita veio permanece à beira da calçada. Na pressa, nem ela se lembrou desse detalhe. E a fuga começa.


“Tô ligando, mas ele não tá atendendo”, lamenta Rita, no que eu imagino que seja a décima vez que tenta falar com o namorado.
Estou dirigindo velozmente e ao mesmo tempo muito preocupada. A que ponto minha vida chegou? De envolvimento com macho escroto a ter de fugir desse mesmo macho. Não conheço algo mais degradante. Pior: são duas no mesmo carro, minha prima e eu. Mas o Sávio não deixou a menor dúvida sobre termos de fugir. Aquele tom sofrido e cansado em sua voz foi mais do que o necessário para me convencer.
Pelo espelho, vejo Rita tentando mais uma vez.
“Relaxa, Rita, tá tudo bem com o Denner”, tento confortá-la, ainda que eu mesmo sinta desejo de ser confortada. “Deve ter acontecido alguma coisa com o celular do Sávio, por isso ele pegou o do Denner emprestado. Logo eles dão um jeito de entrar em contato com a gente. Fica fria!”
“Tem razão”, concorda ela, baixando o celular e desistindo, mas sem muita certeza.
“O que você acha que aconteceu?”, Juliana, no banco do carona, me pergunta.
“Prefiro não especular”, respondo secamente. “Mas a ida do Sávio não deu em nada, já que o Ivan mais uma vez escapou. E o Sávio disse também que a Valéria é ainda pior que o Ivan”.
“Ah! Disso eu não me admiro nem um pouco. Acho que ela é uma dessas mulheres com borderline, sabe. Nunca pesquisei muito a fundo, mas a Valéria é uma pessoa muito instável e impulsiva. Não se pode confiar nela”.
“Hum”, resmungo. “É cada criatura que cruza a nossa vida!”
“Nem me fale”, Ju suspira. “Eu tô muito arrependida, Milena”.
Por um segundo, tiro os olhos do trânsito e me volto a ela. Dou um sorriso em apoio ao que acaba de dizer, e para mostrar que ela pode contar comigo. Já faz um tempo que parei de julgá-la pela atitude impensada. Mais do que nunca, precisamos nos manter unidas.
“Gente!”, diz Rita no banco de trás. “Já perceberam que tem um carro cor de vinho atrás de nós há uns cinco minutos?”
Num primeiro momento, isso não significa nada para mim, mas Juliana espia pelo retrovisor e se desespera:
“É ele, Milena!”
“O quê? O Ivan?”
“Sim, é o Ivan! Ele comprou esse carro há pouco tempo. Ele encontrou a gente!”
Pedro e Olívia estão no sedã logo à frente, e o plano de nos escondermos está indo por água abaixo.
“E agora?”, incita Juliana, perdendo a tranquilidade.
Quero tanto manter a calma. Dá um branco total na minha mente e tudo que eu consigo fazer é continuar dirigindo. Não faço a menor ideia de que ação tomar. Pensei que estávamos com vantagem, mas por algum motivo Sávio nos deu a informação tarde demais. Se já faz cinco minutos que estamos sendo seguidas, foi por um mísero triz que Ivan não nos pegou em casa.
Sem uma alternativa mais sã, piso com tudo no acelerador e vou de 75 quilômetros por hora a 100. Nem preciso olhar para Juliana ou Rita para saber que elas estão amedrontadas com a minha atitude, mas se elas continuarem de boca fechada e apenas me apoiando moralmente será muito melhor.
Pedro e Olívia provavelmente não entenderam nada ao nos verem ultrapassando seu carro. Ou, se são minimamente espertos como eu os julgo, já entenderam que o plano precisou sofrer uma alteração de última hora.
“Ele tá acelerando”, Rita se vira para o vidro logo atrás de si para nos dar essa informação sobre Ivan.
É claro que começa uma loucura no trânsito, nesse início de noite. Os carros ao meu redor começam a buzinar alucinadamente, e com razão, é lógico. Alguns carros nas ruas transversais são obrigados a frear bruscamente quando avanço alguns sinais; minhas mãos estão tesas ao volante, e minha respiração está controlada, como se um fôlego a mais pudesse causar um baita estrago. Sou xingada, mandada para a PQP e muitas outras coisas horríveis ao longo do trajeto. Porém, eu não tenho tempo pra ficar arrumando briga na rua. Já tenho uma briga muito mais séria em curso neste exato momento e não posso dar mole.
“Cuidado com a calçada!”, grita Juliana.
“Cuidado com a bicicleta do tio!”, aflige-se Rita.
“Gente, silêncio!”, aborreço-me e grito. “Não fiquem falando senão eu perco a concentração aqui, pelo amor de Deus!”
O Jeep de Ivan está a mais ou menos uns 40 metros, e Valéria coloca metade do corpo pra fora com uma arma em punho, erguida para cima.
“Parem o carro!!”, ela fica gritando que nem uma desequilibrada. “Parem a droga desse carro!!”
“Ela tem uma arma!”, apavora-se Juliana.
E tudo que eu consigo fazer é apenas manter o pé no acelerador. Eu não cheguei aos trinta anos de idade para levar um tiro de uma louca.


Nosso carro segue pela estrada que vai dar no sítio dos meus avós paternos, o mesmo local onde rolou o embate entre as namoradas do Ivan e ele. Não tive outra escolha a não ser levar o carro nessa direção, tanto por ser o local mais próximo e mais seguro para nós, quanto pra me livrar de cometer mais infrações de trânsito em área urbana.
O carro do cretino ainda está em nosso encalço, mas dessa vez a pelo menos uns 500 metros. Em algum momento no caminho ele teve problemas para desviar de outros automóveis e com isso ganhamos tempo.
“Essa não”, estremeço. “Não, não, não, não!!”
“O que é que tá acontecendo?”
Começo a dirigir olhando com desespero ao meu redor. Quase não há estabelecimentos de nada por aqui.
“A gasolina”, respondo, contagiada pela derrota iminente.
“Ai, não”, minha prima apoia uma das mãos na cabeça, aflita. “Será que não dá pra chegar no sítio do seu avô?”
“Acho que não, ainda tem uns dois quilômetros até lá”.
Menos de vinte metros depois, o carro enguiça.
“E agora, o que é que a gente faz?”, Juliana pergunta toda atordoada, olhando freneticamente para os lados, como se buscasse ajuda.
“Desculpa, prima”, sussurro, tentando resistir à ideia de que estamos definitivamente ferradas. “Eu não tenho a mínima ideia do que a gente vai fazer”.
Um carro vem ao longe, com as luzes altas. Sei que é o carro de Ivan, pois é o que dá pra se imaginar pela distância e pelo tempo em que estamos paradas aqui. Juliana incentiva:
“Vamos descer do carro e fugir. Vamos nos embrenhar nesse mato e correr”.
Olho para o matagal às margens da estrada. Avalio a sugestão por um momento e pondero se há mais perigo se enfiando numa vegetação duvidosa e desconhecida ou ficando sob a ameaça de um casal muito mal-intencionado e prestes a nos alcançar.
“Quer saber?”, digo, determinada. “Eu vou enfrentá-los”.
Desacoplo o cinto de segurança e abro a porta do carro.
“Milena!”, Ju tenta protestar.
As luzes parecem estar a uns 200 metros. Pode vir, Ivan! Pode vir, Valéria! Chega de fugir. Eu sou uma mulher adulta. Eu não tenho por que me esconder como uma criança aterrorizada. Se eu tiver uma chance de vencer esta batalha, quero conhecer de perto qual será.
“Milena, a sua amiga tá estranha”, diz Juliana, também saindo do carro, abrindo a porta traseira e apontando para Rita Lina.
Surpresa, me detenho. Recuo alguns passos, abro a porta traseira do outro lado e o que se apresenta diante de mim é uma visão estarrecedora: Rita está com os olhos completamente brancos, convulsionando incontrolavelmente, como se estivesse fora de si e tomada por uma espécie de corrente elétrica perpassando sua pele. E ela está pronunciando palavras ininteligíveis, como numa língua que eu nem me arriscaria a tentar adivinhar qual é.
No entanto, não tenho como lidar com isso agora. O carro do Ivan apenas ganha mais e mais proximidade a cada segundo.
Só que é aí que acontece a coisa mais estupenda e fantástica que alguém poderia presenciar. O céu, até então com uma escuridão típica para o início da noite, se ilumina de um modo tão espetacular que atrai nossa atenção de imediato. Após isso, um barulho de avião.
Imagine um avião sobrevoando o céu, você conhece o som que ele faz. Agora, amplie esse som em umas dez vezes. E aos poucos nossos olhos começam a testemunhar uma aparição inimaginável. No céu, do tamanho de um estádio de futebol de grande porte, surge um tipo de objeto voador de cor metálica, em formato triangular, com luzes azuis e vermelhas nas extremidades. Como se surgido num toque de mágica. MEU DEUS!
“O que é isso?”, maravilha-se Juliana.
Uma intensa ventania se propaga ao redor. Torno a olhar para Rita Lina e ela continua com o mesmo aspecto bizarro. Curiosamente, nenhuma de nós está com medo dessa coisa. Então, eu compreendo:
“CARAMBA!”, exclamo, também maravilhada e quase caindo de tanto assombro. “Isso, Juliana, é uma nave do planeta Valpíxia”.
Mas minha prima não tem a noção da magnitude do que isso significa, então apenas continua olhando pro alto, enquanto a nave desliza pelo céu noturno e passa sobre nossas cabeças, como um filme impossível que salta para a realidade.
O carro de Ivan, agora há uns 70 metros, freia com tudo e gira num cavalo de pau. Ele provavelmente está boquiaberto com a nave. Nessa ocasião, a nave estanca. E um feixe de luz amarelada desce de sua estrutura, alargando-se quanto mais se aproxima do chão. A luz clareia o carro de Ivan e seu entorno, como um holofote gigante, e então temos a confirmação de que era mesmo o Jeep cor de vinho. Outro barulho estranho chega aos nossos ouvidos, e acho que o teto do carro de Ivan está sendo literalmente rasgado. Isso é retificado dois segundos depois, quando enxergamos um corpo sendo erguido por alguma força invisível, e eu presumo que foi arrancado de dentro do automóvel: Ivan surge suspenso no ar, braços e pernas esticados.
Abro a boca em espanto, enquanto o grito desconsolado do meu ex-namorado ecoa noite afora, seu corpo levitando como se não estivesse mais sob sua vontade. A nave dos Valpixianos puxando-o para cima, abduzindo-o. Salvando-nos. Acompanhamos tudo petrificadas, até o corpo de Ivan enfim chegar à altura mais extrema e ser nada mais que uma lembrança e o feixe de luz se apagar. E a nave prossegue seu trajeto, até sumir diante de nossos olhos deslumbrados.
De repente, ouve-se o som de alguém dando partida no Jeep. Eu havia esquecido da Valéria. Ela mete o pé no acelerador e arranca com o carro em nossa direção, sedenta por completar seu intento. Agora não temos mais nave espacial para nos defender.
E eis que Rita Lina põe seu corpo pra fora, aparentando cansaço, mas agora com os olhos normais e o corpo mais relaxado. Ela estende a mão na direção do Jeep e verbaliza mais uma de suas frases intraduzíveis.
Como num piscar de olhos, o carro entra em combustão espontânea do mais absoluto nada. Tudo que dá tempo de escutar é um berro agoniado de Valéria em chamas, perdendo o controle do veículo, enquanto este capota cinco vezes ao longo da estrada e vai parar vários metros à frente de onde estamos.


Pedro e Olívia chegam poucos minutos depois de tudo. Saem de seu sedã exibindo uma fisionomia preocupada.
“O que foi aquilo?”, pergunta Olívia.
Juliana e eu estamos encostadas no meu carro. Rita ainda está no interior dele, sentada na ponta do banco com as pernas pra fora. Vendo que ela não se encontra em condições de falar, eu tento dar uma explicação:
“A Rita Lina meio que conjurou uma nave”, estou admirada por não me sentir estranha fazendo tal afirmação.
“Ela conjurou uma nave?!”, Pedro não disfarça.
“Sim”, e eu me inclino um pouco, para dar um beijo na testa de Rita. “De alguma forma ela se conectou com os Valpixianos e eles vieram pra dar um fim nisso”.
“Esse incêndio vai acabar chegando na vegetação”, Olívia saca o celular do bolso e acho que está ligando para os bombeiros.
“Tá tudo bem, Rita?”, pergunto para minha doidinha favorita.
“Eu só tô meio tonta”, responde ela, com um fiapo de voz.
“Você viu o que você fez?”, digo, deixando à mostra meu orgulho.
“Os Valpixianos levaram o Ivan embora”.
“O que vai acontecer com ele? Você sabe?”
“Sei”, ela me surpreende, mas por apenas um segundo, porque acho que não me surpreendo mais com nada esta noite. “O cérebro do Ivan é um tipo de tesouro muito rico e os Valpixianos com certeza vão removê-lo para estudos e pesquisas, antes de descartar o Ivan, é claro. Na melhor das hipóteses, ele vai servir de ingrediente de ração para cucuranhas”.
“Então envia um recado pros Valpixianos. Eles não podem contaminar as coitadas das cucuranhas”.
Pedro, Olívia e Juliana se entreolham, como puros amadores em quesito “loucuras de Rita Lina”. Mas eu encerro o assunto dando a ela um sorriso de profunda gratidão.
Outro carro se aproxima de nós. É Sávio. No carro de Denner.
Ele sai de lá e vem caminhando até nós, com um aspecto asqueroso; manchas de sangue salpicadas pelo corpo e nas roupas. Está com um semblante entre consternado e assustado.
Me direciono até ele. Nessa hora, Rita encontra forças para se levantar do carro e, antes mesmo que eu o alcance, ela para diante de Sávio e o questiona:
“Onde é que tá o Denner?”
Sávio está arfante, mal consegue encarar Rita nos olhos. Mas, à simples menção do nome de Denner, ele cai em lágrimas. Os lábios de Rita tremem ao entender que não está tudo bem, então corre até o carro em que ele veio. Por minha vez, chego até Sávio e o abraço, não me importando com o quão sujo ou fedido ele esteja.
Rita abre o carro. Denner está deitado do lado de trás, desmaiado e enrolado em alguns lençóis.
“Foi tudo culpa minha, Milena”, Sávio chora de soluçar, enterrando-se em meus ombros.
“Sávio, não me diz que...”, balbucio, me deixando sufocar pelas palavras.
Não há a menor sombra de dúvida que o inevitável aconteceu.
Vejo Rita entrar com metade do corpo para dentro do carro do namorado. Ela se demora por um tempo, depois se retira por completo e desaba sobre o asfalto, encostada na lateral do veículo. No mais medonho estado de choque.
Deixo Sávio por um momento, e vou até ela. Não há uma só lágrima rolando pela sua face. Como isso é possível?
“Rita”, digo, com gentileza, tocando em suas mãos.
Os olhos dela se assemelham a duas pedras de gelo, frios e escancarados. Mal piscam. Sua respiração é quase nula, a boca semiaberta lhe faz parecer um processador lento que não reconhece a função que precisa executar.
“Rita?”, insisto.
Me volto para os outros presentes.
“Como você encontrou a gente, Sávio?”, pergunto.
“Nós ligamos pro telefone do Denner, pra falar com o Sávio”, explica Olívia. “Contamos sobre a perseguição e, conforme íamos seguindo vocês, íamos orientando ele sobre a nossa localização”.
Me dou por satisfeita, então retorno o rosto para Rita Lina. Ela precisa muito de mim agora.
“Rita, eu sei que você pode me ouvir. E eu acho que você tem todo o direito de ficar aí nesse asfalto sentindo a perda do seu namorado. Então, eu vou ficar aqui com você pro que você precisar, tá? Se quiser chorar, eu tô aqui. Eu sou sua amiga, entendeu?”
Coloco-me a seu lado e, não contendo as minhas lágrimas, envolvo-a num abraço tão terno. Minha solidariedade neste instante pertence totalmente a ela.
O cheiro de fumaça se espalha, e aos poucos vai tomando conta do ar à nossa volta. Um inquietante tom de cinza vai se apossando da noite e deixando-a intragável, amarga. Nunca sonharíamos que as coisas podiam desemborcar em consequências tão nefastas.
Nossos opressores se foram. Aqueles que se levantaram contra nós foram subjugados e derrotados. Entretanto, perdemos um dos nossos. E a devastação que isso deve causar em Rita Lina é simplesmente impossível de mensurar.
Passo o olhar pelo rosto de cada pessoa aqui presente. Sávio com seu olhar perdido e o sentimento de culpa indisfarçável. Juliana com sua cara abatida. Pedro e Olívia praticamente intrusos no círculo de amizade, mas que sabem demonstrar respeito e apoio num momento tão dramático.
E Rita Lina, que hoje descobriu que sim, ela tem superpoderes, como sempre esperou que tivesse. Mas que agora, eles não têm a menor significância.
Suas primeiras lágrimas surgem. Sua dor começa a se exteriorizar. Sua alma está caindo em si. É nesse momento que começo a me munir de força para ser o suporte que ela necessita.
“Chora, meu anjo”, murmuro. “Chore tudo que você quiser chorar”.
Ela me olha. Há uma luminosidade estranha em sua expressão.
“Eu não tô chorando porque o Denner morreu”, esclarece ela. “Eu tô chorando porque eu conheço uma forma de trazê-lo de volta. Eu tô chorando de esperança”.
“O quê?”
Com ímpeto, ela se levanta e anuncia:
“Preciso que alguém me leve pra casa. Minha mãe pode ajudar no procedimento”.
“Peraí, Rita, peraí!”, também me levanto, mas sem a mesma facilidade. “Você tá muito abalada, não tá raciocinando bem e...”
“Como é que você ainda pode duvidar, Milena? Depois do que você viu hoje?”, argumenta ela.
“De que procedimento você tá falando?”, indaga Pedro.
“É muito simples. Eu vou remover o chip que os Valpixianos colocaram em mim e vou colocar no Denner. Daqui a uns quinze dias, é quando o chip reinicia. Foi isso que me desligou ano passado e fez todo mundo achar que eu tava morta. O chip é atualizado anualmente, então o período da atualização desse ano tá chegando. Quando o chip for atualizado e reiniciado, o Denner vai acordar”.
E eu que achei que não poderia me surpreender mais por hoje. Talvez por respeito à perda de Rita, ninguém prefere fazer qualquer comentário. Então, ela continua:
“A gente precisa ir pra minha casa, a minha mãe pode abrir minha pele com um bisturi e depois abrir a pele do Denner pra colocar o chip nele. Por favor, não podemos perder tempo”.
Recuperando-se um pouco de seu estado destruído, Sávio se arrisca em trazê-la para a realidade:
“Mas isso fosse mesmo possível, você não iria acabar morrendo?”
“Não”, ela nega, abrindo um sorriso. “Eu voltaria a ser só um ser humano normal, que mais cedo ou mais tarde vai acabar morrendo de causas naturais. Bom, e também não vou mais poder invocar uma nave Valpixiana ou incendiar coisas. A única implicação nisso tudo é que o chip carrega algumas informações biológicas minhas, mas o Denner não ligaria pra isso. Seria como se ele carregasse parte de mim com ele”.
Não imaginei que, em meio a todo esse caos, haveria espaço para algo tão poético.
“Você tem certeza de que isso vai funcionar?”, Sávio se aproxima de Rita. “Você sabe se isso já foi feito antes?”
“Eu não sei de nada”, ela baixa a cabeça, reflete um pouco, depois levanta o queixo de volta. “Mas a única coisa que eu sei é que eu preciso tentar e a única maneira é essa. O Denner não pode morrer agora. Ele tem um livro pra publicar, uma carreira pra seguir. Foi a primeira vez na vida que ele se sentiu uma pessoa de valor, como se o mundo estivesse dando uma chance pra ele se sentir querido. Não é justo tudo acabar agora. Não é justo ele morrer logo agora que os sonhos dele estão se realizando”.
Sávio me olha. Não consigo esboçar nada.
“Me leva pra casa, Sávio”, insiste Rita, mais decidida. “Você deve isso ao Denner”.
Sávio hesita, olha outra vez para mim, mais uma vez eu não consigo ajudá-lo. Meu amigo respira fundo e resolve:
“Vamos lá!"


(Sávio)


Já são quase oito da noite. Os três carros seguem rumo à casa de Rita Lina. Pouco depois que partimos, vimos um caminhão de bombeiros indo em direção ao incêndio que se formara graças ao Jeep capotado e em chamas de Ivan.
Chegamos lá. A explicação de toda a saga para os pais da moça levou praticamente meia hora. Teria levado menos se eles não tivessem cismado com a presença de Pedro e Olívia, que por alguma razão são as últimas pessoas que eles concordariam em ver no mundo.
Eu entrei carregando o corpo morto de Denner, e agora ele estava sobre uma cama no quarto de sua namorada.
“Por favor”, pede Rita, “quero ficar a sós com os meus pais agora, enquanto a mamãe abre minha pele pra fazer a retirada do chip”.
“Quando terminar, a gente chama vocês”, tranquiliza o pai de Rita.
Aceitamos. Então, todos vamos para a sala, apreensivos.
“É tudo tão irônico”, comenta o careca, que agora sei que se trata do tal Pedro de quem Denner me falara uma vez. “A última vez que estivemos aqui, fomos escorraçados sob a mira de uma espingarda”.
“Um lugar ao qual jamais imaginei voltar”, endossa sua parceira, Olívia.
“Eu tô tão preocupada”, confessa Mile. “Não tô gostando nada dos rumos dessa noite”.
“Mas isso tudo vai acabar”, passo por cima do meu abalo emocional.
“Sabe, quando vi que o Denner estava morto”, Pedro fala, e vai se deixando abater por uma espécie de lamentação, “rapidamente pensei comigo mesmo: ‘bom, talvez o universo esteja apenas alinhando algumas coisas’.
“O que você quer dizer com isso?”, interrompe Milena.
“Eu investiguei sobre o Denner depois que o conheci. E o que eu descobri é... perturbador”.
Milena e eu nos mantemos à espera de que ele finalize. Mas isso parece deixar seu coração apertado demais para soltar de uma vez só.
“Assim como você, Milena”, continua ele, “o Denner também só existe aqui, nessa realidade. Mas não é porque ele morreu em todas as outras. Ou melhor, de certa forma, é por isso sim. Só que a verdade é que ele nunca chegou a nascer.”
A mulher loira, a tal Olívia, deixa cair uma lágrima. Pedro continua:
“Os pais do Denner nunca o quiseram. A gravidez não veio numa hora boa, os pais dele vinham tendo muitos problemas financeiros e sentimentais. Então, em todas as realidades, eles optaram pelo aborto. Nunca existiu Denner em lugar nenhum, a não ser aqui, e somente aqui. O Denner é o mais perfeito exemplo de ‘e se’ que eu conheço”.
E a emoção deixa Pedro travado, impossibilitado de pronunciar uma palavra a mais. O clima ganha contornos demasiadamente pesados para todos nós nesta sala.
Portanto, não importa o quão insano tenha sido a proposta de Rita Lina. Eu preciso ver meu amigo de volta à vida, encará-lo nos olhos e ouvir seus peculiares pensamentos orais de novo. E, acima de tudo, nunca mais carregá-lo numa encrenca comigo. Denner, mais do que ninguém, merece essa segunda chance.
“Tá demorando, né?”, comenta Milena.
Mais de meia hora depois do tal procedimento, o pai de Rita Lina aparece.
“Milena e Sávio, ela quer falar com vocês”, avisa ele.
Mile e eu respiramos aliviados. Graças a Deus tudo deu certo.


Entramos no quarto, Rita está sentada à beira da cama, com Denner desacordado ao seu lado. Me bate um certo pânico, pois ele não tá respirando. Se era pro tal chip funcionar, ele não deveria estar apenas dormindo?
“E então?”, indaga Milena.
“Só vai dar pra saber daqui a quinze dias ou um pouco mais”, Rita dá de ombros. Seu rosto está iluminado, vívido, convencida de que fez a coisa certa.
“Nós temos um amigo que vai ajudar a conservar o corpo enquanto isso”, diz a mãe de Rita Lina. “Da época em que trabalhei num pronto-socorro”.
“Foi assim que ela aprendeu a usar um bisturi”, justifica Rita.
“Isso que você fez foi uma coisa muito bonita, Rita”, declara Milena. “Mesmo sem saber se isso vai dar certo, a sua atitude foi uma das mais maravilhosas que eu já vi alguém fazer”.
“É o mínimo que eu posso fazer pelo meu Pokémon”, contenta-se ela.
Os pais de Rita estão no cantinho do quarto, abraçados bem forte. A moça faz um sinal para Milena se inclinar até ela. Sem titubear, Milena assim o faz. Apesar de Rita lhe cochichar, eu consigo ouvir o que ela diz:
“Você sempre foi um grande exemplo de mulher pra mim”.
Milena afasta um pouco o rosto, sorrindo sem jeito. Rita abre os braços, indicando que quer dar um abraço em nós dois.
Agora somos eu e Milena inclinados em direção a ela, abraçando-a e recebendo de volta o mesmo abraço carinhoso. Os pais de Rita agora começam a chorar.
“Muito obrigado por tudo, Sávio e Milena!”
“A gente te ama”, Mile se aconchega mais ainda.
 “Eu sempre tive uma vida maravilhosa”, devaneia Rita. “Eu sempre fui muito feliz. Eu tive a melhor família, o melhor namorado, as experiências mais fantásticas. E acima de tudo fui livre. Posso dizer sem medo nenhum que eu fui muito feliz. Sabe, todo mundo merece ser feliz”.
Com seus olhões enormes, ela nos esquadrinha com um misto de seriedade e felicidade e pede:
“Quando o Denner acordar, digam a ele que eu o amo muito. E, por favor, me perdoem pela mentira que eu disse”.
“Como assim, Rita? Que mentira?”, pergunto, temendo o que estou começando a perceber.
“Rita...”, geme Milena, tardando a sacar.
Então, o abraço de Rita fica molenga, perde a firmeza. Sou o primeiro a me afastar, pasmo. Milena vem logo depois de mim, mas ainda segurando Rita Lina nos braços. Levemente, Mile dá um sacolejo no corpo dela, que não reage.
“Rita! Rita! Fala comigo, Rita!”, insiste Milena.
Mas seus olhos já estão fechados e um sorriso foi deixado estampado no rosto, como uma assinatura de sua última loucura. E de que, ainda que pareça estranho para nós, foi plenamente voluntária.
O choro de seus pais, ainda agarrados como se fossem o refúgio seguro um do outro, agora faz todo sentido: ela ficara sozinha com eles e lhes explicara seu plano. Os pais de Rita sempre lhe apoiaram em tudo. E o tempo sozinha com eles aqui foi pra convencê-los de seu sacrifício, e também para se despedir.
“Não! Não! Meu Deus! Rita! Rita! RITA!!!”, o desespero de Milena vai preenchendo o quarto, unindo-se ao lamento sufocado do casal próximo de nós.
Observo a cena com perplexidade. Todas essas perdas, todas essas reviravoltas. Não havia como estar pronto para nada disso. Tenho vontade de tocar os ombros de minha amiga e lhe dizer que não adianta o quanto ela sacuda Rita Lina, porque a própria confessou que mentiu. A retirada do chip não ia lhe permitir que ela permanecesse viva, nem normalmente como qualquer ser humano, nem de maneira nenhuma. Ela precisou usar desse artifício porque sabia que não a deixaríamos ir em frente com essa ideia suicida. Agora, para o meu total horror, sou alvejado com a dolorosa certeza de que dessa vez não haverá retorno. Dessa vez será para sempre.
“Rita! Fala comigo, Rita! Por favor! Fala comigo, Rita! Rita!”
Para o bem ou para o mal, a única coisa que nos resta disso tudo é que nada tenha sido em vão.
A noite vai se estendendo, longa e miserável. Será que conseguiremos nos recuperar de seus estragos?



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